E ele aqui está, contando como tudo foi, como tudo é, diferente
do que foi. Começou com o estabelecimento do conceito de “soberania limitada”
por conta dos países do Pacto de Varsóvia, exemplificada com a invasão da
Checoslováquia em 1968 por quem se achava no direito de impor as suas normas de
força bélica. A Guerra Fria resultou daí, mas o grande Gorbachev livrou-nos
desses muros e pôde construir-se uma Europa de solidariedade económica,
fundamento de uma democracia de grande solidariedade, que, segundo José Pacheco
Pereira não passa de mascarada, já que tal democracia se baseia puramente em
dinheiro jorrando, no sentido inverso ao daquele que jorrou à partida, pelo
pagamento, ao que parece, supérfluo, das dívidas. Daí que democracia não há por
cá, já que a “direita” destruiu a economia – (que, ao que se diz, nunca houve,
e muito menos após as destruições dela durante o PREC) – e ao insistir no seu
direito de governar, já que ganhou as eleições, embora Pacheco Pereira tenha
sido o primeiro a alvitrar que não ganhou.
Este seu
historial do que foi e do que é o definem, na sua estrutura mental de muito
saber e na sua estrutura moral de muito pecar. Porque é pecado tanto ódio,
tanta malvadez para com essa direita que não lhe fez mal a ele, uma direita que
entendeu justamente ser necessário redimir uma dívida e tudo fazer para
resolver um problema de débito, ainda que momentaneamente o país empobrecesse a
vários níveis. Mas era preciso acreditar nos indicadores positivos de recuperação,
e isso é que os Pachecos Pereiras da nossa praça não querer enxergar.
Ele aí está o Pacheco Pereira em toda a sua dimensão.
Ilimitada.
Teoria da democracia limitada
1.
Em 1968, a URSS e um grupo de países do Pacto de Varsóvia invadiram a
Checoslováquia em nome da teoria da soberania limitada. Frente aos interesses
prioritários do “campo socialista”, a independência da Checoslováquia era
secundária. Hoje, a teoria da soberania limitada é a essência daquilo que se
chama a “Europa”, ou as “regras europeias”, que nada tem que ver com a intenção
original dos fundadores da União Europeia. Não se faz com as lagartas dos
tanques, mas com a torneira do dinheiro.
2.
Todos os fundamentos do processo de integração europeia estão de há muito
abandonados, e o que existe é uma coisa muito diferente e contrária ao projecto
inicial dos fundadores que veio com as tropas americanas para a parte da Europa
que ficou fora da ocupação soviética e que foi consolidado com o gigantesco
esforço de solidariedade do Plano Marshall. A Guerra Fria ajudou
a consolidar a vontade de construção de uma outra Europa, de democracia, paz
e cooperação, mas estes fundamentos não existem na “Europa” que hoje se invoca
para pôr na ordem os países mal comportados. E esses princípios originais
eram claros: a “comunidade” era em primeiro lugar uma construção política
para acabar a guerra na Europa; todos os membros da “união” eram iguais
em poderes e direitos, mesmo que cada um soubesse que era desigual; nunca se
dava um passo sem que isso correspondesse à vontade colectiva de povos e
governos; esses passos eram “pequenos” e prudentes, porque havia a consciência
de que na Europa as nações têm muita história e interesses diversos, e, também
por isso, deixavam-se de fora políticas de defesa e segurança (que ficavam para
a NATO), e negócios estrangeiros que deviam ser minimalistas. A “alma” da
“comunidade” era a Comissão e não o Parlamento, e muito menos o Conselho.
3.
O outro aspecto essencial era o de que a política da “comunidade” era
solidária, como tinham sido os americanos com o Plano Marshall e, com Delors,
instituía-se a ideia da “coesão social”, ou seja, uma deslocação de recursos
dos países mais ricos para os menos desenvolvidos. Sendo assim, com os
“pequenos passos” de Jean Monnet, a “comunidade” deu grandes passos.
4.
O que aconteceu depois foi que tudo isto foi mudado: o experimentalismo
político vanguardista substituiu os “pequenos passos”; à medida que as coisas
falhavam em baixo, acelerava-se em cima; o medo ao voto foi crescendo à medida
que “projectos europeístas”, como a Constituição Europeia, caíram aos pés do
“canalizador polaco”; o receio de que os países do centro e do Leste na Europa
pusessem em causa o poder do “motor franco-alemão” (e que os
agricultores polacos quisessem receber o mesmo que os agricultores franceses…)
foi criando uma hierarquia, depois um directório e depois um poder solitário da
Alemanha; o crescimento do poder da burocracia de Bruxelas, que acha que sabe
melhor como governar os países do que os parlamentos e governos; as divisões
sobre o Iraque; o cepticismo inglês que cresceu com a ideia de que “um buldogue
inglês é melhor do que uma couve-de-bruxelas”; e uma patética e perigosa
política externa que destruiu a Líbia ajudou ao incêndio sírio e gerou a guerra
civil da Ucrânia. Chega?
5.
