quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril (conclusão)

A ignorância imperava, e com ela o ódio e a vileza davam-se mãos, sobretudo contra aqueles que, fugidos à pressa do Ultramar para não serem esmagados sob a onda de violência deflagrada, embatiam num muro fechado de animadversão ou indiferença acintosas. Para não terem que reconhecer os erros de uma descolonização precipitada em Angola, jamais os órgãos informativos, tão generosos a lamentar a miséria do povo, como produto do regime fascista, abriram qualquer subscrição para os milhares de vítimas angolanas, chegadas à Metrópole nas condições mais desastrosas. Se os atacantes em Angola eram o MPLA, facção comunista apoiada pelo nosso Governo (apesar do acordo por ele feito de reconhecimento de três partidos, a quando das conversações sobre a independência), discretamente se referia a guerra em Angola. Se entrava a FNLA em acção, nesse caso usavam-se grandes parangonas contra os desordeiros que assim derramavam o sangue dos seus irmãos. O mesmo se verificava em Portugal em relação às sedes dos partidos. Os da esquerda destruíam as sedes do centro ou da direita e, a não ser breve referência satisfeita, tudo continuava em ordem. Os do centro-direita passaram a destruir as sedes esquerdistas e logo imprensa, rádio e televisão notificam com assanho o facto, e organizam mesas redondas onde, sem um mínimo de ética ou de equanimidade, se denunciam os culpados exigindo-se-lhes o castigo.
Causava estranheza também a forma capciosa com que os governantes e órgãos informativos se referiam ao “Processo revolucionário por via socialista”, em perfeita contradição com as suas tendências nitidamente esquerdistas, mas sem coragem de o afirmarem bem alto, talvez por complexos herdados ainda do fascismo anterior, intransigente à aceitação do comunismo, ou porque entendiam assim enganar a nação, que escolhera realmente a via socialista, por desconhecimento, aliás, do seu verdadeiro significado.
E do outro lado, a par das notícias dramáticas sobre a guerra em Angola, e posteriormente em Timor, chegavam-nos as notícias dos vilipêndios e maus tratos a que um partido único sujeitava sobretudo as populações brancas em Moçambique, obrigadas a denegrir e a aceitar os constantes insultos à pátria portuguesa e a suportar toda a casta de vexames, corroborado e incitado pelos frelimeiros pressurosos, que para esconder um passado notoriamente pouco digno de exploração colonialista, exageravam na sua devoção por esse partido único, denunciando todo e qualquer foco de resistência.
E, tal como na Metrópole, onde o povo, vendo-se guindado a uma promoção mais aparente do que real, supunha ingenuamente que comeria alguma parte do bolo que se lhe prometera e por isso denunciava o rico na ânsia de colher largo pedaço, bem politizado dentro de um clima de ódio sabiamente injectado, expulsava os brancos para lhes açambarcar as casas, mal supondo quanto aquelas já estavam destinadas às futuras elites negras, mais reivindicativas e exploradoras do que os próprios governantes brancos anteriores, pois passaram a viver no aparato cénico dos bons carros e casas e até aviões particulares de que não prescindiam, como indivíduos deslumbrados pelas coisas realmente válidas da vida. Entretanto, qualquer mínima infracção era punida com trabalhos agrícolas ao sol tropical, só com a finalidade de amesquinharem e vilipendiarem os brancos, mestiços ou negros que assim tinham de se submeter.
Também, é certo, na Metrópole, regressada, em consequência da descolonização, à necessidade de uma economia que punha na agricultura (e nos empréstimos ao estrangeiro) as esperanças da sua sobrevivência, por incapacidade de desenvolverem a sua indústria, quer por falta de matérias-primas, quer por falta de bons técnicos saneados, quer pelo abandono comercial e industrial do estrangeiro, rígido perante a duplicidade, falava-se na necessidade de irem todos trabalhar para o campo, numa ânsia de inverterem categoricamente posições, por meio do vexame da burguesia endinheirada ou intelectual que iria funcionar na rabiça, passando operários e agricultores possivelmente a funcionar nas escolas ou nos hospitais.
Entre a oratória caricata usada pelos negros, infantilmente cruéis, por vezes surgiam autênticas anedotas para amenizar a tensão, como o caso, por exemplo, de um discurso do presidente da Câmara de Inhambane, onde aquele utilizou, com saber, todas as noções históricas de que se deveria revestir naturalmente um discurso governativo: “Abaixo o Vasco da Gama! Abaixo o Pedro Álvares Cabral! Abaixo o fascista do Salazar que para cá os mandou!” E a cada advérbio “abaixo!” o povo o povo rugia alto, preso de extrema compenetração e ânsia de esclarecimento, o seu “abaixo!” aderente.
Não menos grotescas se tornavam na Metrópole as discursatas frequentes, o papaguear de noções colhidas à pressa nas conversas dos vizinhos ou na imprensa diária. O psitacismo, as frases feitas, os chavões banais como “batalha da produção”, “exploração do homem pelo homem”, “escalada revolucionária”, “serventuários do capital” e os diversos “ismos” resumidores de conceitos, imperavam nos diálogos radiofónicos ou televisivos, nas canções enérgicas, energia só manifestada, infelizmente, através da garganta, de largo uso actual, e nas frequentes mesas redondas onde, em todo o caso, com certo malabarismo verbal notório, se conseguia ladear questões importantes sem se informar o público objectivamente e com honestidade.
Fora o povo explorado que os escritores neo-realistas haviam tentado definir e apresentar em feios quadros de miséria e rebaixamento vis, fora um regime totalitarista que haviam querido atacar, cônscios do seu papel de denunciantes e benfazejos, esquecidos da eterna semelhança entre os homens, não melhores uns do que os outros nem menos interesseiros, mas fora a pátria portuguesa que realmente haviam contribuído para devastar, sem pejo do seu papel anti-imperialista incoerente. Colonialismo, capitalismo, imperialismo, não passavam de termos vãos, como os muitos outros de que se serviam. Porque, se se partira do princípio de que a África era para os negros (minimizando deste modo a cobiça de americanos, russos, chineses e quejandos sobre as ricas possessões que largámos com tanta magnanimidade e desamor pátrio) teríamos que expulsar americanos, brasileiros e os povos da América Latina dos países de que foram usurpadores. E atacar a Rússia no seu imperialismo desenfreado, e a própria Inglaterra sem razão para manter a vizinha Irlanda sua dependente contrariada. E dar razão aos Açores nas suas pretensões à Independência. E...
Neste longo Prefácio, denúncia de um processo histórico mais podre e desumano do que o do regime deposto, está implícito o desejo de ver os verdadeiros homens do meu País libertando-se das peias do terror para erguerem o punhal certeiro da oposição honrada e corajosa que consiga ainda lançar um pouco de dignidade neste pequeno canto ocidental da Europa, que um dia muito recuado, por vontade dos seus naturais, se tornou uma nação independente e séculos depois, movido pela mesma vontade, se tornou uma nação grande, dando a sua quota parte para a expansão e enriquecimento do mundo.
Agosto 1975”



30 de Dezembro de 2009:

Hoje, que recuperámos da negra “noite do Copcon” e período seguinte, graças ao surgimento oportuno, em 1976, de um general, qual desejado Sebastião, “A bem nascida segurança / da lusitana antiga liberdade” - como afirmo numa das partes de “Cravos Roxos” – “Messias” - apondo, todavia, uma interrogação dubitativa ao nome de Ramalho Eanes, por, na altura da composição do livro – 1981 - aquele, que fora o libertador da destruída nação, pender já, em segundo mandato presidencial, para ínvios caminhos de orientação comunista - vamos atamancando a marcha da Nação ora com medidas mais saudáveis, ora em tropelias a cada passo vindas a lume.
Filhos de uma geração de revolucionários, educados no desprezo dos valores antigos, os sucessivos governantes, a par das naturais medidas contrutivas dos seus governos, todos se esmeraram em abocanhar, como lobos famintos, o pecúlio deixado, em proveito próprio ou dos seus amigos de partido.
Chegámos, assim, a uma situação de falência, de falhanço, em todos os níveis da nossa estrutura política, económica, social. O clamor é diário, os protestos contínuos - contra os escândalos financeiros, os escândalos sociais, os escândalos no Ensino, na Justiça, na Medicina, os escândalos, a incompetência, a corrupção. Atingimos o caos. E não temos já esperança em nenhum Messias.
Porque aquela figura de mulher, que poderia restabelecer a ordem, pela sua seriedade, inteligência e probidade, é constantemente ridicularizada, pelos do seu próprio partido, que avançam os seus tentáculos para chegarem ao poder, como outros o fizeram, como outros fazem. Sempre em proveito próprio. Jamais com decoro. Jamais em proveito da Nação. Despudoradamente. Na infâmia da rede tentacular. No desrespeito pelo cidadão. No atropelo. Na libertinagem. No medo do futuro.
Um balanço da nossa tristeza, o destes 35 anos da nossa democracia.

Nenhum comentário: