domingo, 20 de dezembro de 2009

“Partiste-me o coração”

Esta foi da minha neta mais novinha, Maria Beatriz, Maria da preferência do Pai, Beatriz do gosto da Mãe, mas foi este último que vingou. Nestas coisas de nomes, as mães têm a opção por direito, sobretudo quando se trata do primeiro filho, porque sabem quanto sofreram, o filho foram as dores delas que o lançaram à vida, quando não há uniformidade de parecer sobre o nome, vence o parecer da mãe. Foi assim que o meu primeiro filho não foi João Paulo do gosto do pai, mas Ricardo Jorge da minha preferência. Magnanimamente o João Paulo foi segundo, segundo a predilecção paterna., terceiro, embora, na sucessão, com a Paulinha de permeio.
E foi o João Paulo que me contou, impressionado com a saída da sua Beatriz. O João, por circunstâncias da vida, foi trabalhar para Angola, deixando a filhita muito pesarosa, sempre agarrada a ele, com medo de perder o seu papá. Mas o João veio passar o Natal, e a filhita continua agarrada ao papá, que tem que voltar para Angola, quer ir também. E na conversa entre os três, a Beatriz, que insiste com a mãe para irem todos para Angola, vira-se chorando, para a mamã que recusava, sorridente, o alvitre impossível, e lança no seu desespero: “Partiste-me o coração.” O João contou, pelo telefone, amarfanhado, porque sente bem a falta da sua filhinha também. Mas eu achei tão extraordinária a frase numa criança de quatro anos e três meses, que me ri e consolei. A trágica frase não significava tal dor assim, porque nem ela lhe sabia bem o sentido, estava apenas a reproduzir uma expressão que aprendera talvez com a mãe, que é brincalhona. Ele teria que lhe prometer voltar daqui a mais uns meses, e aliás, todos os dias a vê e fala com ela pelo skype. Mas a frase da Beatriz ficou no ar, no que tem de graça, e no que pressupõe de drama das crianças que a vida separa dos pais, ainda que intermitentemente.
Contei a história à minha amiga que achou, naturalmente, muita graça e se espantou como eu, com aquela pequenita que desde muito novinha conhecia todas as marcas de todos os carros e agora mantém conversa com um vocabulário inesperadamente rico, fruto do diálogo familiar, certamente, mas também das histórias que escutam, dos filmes que vêem, das escolinhas onde tão cedo são lançadas, retiradas ao conforto dos pais. Comentámos sobre o futuro intelectual das novas gerações com algum optimismo, mais crentes nas vantagens da difusão dos magalhães substitutos das tabuadas e da ortografia. Os magalhães forneciam outra forma de acesso ao mundo, gradualmente mais adulto, devíamos manter a esperança e desejar que fosse mais ético o mundo que elas próprias se encarregariam de construir para os seus próprios filhos.
Mas hoje o frio da manhã enregelava a alma e a minha amiga só viu tristeza à sua volta:
- Está aqui sozinha todos os dias, em frente a uma chávena de café.
Tratava-se de uma senhora séria, que procurava diariamente ali o conforto da sua bica, ainda que solitária, preenchida com o rumor da indiferença em redor. Creio que a proximidade do Natal agudizou mais, na minha amiga, o sentimento do atolamento em que vamos mergulhando, irmanando-a com o pesar alheio. Quando falámos na Carlita, umas lágrimas lhe correram pela cara, lembrando aquela vez em que a fôramos visitar ao hospital da Parede e ela lhe levara um presentinho que mais tarde a vira usar.
A Carlita! Era uma moça alegre, estouvada, inteligente, de expressão engraçada e espontânea, com que suavizava o drama de uma doença que logo em bebé a trouxera de África para ser aqui operada.
Recusava sofrer, era bonita, activa, estudou, trabalhou, casou, teve um filho que, por inépcia no hospital, durante o parto, foi maltratado, com uma perninha que teve de ser amputada. Lutou pelos seus direitos e do seu filho de tragédia. Mas um dia, um desastre de carro parou de vez o turbilhão das suas agonias. Morreram os três, pai, mãe e filho, numa rodoviária portuguesa de má construção, causadora de outras idênticas tragédias, enquanto não foi alterada.
- Há seres predestinados. E está sempre a suceder! Aquela mãe que ia com o filho assistir ao juramento de bandeira do filho mais velho! Até o raio do autocarro vai virar! Houve feridos, mas aqueles dois tinham que morrer! Acho que o automobilista tem a maior parte da culpa. São coisas tão horrorosas! As famílias destas pessoas nunca se refazem.
- É bem verdade isso, é por isso que devemos ser gratos se não nos acontecerem casos assim. Mas no mundo inteiro há vidas tão cruelmente infelizes!
- Num bairro de Manila vendem órgãos para sobreviver. O Ocidente compra. Vendem um rim para terem a sua casota.
Decididamente a minha amiga não está hoje nos seus dias de graça. Tento distraí-la. Mas só me acodem os casos da nossa revolta. Falei na cara de fuinha de Belmiro de Azevedo, e outros, não empresários, como lhes chama Daniel de Oliveira, no Eixo do Mal, mas patrões, indiferentes ao excesso de trabalho dos empregados - que estão a fazer um pre-aviso de greve - renitentes ao aumento de 25 euros proposto pelo Governo, apenas dispostos a aumentarem dez euros, apesar dos lucros extraordinários que obtiveram, com crise e tudo. Mas a minha amiga só consegue perguntar, ingenuamente:
- Eles não acham que é uma exploração?
Eu vou mais pelo comentário de “obscenidade” proposto no “Eixo do Mal”, e, como a minha neta Beatriz, também sinto quanto isso nos “parte o coração”.

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