segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril (cont.2)

No comboio em que regressava de Coimbra, à noite, eu verificava como as Forças Armadas haviam adquirido ultimamente poder, pois algumas avalanches de tropas nele embarcadas rugiam alegremente a sua exuberância, granjeada possivelmente nas suas sessões de esclarecimento político-social, rumo ao norte e televisionadas.
No entanto, também pude pôr no povo as minhas esperanças de ressurreição pátria um dia em que uma matrona, entrada na estação, ao exprimir, pela atitude, as suas pretensões de se sentar em determinada cadeira, tendo sido informada de que tal assento estava destinado a outrem, o que se provou constituir escandalosa e despiciente falsidade, expeliu, durante o resto da viagem, calorosos protestos dinamizantes, contra os fascistas arrogantes e visivelmente despolitizados.
Utilizei este argumento da mulher do povo pródiga em epítetos injuriosos, resultantes, decerto, das tais sessões televisionadas e atacantes do regime anterior, contra a tese da humildade tradicional do nosso bom povo hospitaleiro, defendida pela nossa professora, experiente e bem intencionada, mas em virtude do seu alheamento dos programas informativos audio-visuais, não se dando conta das mudanças temperamentais sofridas por esse bom povo, que Fernão Lopes já descrevia como extremanente apaixonado.
Também na rádio, além das canções e dos noticiários explosivos e convincentes, se apresentavam, por vezes, programas informativos dinamizantes, com valiosas achegas culturais, como o de um diálogo entre duas senhoras sobre a necessidade de três meses de férias após o parto. Interrogada sobre o motivo da presença indispensável da mãe junto do filho nos três primeiros meses, a informadora respondeu objectiva e concretamente que tal assiduidade era imprescindível por causa do chichi do bebé, requerendo constante mudança de fraldas. Pudemos assim escutar uma defesa dos interesses das parturientes a um nível revolucionário-progressista, por meio de uma linguagem simples e acessível a todas as camadas, para maior pressão sobre os órgãos legisladores, certamente também sensíveis à simplicidade e precisão vocabulares.
Uma sociedade inteira soçobrava na inquietação e desequilíbrio económico, mas dos mesmos que assim sentiam o naufragar dos seus destinos e da sua pátria partiam anedotas políticas cheias de oportunidade e espírito que intimamente me acabrunhavam, por observar nesse escape, espécie de vingança estática, a nossa eterna inconsciência e falta de aptidão para o trabalho sério e actuante. A anedota ia suprindo assim uma acção enérgica, indispensável para pôr cobro a um processo de galopamento político apelidado de revolucionário, e que infringia todos os princípios democráticos prometidos no início da revolução.
Alguns professores de português, perfeitamente – “ou du moins en ayant l’air” – esclarecidos a respeito da ideologia marxista, conquanto menos a respeito dos trâmites lexico-gramaticais dos textos a explorar, propunham-se politizar os seus alunos, reconhecendo a utilidade dessa orientação pedagógica, para a revelação das suas personalidades actualizadas e vitalizantes. Rádio, televisão e certa imprensa, miraculosamente se revelavam todos adeptos das esquerdas, sem ninguém a contrariar tal imposição ideológica, pouco inteligente, porque menos ecléctica. Na imprensa, sim, vozes discordavam, fervorosamente lidas por um povo que via tombar de novo sobre si o espectro fatal e hereditário da opressão.
E na “Ilha da Purificação”, onde se pretendera existir uma paz podre, a ânsia da paz real conduzira o seu povo do continente à miséria, e o ultramarino à degradação, à morte e à ruína.
Se se caía no descuido de denunciar a nacionalidade ultramarina, logo uma voz ou duas surgia, interrogativa e insinuante: “Porque não volta para África, se é a sua terra?” Mas fora terra portuguesa, cujas fronteiras portugueses haviam delimitado a poder da sua coragem, e onde se vivera numa relativa paz, tentando desenvolver os territórios legados pelos antepassados e continuar o nome de Portugal, ajudando à sua própria manutenção económica. Porém, contrariamente a esses factos verdadeiros, o que prevalecia no sentimento dos metropolitanos, que os haviam apunhalado traiçoeiramente pelas costas, entregando-os, completamente indefesos, aos negros vingativos, era a justificação de que cada português colono fora necessariamente um colonialista e explorador, personagem que enriquecera sugando o negro por todas as formas, esquecidos de que os sugadores mais efectivos, além da nação portuguesa em si, haviam sido precisamente esses dos metropolitanos que, de passagem por aquelas terras, enviavam para estas os frutos pródigos da sua estada fecunda. Desde os donos metropolitanos de bastas fazendas ou fábricas ultramarinas, exploradas a preceito a distância, para poderem proporcionar aos seus donos ausentes uma “dolce vita” europeia, desde os governantes, aos altos chefes, a todos os das comissões de serviço ultramarinas que deixavam na terra-mãe grande parte dos seus proventos, todos eles assim foram empobrecendo as terras que, já fartos e enfastiados, entregaram finalmente aos naturais negros, sem contemplação para com os seus irmãos brancos, que nessas terras haviam tentado orientar as suas vidas sob melhores ou piores auspícios, como em qualquer outra parte do mundo, dando cada um o seu contributo para o desenvolvimento daquelas, desenvolvimento que ao branco sobretudo se devia, mas cuja acção se olvidara, na pressa metropolitana, perfeitamente estulta, de se livrarem da carga, ultrajando a memória dos que por ela combateram e cobrindo de opróbio o exército português. E o ferrete de colonialista ficara para sempre a aureolar a fronte de cada colono, tratado sem contemplação no seu regresso à pátria e a quem se desatendiam facilmente os interesses que se acordara respeitar. “Porque não torna para lá?” perguntavam os metropolitanos ansiosos e perfidamente insinuantes, reparando tarde nos efeitos prejudiciais de uma descolonização acelerada que só lhes podia tirar o sossego, dadas as avalanches que diariamente desembarcavam nos aeroportos, ameaçando a doce paz antiga.
(
Continua)

Nenhum comentário: