quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Peregrinando

Foi a propósito dos apartes de que se usa e abusa no nosso Parlamento que, contrariamente ao que acontece no teatro, onde se pressupõe que só atinjam os ouvidos das plateias, são utilizados por alguns deputados para atingir o orador de ocasião, que, com isso, muitas vezes perde a tramontana, respondendo sem aprumo e provocando mesmo a desordem do nosso desequilíbrio parlamentar.
Apareceu uma nossa amiga e logo a seguir uma amiga dessa, que se puseram a trocar mútuas graças, acompanhadas de apartes da primeira que entrou, com a mão em pala, só para eu ouvir, e fiquei nervosa, com receio de que a outra percebesse.
Novamente sós, fiz um comentário de desagrado aos apartes com a mão em pala, mas a minha amiga falou em idade, em doença, em solidão da nossa amiga dos apartes, e assim calei o meu protesto.
- Eu acho horrível uma pessoa viver só. Algumas defendem-se como esta, cumprindo escrupulosamente o seu prazer diário de se juntarem todas num café, para preencherem o tempo e percorrerem a caminhada da sua ginástica diária para manutenção da elegância. Mas no inverno, às cinco da tarde...
- “A las cinco de la tarde, eran las cinco en punto de la tarde”...
A minha amiga desdenhou da erudição, embora, em minha opinião, perfeitamente adequada.
- Às cinco da tarde, as mulheres que vivem sós – é uma longa noite até ao dia seguinte, até de manhã. Muitas têm filhos e netos, mas não aparecem, embora algumas tentem encobrir isso, em explosões de orgulho dissimulador da frustração: “Eu tenho uns filhos maravilhosos”, dizem elas. Mas não aparecem, ou raramente o fazem, conheço vários casos.
- Também é triste para os homens.
- Os homens, talvez ainda pior. Mas têm mais possibilidade de sair sozinhos tarde.
E foi então que falei do sr. Basílio, que às vezes se sentava connosco – o meu marido e eu - na esplanada do café, procurando o calor da presença humana, falando repetidamente dos tempos de África, onde pensava voltar, eterno inadaptado à nova ordem. Vivia só. Às vezes, em dias de festa, ia almoçar com a família, que passava a buscá-lo. Mas um dia, um comboio compassivo trucidou-o, quando atravessava descuidadamente a linha férrea. Não, não esqueço a sua figura errante, a fingir obrigações, perdido no seu abandono. Também encontramos outros, que vivem num lar de idosos, que, tal como nós – meu marido e eu – saem para a bica diariamente, um deles muito sério, agarrado aos seus jornais e livros, outro delicado, de andar difícil e arfante, que sempre nos cumprimenta, parando, a tomar fôlego. Os lares! Triste remedeio, mas necessário, nos dias apressados de agora. Ponderei:
- Se eu tivesse um lar, gostaria que fosse um espaço de convívio e amizade, com biblioteca, e danças, e jogos e entretenimento, com eventuais trabalhos segundo as habilidades de cada um, para se sentirem úteis e vivos. Com empregadas simpáticas e alegres e educadas, que não fossem como algumas que já vi, dando ordens grosseiramente, os velhos atirados para uma sala com televisão, alguns nas suas cadeiras de rodas, isolados uns dos outros, de estarrecer.
A minha amiga concordou. E pôs também a tónica na indiferença de muitos familiares que nunca têm tempo para os visitar:
- A mudança que se dá nas vidas! Tiveram casa, família, trabalharam, amaram, criaram raízes, criaram o seu mundo. E um dia, ninguém mais tem tempo para eles. Toca de os enfiar num espaço a que nunca pertenceram a que nunca pertencerão.
- O José Pacheco Pereira no seu ABRUPTO frequentemente coloca imagens de um banco, às vezes ocupado por velhos, a que deu o título “Passagem do tempo por um banco do jardim de Santo Amaro”, expressivo de toda essa desolação. E a magnífica interpretação de Jacques Brell da canção “Les Vieux”, é bem sugestiva desse mundo vazio e angustiante da carreira final da vida humana, hoje em dia, embora o universo descrito nela seja mais sofisticado do aquele que se nos depara na nossa terra:

« ... Et s’ils tremblent un peu
Est-ce de voir vieillir
La pendule d’argent
Qui ronronne au salon,
Qui dit oui, qui dit non
Qui dit : « Je vous attends ! »…


Ainda esta manhã ouvi a canção de Jacques Brell, pela Internet. Mas lembro igualmente a maravilhosa obra de Alçada Baptista “Peregrinação Interior” em dois volumes, onde o problema da velhice, doença e morte também são magistralmente descritos, por entre a vária temática de auto-análise existencial, e não resisto a transcrever o passo seguinte, do 2º volume:

“Como disse, não sei, rigorosamente, se a angústia do tempo é natural mas não tenho dúvida que, ao retirarmos a morte e o sofrimento dos nossos planos de vida, construímos uma civilização e um homem que transporta sobre os ombros, cada vez mais agudamente, a tragédia de viver e a tragédia de morrer. Assim, quando em certa altura sentimos o barulho da morte, ela surge-nos como uma obscenidade, como um intruso que desmanchasse os prazeres dum interminável festim. A verdade é que, com isso, nos condenámos à morte antecipada do abandono e da solidão porque, não obstante todos os impedimentos que fomos decretando para proibir o nosso convívio com ela, a morte surge, em forma de angústia, a acompanhar-nos muito tempo antes do dia final.
“Um processo de astúcia colectiva empenhou-se em varrer da vida quotidiana o lixo do tempo e das dores. Impiedosamente, empurrámos velhos e doentes para o lado do mundo para que morram, entre eles, por lá. Subtilmente criou-se a morte-ficção dos audio-visuais: a guerra, os índios, os “cow-boys”, as várias abstracções em que todos heróica e alegremente se entrematam, e onde não é possível reconhecer o mistério que envolve essa banalidade agónica que é o nosso fim concreto e nossa pobre, obscura e inglória morte, sofrida no mais profundo da nossa condição.
“O problema parece que se resume em retirar quanto antes os doentes de casa, não vão eles fazer a partida de morrer por ali. Despachamos, lestos, os defuntos pelas escadas de serviço: é preciso escondê-los depressa no caixão, no carro funerário, no cemitério, e retirar a sua presença incómoda a perturbar o nosso modelo “feliz”. Ora, os enterros, com a sua solenidade e o seu peso, era o pouco que nos restava das antigas “festas da morte” e eram elas que davam todo o sentido à consagração comunitária daqueles que com os outros viveram, para lá das dores individuais dos que perdiam parentes e amigos. A realidade é que, se uma comunidade sente que já nada tem que ver com aqueles que morrem, é porque, antes disso, deles completamente se desligara e lhes retirara presença e função. Com isso criámos uma tragédia dupla: os velhos e os doentes não têm outra perspectiva do que morrer na solidão. Os vivos, sobretudo os mais jovens, ficam impossibilitados desta confrontação quotidiana, dolorosa mas indispensável à nossa aprendizagem de viver numa perspectiva de tempo. A vida e o amor não são um breve encontro: são um círculo de tempo que vai do vagido da criança à memória dos antepassados, que nos segura à nossa própria história e à nossa mais profunda identidade.»

É certo que Alçada Baptista, na questão da morte, que se despacha para os hospitais, não teve em conta os desacatos terroristas e banditistas que se praticam no mundo inteiro com cada vez maior desprezo pela vida, referiu-se apenas a uma sociedade mais acelerada, quando não insensível, herdeira daquela outra mais conservadora que foi a da sua infância burguesa.
Mas a sua análise tão pertinente é bem um hino de amor à vida e à verdadeira solidariedade, criada no respeito pelo ser humano. Só que tais preceitos humanistas são incompatíveis com as realidades atrozes do quotidiano de urgência e afundamento dos vivos.

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