Não chega. Há mais e, agora, cada vez mais é no cerne da soberania e da
democracia que a “Europa” suga como um vácuo. Deu-se então a tempestade
perfeita, a crise bancária de 2008, chocando com uma Europa dominada pelos
partidos conservadores do PPE, a começar por esse tandem altamente capaz
Merkel-Schäuble, acolitado pelos anões em que se tornaram os partidos
socialistas europeus. A resposta à crise financeira foi transformá-la
artificialmente numa crise de outra natureza, a das dívidas soberanas, e
tornar essa crise num poder sólido dos alemães que se exerceu sempre como poder
político. Tudo começou com a punição à Grécia, que o PPE, aliás,
governava com a Nova Democracia e o Pasok, e depois Sócrates, mais a “coligação
negativa” que o derrubou, entregou-lhe, com regozijo do PSD e do CDS, Portugal
numa bandeja.
6.
Depois é que se sabe: da troika ao Governo dos não “piegas”, a utilização de
uma ideologia da austeridade e do “não há alternativa” para proceder a uma
engenharia social que destruiu uma parte da classe média, desequilibrou as
relações laborais, transformou o desemprego num meio de baixar salários e
acelerar a precariedade, tornou os velhos um fardo e violou todos os contratos
com os mais fracos para manter aqueles que eram sacrossantos com os mais fortes.
Portugal retrocedeu dezenas de anos, sem que haja uma única mudança
estrutural que possa ser creditada a esta governação. E, pior que tudo,
disseminou com sucesso, mas como um veneno, uma concepção egoísta entre os
portugueses, que passaram a olhar para o vizinho do lado com ressentimento e
inveja, ou porque tinha emprego, ou porque tinha direitos e força para os
manter, ou porque tem uma pensão “milionária” de mil euros, em vez de olharem
para cima. Pergunta-se “quem paga” a quem é aumentado 1,80 euros na sua reforma
de 600 euros, e não a quem meteu milhares de milhões para salvar um banco ou
para comprar um parecer a um escritório de advogados, ou a uma consultora
financeira, depois de ter atirado para fora da função pública os funcionários
competentes que o podiam fazer. Quem paga? Nós. Mas a pergunta certa devia ser:
quem é que não paga e devia pagar?
7.
Daqui resulta que, na Europa de hoje, apenas no espaço da soberania é que
ainda há uma possibilidade de democracia. Quanto mais soberania, mais
democracia. Daí a pressão contínua, nunca sufragada pelos povos, para tornar a
“Europa” e “Bruxelas” numa sede de poder que obedece à sua burocracia e aos
partidos do PPE, para retirar aos parlamentos nacionais e aos governos qualquer
poder de decidir sobre o destino dos povos e das nações. O meu voto vale
quase nada e, quando o uso para valer alguma coisa, há que pedir novas
eleições. Tantas quantas forem precisas para haver um resultado “europeu”,
amigo dos negócios, amigo do “não há alternativa”, amigo de colocar na ordem
sindicatos e partidos desalinhados.
8.
É essa possibilidade que hoje está a ser atacada com aquilo a que chamo "a
teoria da democracia limitada", forma de interiorizar e materializar a soberania
limitada. Com mais ou menos sofisticação, significa que votem os povos como
quiserem, quem manda são os mercados. Na verdade, a frase mais correcta é “mandam
os partidos dos mercados”. E os “partidos dos mercados” são a expressão
orgânica dos grandes interesses financeiros – o eufemismo é “os nossos
credores” –e representam a desaparição do primado do poder político sobre o
poder económico, ou seja, da autonomia do poder político assente no voto numa
democracia.
9.
Portugal está nessa encruzilhada. O governo do PSD-CDS é o que a “Europa” do
PPE quer e precisa para não haver contágio em Espanha. O governo do
centro-esquerda do PS, com apoio do PCP e do BE, não só não pode ter sucesso,
como nem sequer pode existir como possibilidade, para o caso miraculoso de
mostrar que “há alternativa”. Não é um jogo a feijões – é um jogo,
se se pode chamar assim, em que estão todos os grandes interesses europeus e
nacionais que agitam fantasmas, que vão da CGTP ao PREC, para gerar o medo e
impor o monopólio político da direita. É verdade que o mecanismo ideal da
teoria da democracia limitada é ver os partidos socialistas a fazerem a
política da direita e com a direita. Mas isso parece falhar em Portugal, como
já falhou no Partido Trabalhista inglês. Não é porque Costa seja um Corbyn
– não é certamente –, mas porque a recusa visceral de que “os mesmos”
continuem a governar, traduzida em 62% dos votos, mudou as regras do jogo e
levou o PCP a abrir uma porta que nunca tinha sido aberta e pela qual entraram
o PS e o BE.
10.
Não sei se vão falhar, tudo aponta para que as dificuldades sejam imensas. Mas
há quem deseje ardentemente que falhem, mesmo que isso signifique dar cabo da
economia que resta, criar um sério conflito institucional entre um governo em
gestão a testar sempre os seus limites (como fez com a TAP), um Presidente que
será pressionado para meter na gaveta tudo o que uma Assembleia hostil decidir
e uma Assembleia a ter de “governar”, sem ter o governo que apoia em funções.
Isto, sim, é o PREC. Aliás, nada é mais parecido com a linguagem e as atitudes
do PREC do que o que diz e o que faz a direita radicalizada que hoje temos.
Obra da “Europa” da soberania limitada, a querer impor à força uma democracia
limitada. E não é com “eles” – é connosco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário