Na página seguinte àquela – 12 - em que Alberto
Gonçalves tem o seu artigo no DN, onde extravasa as fúrias da sua
sensibilidade, inteligência e bom senso, soterradas sob a capa da irracionalidade
e vileza do envolvimento nacional, na página 13, pois, conspurcada também pelas
viscosidades analíticas de Pedro Marques Lopes, leio, entre as “frases do
dia” para ficarem na história, a frase de Jerónimo de Sousa, na qual
nem uma vírgula distorce o pensamento de metralhadora há longos anos a disparar
para a mesma banda, não me atrevo a comparar com os pingos da chuva caindo
monotonamente das telhas, que esses são belos e puros, convidando ao sonho, à
evasão para um mundo de ideais, e esses de Sousa são bestificadores,
monocórdicos, sem que ele se disponha a libertar-se dessa sua expressão obsessiva,
estagnada, já, pelos anos, putrefacta. E todavia, vai finalmente ter a
compensação de ver realizados os seus slogans que repete, entre as frases do
dia: “Há condições para resposta urgente a problemas e aspirações dos
trabalhadores e de vastas camadas da população vítimas da política de
exploração e de empobrecimento dos últimos anos.” Condições,
aspirações, populações, explorações… O seu tratado, a sair da putrefacção.
Sem, todavia, justificação das condições dessas soluções vagas, adiadas para
quando for a mosca que empurra o coche da fábula, o que não tarda aí.
Outra frase colossal do dia, a de José Sócrates, que
muitas mais vai pronunciar, na liberdade de expressão que o país concede aos muitos
exemplares da deficiência pátria, crianças brincando à cabra-cega, felizes
quando apanham o incauto que o vai substituir: «Não é apenas o governo
que é novo, é também este tempo político. É o começo de um novo começo. Nada
nos soa melhor do que os inícios.” Mas até me custa perder tempo com
tais bacoradas neste autêntico curral da nossa infeliz e inocente chavasqueira
pátria.
Finalmente, a frase ambígua de Marcelo Rebelo de
Sousa, que anda também a fossar no seu próprio curral - mais um que fará
lembrar com saudade o Cavaco Silva da aparência de humildade e timidez, mas que
por várias vezes foi timoneiro da nau tantas vezes sem rumo, nau uma vez mais à
deriva, após o aval concedido aos novos corsários assaltantes deste pobre “Santa
Maria” que ele já não pode defender e Marcelo se propõe desfazer, na loucura
infrene das suas vaidades e ambições de rato roedor da rolha da garrafa… Eis a
sua “frase do dia”: «Entendo que não há condições para uma revisão
constitucional nos próprios tempos. O país tem outros desafios, precisa de um
governo que governe.»
E assim nos vai. É a história de S. Frei Gil de
Santarém, que Eça conta em forma de lenda inacabada, o moço D. Gil procurando a
raptada Solena, seu primeiro amor, qual Quixote libertador de donzelas, e ao
passarem pelo castelo de Lanhoso, ao som da sua buzina, “dois homens
correram, com chuços, gritando: - Cá por aqui é honra! A que vindes?”
Mas a arremetida de D. Gil fica gorada pelos conselhos do seu acompanhante:
«D. Gil, cujos olhos faiscavam, colhera as rédeas,
apertava a lança – mas já Pêro Malho o retinha, com bom conselho. De que
servia brigar? Com sete homens não se assaltava um castelo.»
Aceitemos, pois, os conselhos destes nossos Pêros
Malhos – há outras prioridades, vamos a elas, não há homens suficientes para ocupar o castelo, os dos chuços se impõem, para conveniência dos novos barões da falcatrua.
Embora continuemos a ler outras leituras que confirmem
as nossas brigas, mesmo na saudade e na mágoa. Leiamos as brigas de Alberto
Gonçalves, tão excelsamente produzidas:
Alberto Gonçalves
DN, 9/11/15
Crime deles castigo
nosso
Esqueçam por um minuto as circunstâncias de e as simpatias ideológicas: com a possível
excepção dos tarados que se expõem a velhinhas, haverá alguém provido de menos
amor-próprio do que um deputado que abdica da liberdade em prol da respectiva
direcção partidária? Um representante dos eleitores que deixa outros
decidirem por ele, e decidirem em sentido contrário às suas convicções (?), não
só não representa ninguém como não merece fazê-lo. Antes de constatar que a
"frente popular" é uma ameaça à democracia, convém apurar se
preencher o proverbial "hemiciclo" com pulgas amestradas tem alguma
coisa de democrático. Das muitas maiorias que se conseguem inventariar na AR, a
mais preocupante é a maioria de funcionariozinhos resignados à "disciplina
de voto", óbvio eufemismo para o sistema de subserviência em vigor.
Não vale a pena falar da extrema-esquerda: ser
deputado do Bloco ou do PCP sempre foi uma confissão de renúncia mental, o que
até condiz com a veneração do "colectivo" a que o marxismo obriga e o
esmagamento do indivíduo que o fundamentalismo exige. Por definição, um
parlamentar comunista possui tanta independência quanto os centro-campistas dos
matraquilhos. E vive bem com isso, coitado. Não é por acaso que o adjectivo
"irreverente" costuma andar associado a essa gente: é por sarcasmo.
Mas talvez valha a pena falar do PS. À semelhança dos
partidos à sua direita, o PS não exibe um historial riquíssimo em matéria de
autonomia e debate internos. Porém, exibe um currículo suficientemente plural
para que os acontecimentos do último mês se aproximem da aberração.
A aberração começou com o silêncio que se seguiu à
estratégia do Dr. Costa para escapar à derrota eleitoral e às consequências de
um currículo sem préstimo. Fora três ou quatro excêntricos, para cúmulo
reformados da AR, os socialistas assistiram mudos às primeiras manobras do
exercício. E mudos permaneceram quando diversas relíquias museológicas do
partido explicaram a Cavaco Silva que nomear Pedro Passos Coelho seria uma
"perda de tempo". E mudos continuaram quando, nomeado Passos Coelho,
toda a gente o declarou a prazo. E mudos provavelmente ficarão quando, na
semana que vem, forem chamados a derrubar o governo e a atirar o PS para o
apertado abraço de estalinistas e "bolivaristas". E a despejar
Portugal no Terceiro Mundo.
Eis a artimanha dos que inventaram a coligação
"antiausteridade": ao mesmo tempo que se exigia respeito pelo
Parlamento, reduzia-se, pelos vistos com propriedade, o Parlamento
"antiausteritário" a um bando de nulidades mortinhas por obedecer às
alucinações do chefe - desde que as alucinações lhes assegurassem emprego
imediato e ainda que desgraçassem o país.
De início, não faltou quem contemplasse isto com
ingenuidade e esperasse um levantamento de socialistas indignados. Depressa a
ingenuidade se transformou em wishful thinking e, por fim, em completo pasmo.
Quarenta anos depois do debate com Cunhal, que justamente enxotou os
bolcheviques do convívio civilizado, um sufocado sucessor de Mário Soares
convocou-os a voltar. E os invertebrados serviçais da criatura preparam-se para
ser decisivos cúmplices de um crime, que embora não previsto na lei é
facilmente previsível nas nossas castigadas vidas. Resta Cavaco, se restar.
Quinta-feira, 5 de Novembro
A sombra
José Pacheco Pereira (JPP), que conheci há anos num
almoço, abriu a última Quadratura do Círculo com a "denúncia" de um
texto de Hélder Ferreira, que conheci há anos noutro almoço (antigamente eu
almoçava imenso). O Hélder escreve no Diário Económico e no blogue O
Insurgente. O texto em causa é do Insurgente , e para JPP é também um exemplo
do "radicalismo" de certa "direita". À semelhança de
inúmeros "radicais", entre os quais este vosso criado (força de
expressão), o Hélder não aprecia a "frente popular", a cujas
luminárias chama golpistas, lunáticos e totalitários, com "capacidade de
mentir, aldrabar e vigarizar a pretensa democracia". Pelo meio, o Hélder
presumivelmente parafraseia o grande educador Arnaldo de Matos e atribui a essa
gente o epíteto de "putedo rasca".
Com excepção da obscenidade, já que as meretrizes não
merecem a comparação, não há nada ali que eu não subscrevesse. Sobretudo não há
nada que exceda o "radicalismo" médio que a esquerda, anónima e às
vezes pública, dedica às figuras da "direita" e a qualquer cidadão
que não seja de esquerda. Porque é que isso não escandaliza JPP? Porque o
escândalo do braço intelectual da "junta" com o texto do Hélder é
obviamente simulado, e mera estratégia para apontar os caminhos que nos querem
forçar a trilhar. O que JPP assaz simplesmente fez foi cortar a fita que
inaugura o Índex dos Novos Tempos, e proclamar: a partir de agora, é isto que,
a bem ou a mal, deve ser calado. Não se estuda o comunismo sem aprender dois ou
três truques.
É triste que o assalto à liberdade em curso se cometa
em nome da "abertura". E é tristíssimo que, se tudo correr pelo pior,
muitos só venham a notar o golpe quando este estiver consumado. Mas suponho que
é da natureza das coisas acreditar nas vastas possibilidades do abismo. E, por
instantes, confundir a queda com o voo.
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