quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Evolução (Continuação)

Transcrição de um texto dos anos 70 (de antes do Golpe), em África, contido em Pedras de Sal (1974), e, em 2ª edição, em Cravos Roxos (1981):

“Aqui há pobres:
A caridade é uma virtude que se deve estimular com fervor logo nas crianças, sempre muito receptivas aos estímulos.
Contava-me há dias um amigo um episódio a propósito, passado com escuteiros:
Todos os dias eles deverão praticar uma acção generosa para obedecerem às máximas da sua estóica organização. Um dia, dois escuteiros, por falta de motivações, davam voltas ao cérebro para conseguirem praticar o seu acto generoso daquele dia. De repente, avistam uma senhora idosa passando, agarrada ao seu bordão, no passeio em frente. Logo os bravos rapazinhos se precipitam sobre a senhora espavorida, ajudando-a, cautelosamente, a atravessar a rua. A senhora esbracejava, mas os garotos não quiseram perder a oportunidade da boa acção e transportaram-na, sã e salva, ao lado de cá. Quando, finalmente, a velhita furiosa conseguiu explicar-lhes que o seu destino era o lado de lá, pos gentis rapazinhos reconduziram triunfalmente a senhora ao ponto de partida, duplicando, deste modo, a acção esmoler do dia, sem dúvida lançada em crédito sobre o dia seguinte.
Censurei o humor negro do meu amigo, motejando sobre as coisas dignas, e apontei as inúmeras vantagens de uma conduta caridosa, de entre as quais avultam a inefável pacificação espiritual, o contentamento de alma, bem patentes no zelo altruístico dos dois escuteiros.
Por isso exultei hádias, ao ouvir uma frase agradabilíssima aos meus anseios espirituais: “Até ao dia de hoje não têm faltado pobres na nossa terra, e também quem deles se lembre”.
Sim, graças a Deus assim é. Não faltam pobres, felizmente, na nossa terra. Na Metrópole também não, tive a grata ocasião de o observar recentemente. Tanto ceguinho por lá, pelas ruas, a cantar! Bem, nem todos cantam! E outras mais espécies existem, fartamente. Não me cabe a mim especificar, tarefa essa muito mais digna de um Cesário ou um António Nobre.
Ainda bem! Não fossem os pobres e aqui estaríamos nós, os generosos, sem podermos dar vasão às aspirações da nossa alma.
O Joracy Camargo é que tinha razão quando demonstrava, pela voz experiente do seu mendigo, a necessidade da existência dos pobres numa sociedade bem organizada. Talvez sem eles jamais os ricos pudessem merecer o céu, com os quais resgatam uma consciência por vezes menos perfeita.
Eu também tenho os meus pobres – além de colaborar em todas as associações caritativas, incluindo a do “Zé dos Pobres”. Não quero significar com isto nem excessivas riquezas materiais, nem pecados ocultos de que pretenda livrar-me por uma conduta caridosa. Tenho-os porque gosto, naturalmente, de dar, alegre como sou, e o dar desenvolve-me a capacidade bendita da alegria
Por isso achei extremamente aprazível a frase ouvida há dias num virtuoso programa da nossa Rádio: “Até ao dia de hoje não têm faltado pobres na nossa terra, e também quem deles se lembre”.
Assim seja sempre, para felicidade de todos nós...”

Foi este espírito de generosidade cristã que nos marcou especialmente o carácter, de par com uma certa irresponsabilidade de conduta naquilo em que nos devíamos, de facto, empenhar, que exige reflexão, profissionalismo, valores ligados ao espírito e à vontade de progredir. Habituados ao improviso, ao atamancamento, às pressas, que custam menos em esforço, em vez de construirmos racionalmente e organizadamente, também aceitamos facilmente uma situação de precariedade, de parasitismo, em vez de lutarmos por transpor as barreiras das dificuldades.
E a expressão “não têm faltado pobres na nossa terra e quem deles se lembre” assim nos define, no miserabilismo da aceitação e da resignação, de que se aproveitam cada vez mais os abutres do poder, distribuindo subsídios – esmolas – assim camuflando, com uma falsa bondade, os seus atropelos de proveito próprio, eles próprios parasitas de um "status quo" criado pelas políticas europeias.
Estamos mais pobres do que nunca, e sabemos porquê.

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