terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril (Cont.2)

E o que acima de tudo assombrava na palhaçada política em que se vivia era a falta de originalidade de todo o processo revolucionário. Se no governo se formavam triunviratos, fora porque já na Roma antiga e na moderna Rússia se fizera assim. Se se impunha o serviço cívico obrigatório aos alunos com o sétimo ano, antes do seu ingresso nas Faculdades, o mesmo se observava na China comunista e na Cuba de Fidel Castro. Entretanto, ganhava-se tempo para impedir a avalanche no ensino superior que revelasse a realidade da impossibilidade de ingresso nas Faculdades, por falta de estabelecimentos de ensino e de professores capazes, saneados em consequência da extrema gritaria e actividades destrutivas dos estudantes que pensavam, muito justamente, chegar mais facilmente ao topo das suas pretensões escolares ou, pelo menos, impedir que o fizessem os seus colegas mais aplicados.
Neste Seminário que frequentei, pude constatar quão pueris por vezes eram as queixas dos alunos contra os professores saneados, lamentando-se porque a universidade lhes não dava o leite todo que pretendiam mamar, restringindo os seus programas, não lhes facilitando a possibilidade de desenvolverem as suas qualidades oratórias, raramente os interrogando, limitando-se a um expor de cátedra com todos os foros do “magister dixit” medieval. Vi, pois, como os alunos pretendiam não receber lições mas brilhar no palco, embora, creio bem, com poucas perspectivas de que tal sucedesse, vista a timidez intelectual de que sempre se revestiu a maioria estudantil portuguesa, apática e mais apta a uma constante perda de tempo nas mesas estéreis dos cafés que ao labor mental probo e disciplinado. Também parte dos alunos se queixavam contra os seus professores que nos exames os vexavam pondo em destaque pouco cristãmente a sua ignorância. Mas pareceu-me que o ponto fulcral da questão residia num roaz sentimento de inveja desses mesmos professores, alguns dos quais verdadeiras inteligências a aproveitar para o país, e que a inconsciência estudantil reivindicativa e fútil assim fazia, com autoridade, que toda se permitia num país não adulto, pôr de parte.
Em breve a nação se tornaria um foco de reclamações mais ou menos fraudulentas, de saneamentos, de ocupações de casas, quintas ou empregos, de assaltos e roubos, de fugas precipitadas para o estrangeiro.
No ensino secundário, estudantes adultos, maltratados nos exames escritos através de notas vergonhosas, protestavam contra o mau tratamento infligido, não querendo reconhecer a desonestidade das suas tentativas de se sujeitarem a exames sem um mínimo de preparação básica.
De comissões de gestão constituídas por jovens estudantes dependia a colocação de professores, pessoas superiormente formadas, que viam amesquinhada a dignidade das suas funções, acolhidos como eram por adolescentes, aliás gentis, mas manifestamente os menos capacitados para resolver os problemas dos adultos, e que procuravam talvez, por meio da sua inclusão na gestão das escolas, um processo fácil de concluírem o seu curso, dada a importância do cargo como factor pressionável sobre as consciências dos professores.
Havia-se acordado salvaguardar os interesses dos funcionários ultramarinos efectivos, ingressados, a quando da descolonização, no quadro dos adidos, mas para os magistrados e os professores, em virtude da barreira posta pela magistratura e o professorado metropolitanos, tal não se aceitara. Os magistrados ultramarinos não teriam acesso aos tribunais metropolitanos, a pretexto de haverem servido o regime colonialista-opressor, perfeitamente tranquilos os magistrados metropolitanos a respeito do regime que eles próprios haviam servido, aparentemente diverso do dos seus confrades de além-mar, mau grado o pessimismo do recoveiro Malhadas que a todos englobava na designação deprimente “Uma choldra de ladrões.”
Quanto aos professores contratados sem estágio, teriam que concorrer como eventuais, perdendo assim todos os direitos adquiridos de redução de horas e estabilidade. Como um “pushing-ball” saltavam de um ministério para outro, cavilosamente enganados nas informações, enviados igualmente aos liceus e escolas. Mas nos liceus e escolas, se interrogavam as comissões de gestão, para um possível ingresso, reenviavam-nos para o Ministério da Educação, donde aparentemente partiria a distribuição dos professores. Entretanto, cada liceu e escola tinha autonomia – e usava-a com prodigalidade, para criar muralha maior contra os professores colonos – para reconduzir os seus professores, ainda quando aqueles não tivessem curso completo, saltando, pois, por cima de todos os realmente formados e com anos de serviço. E os professores adidos ficavam, naturalmente, no fim da lista, só colocados após a distribuição de todos os outros, sob o mesmo pretexto de terem explorado e colonizado os negros enquanto exerceram o seu maléfico ofício de educadores nas terras de além-mar, que nas de aquém-mar se considerava nobre e extremamente espinhoso. No Ultramar, no entanto, as esposas dos oficiais em comissões de serviço haviam sido favorecidas, com curso ou sem ele, com uma pronta e reverente aceitação nas escolas, conquanto todos soubessem o escasso mérito da actuação desses mesmos oficiais como defensores daquilo que, tinham aprendido na instrução primária, e reforçado possivelmente na instrução militar, se considerava território nacional, herdado de antepassados valentes e briosos.
Por toda a parte se escarrava a sujidade moral de cada um, quer nas paredes dos edifícios revestidas dos mais espantosos dislates, pintados a coberto da noite, quer nos comícios ou sessões constantes onde se gritava muito e nada de positivo se obtinha, já que, eliminadas as cabeças cimeiras donde deveriam partir, dentro de um clima de confiança e respeito, as decisões supremas, todos desejavam mandar e ninguém se propunha obedecer.
Continua

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