sexta-feira, 6 de novembro de 2015

«Coitado do Álvaro de Campos!»



Três artigos da revista do Expresso – E – “O Inimigo Maior”, de Clara Ferreira Alves: “Liberdade ou irritação» sobre Salman Rushdie,  – “As 1001 mortes de Salman Rushdie, como se lê na capa, com o rosto do escritor - uma Entrevista de Luís M. Faria; “Sem direito a humanidade”, julgo que tradução de uma Entrevista de Katya Delimbeuf em Londres (O Expresso tendo viajado a convite da Penguin Random House, segundo a informação final – são, entre muitos outros de muito interesse, suficientes para comprovar a qualidade do semanário Expresso, na busca de temas de grande dimensão e de jornalistas de grande qualidade.
Textos que nos trazem casos de horror e de monstruosidade deste nosso século que nos fazem de novo arremessar, em paralelo, para os extermínios nas guerras do século passado, e os comboios a abarrotar de gente, como gado, para um destino desconhecido, que encaramos sempre como pesadelo, e que comprovam que o mundo mexe e remexe, no medonho  dos casos ou das mentes ou dos cataclismos de uma Terra ela própria enfurecida, e sempre na previsão de que amanhã será pior, mau grado o progresso ou talvez por causa dele.
É o artigo sonoro de Clara Ferreira Alves que, nos seus sarcasmos e contundências verbais, apaixonadas por um ideal de justiça, aponta os casos da gente aterrorizada que invade a Europa, por esta em grande parte repelida e agora pelos próprios elementos climáticos– “O Inimigo Maior”. Transcrevo a parte final do seu texto, o Expresso não me permitindo que o faça por transposição imediata:
« Os migrantes beneficiados, os que a Europa adotou como força de trabalho a incorporar nas máquinas industriais e agrícolas (até os nossos socialistas sugeriram pôr os sírios a limpar as matas), gastaram os bens a penetrar na fortaleza. A sua integração será difícil, na Alemanha crescem já os movimentos xenófobos e as manifestações pela perda dos “valores alemães”. Nas águas do Mar Egeu, as brigadas do partido Aurora Dourada, vestidas de negro e com caras tapadas, atacam os barcos do tráfico. Ninguém sabe quantos afogados esta guerrilha já provocou. O jornalismo só se deteve no cadáver da criança na praia e na estação de Budapeste. Nas fronteiras da Croácia e da Sérvia com a Hungria, estão milhares de pessoas afogadas em lama, estão crianças a chorar e a tiritar, estão os que não conseguiram entrar e não têm para onde recuar. Vamos deixá-los apodrecer nos Balcãs Ocidentais quando vierem as neves? A matilha debandou. A história morreu. Vamos deixá-los ao frio, embrulhados em sacos de plástico, até morrer outra criança que comova os corações.»
A profusa reportagem e entrevista a Salman Rushdie, um escritor cujos “Versículos Satânicos” transformaram em fugitivo condenado à morte pelo Ayatollah Khomeini, mostra um homem provocador que continua combatendo a causa da liberdade de expressão, num desafio contra os extremismos islamitas, e figurando já como espécie de vedeta pouco amável para com os entrevistadores, mostrando as feridas de fera acossada. Transcrevo o final da entrevista, como exemplo:
«- Já era um escritor importante, mas graças a Khomeini tornou-se um elemento central da cultura contemporânea, a par de muitas coisas que nada têm a ver com literatura. Ficou mais consciente (ou menos defensivo) em relação à cultura popular com os anos?
- Sempre tive interesse, e usei, a cultura popular desde o início da minha obra. Você sente de novo a necessidade de agradecer a Khomeini pela minha reputação. Acho que vou encerrar esta conversa.
- Finalmente, pode dizer-nos algo sobre a sua vida hoje em dia?
- A minha vida é excelente, muito obrigado por perguntar. Também é privada.»
Quanto à entrevista a Yeonmi Park, jovem de 22 anos que ouvi também na Internet contando em lágrimas bem sentidas os horrores por que passou a fugir do seu pais, a Coreia do Norte, num apelo ao mundo para que libertem o seu país da ditadura dos Kim, transcrevo apenas a introdução à entrevista, suficientemente esclarecedora de quanto o mundo dos com mais poder pode admitir ainda tanta barbaridade, sem intervir, quer a nível interno quer a nível externo:
«Não é suposto uma criança passear na rua e cruzar-se com cadáveres. Não é suposto enganar a fome comendo flores e gafanhotos fritos. Mas esta é a realidade de 25 milhões de norte-coreanos que vivem no país mais isolado e esquecido do mundo. Também não é suposto uma menina de treze anos atravessar a fronteira a pé, ainda com os pontos de uma operação na carne, para fugir à fome e à falta de esperança. Muito menos é suposto ver a mãe ser violada à sua frente pelo intermediário que as deveria ajudar a chegar à China. Como também não é suposto ser ela própria violada e trocada de mão em mão como mercadoria. Mas este tráfico de seres humanos em que caem milhares de norte-coreanas que tentam fugir do seu país, na perspectiva de uma vida, foi o que aconteceu a Yeonmi Park. Uma menina de 22 anos que passou os últimos oito a tentar sair do inferno. Conseguiu. O Ocidente sabe pouco do quotidiano da Coreia do Norte. Conhece o ditador , Kim Jong-Un, e o arsenal nuclear usado como permanente ameaça, mas ignora as provações por que passa a população daquele país desde que há 70 anos os ditadores Kim tomaram o poder. Yeonmi Park viveu na pele essas privações. Viu o pai ser preso e levado para um campo de “reeducação” onde quase morreu, por ter um negócio de contrabando. Passou dias inteiros sem nada para comer. Até que o desespero a levou a tentar dar o salto. Sem sonhar que do outro lado o pesadelo não iria ser pior. Conversámos com ela em Londres.»
Um mundo de atordoar. Respiremos – se é que conseguimos – divertindo-nos um pouco com as lamentações egoístas do nosso Álvaro de Campos. As dores da alma também têm o seu peso neste mundo cruel, embora ditas em certo tom chocarreiro:
«Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.»

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