João Miguel Tavares generaliza
ao país inteiro a característica de sonsice, no seu artigo do Público “No
país dos sonsos”. Creio que ela tem a ver com o nosso complexo
ancestral de inferioridade. Existe o de Édipo, existe o de Electra, mas esses
são demasiado eruditos, têm mais a ver com as fases de desenvolvimento das
crianças e o seu apego sentimental ao progenitor do sexo oposto, que os gregos enfatizaram
nas suas tragédias e o Freud decifrou na sua psicanálise.
O nosso complexo é mais de
ordem cultural, e usamos a sonsice como defesa. Costuma-se dizer que “Au
royaume des aveugles, les borgnes sont rois”, e os sonsos são, talvez,
os tais zarolhos que ocupam a realeza, como processo inteligente de contornar os
seus complexos, ocultando, pela evasiva, pela insinceridade, pelo cinismo, pela
esperteza saloia, em suma, um pensamento que não queremos admitir, embora
saibamos que é correcto.
Para além da questão das
afirmações laudatórias de Paulo Rangel sobre um maior equilíbrio da Justiça no
governo de Passos Coelho, que João Miguel Tavares defende e Ricardo Costa
ataca, o que justifica todo o artigo daquele, tomo como exemplo do genérico
título “No país dos sonsos” o extraordinário caso da auto eleição
do governo de esquerda, sem que um resquício de vergonha faça corar as faces
dos salteadores da barca perdida, nem dos que aceitam isso, que somos todos
nós, sem que peguemos em armas contra a vilania impune.
No
país dos sonsos
Público, 03/09/2015 -
00:25
Paulo Rangel foi à
Universidade de Verão do PSD proferir duas afirmações óbvias e uma provocação.
Afirmação óbvia 1: “Não é obra deste Governo, não é mérito deste Governo,
mas foi durante este Governo que pela primeira vez em Portugal houve um ataque
sério, profundo e consistente à corrupção e à promiscuidade.” Afirmação
óbvia 2: “O ar democrático em Portugal hoje é mais respirável e nós somos um
país mais decente.” Provocação: “Alguém acredita que se os socialistas
estivessem no poder haveria um primeiro-ministro sob investigação?”
Não há dúvidas de que a provocação é uma joelhada
eleitoralista, até porque se trata de uma declaração impossível de aferir.
Universos paralelos só nos filmes da Marvel, e ninguém consegue adivinhar o que
aconteceria a Sócrates se o governo fosse outro. No entanto, estando tudo o
resto correcto, fazem pouco sentido as reacções ultrajadas das associações de
magistratura e de socialistas como Francisco Assis, mas sobretudo de vários
jornalistas e comentadores, unidos contra o terrível perigo da “partidarização
da justiça” — que seria, de facto, um terrível perigo… se ela não tivesse já
sido vergonhosamente partidarizada.
É isso que me encanita. Compreendo muito mal que um
jornalista tão estimável quanto Ricardo Costa afirme no Expresso que as
declarações de Paulo Rangel (que, aliás, as explicou excelentemente no PÚBLICO de terça-feira) são “muito pouco
inteligentes”, “erradas” e “perigosas”. E isto porquê? Porque “um político
experiente tem a obrigação de saber que a questão, depois de se levantar, tem
perna longa e faz ricochete”. Ou seja, Ricardo Costa aconselha Rangel a
estar caladinho porque um dia a justiça ainda vai bater à porta do PSD.
E aí somos obrigados a perguntar: e então? E se for? O que é que um
jornalista tem a ver com isso? Acaso a função dos jornalistas é proteger as
costas dos partidos do sistema? Não será que a sua primeira obrigação é
lutar por uma sociedade mais justa e transparente? Aquilo que me interessa
saber nas declarações de Paulo Rangel não é se são incómodas para o statu quo
ou se podem vir a tramar o PSD. É se são verdadeiras.
Ora, se alguém está em boa posição para responder a
essa questão é o próprio Ricardo Costa, director do Expresso e um dos mais
influentes jornalistas portugueses — porque ele sofreu os anos socráticos na
pele. É ou não verdade, caro Ricardo, que o ar em Portugal é hoje mais
respirável do que nos tempos de José Sócrates? É ou não verdade que, por muitos
defeitos que Pedro Passos Coelho tenha, ao menos ele não andou a enfiar o nariz
nas redacções e a berrar com jornalistas? É ou não verdade que a relação com a
comunicação social nada tem a ver com a época 2005-2011? É ou não verdade, para
citar o actual primeiro-ministro, que “há hoje uma percepção de que a justiça
funciona melhor”?
Que os juízes não o possam admitir, eu até percebo.
Mas nós, jornalistas, deveríamos reconhecer o óbvio — o ar está mesmo mais
respirável —, em vez de andarmos a brincar às equidistâncias, que servem
apenas para pôr em prática a velha não-inscrição de José Gil: fingimos que os
acontecimentos nunca aconteceram para continuarmos a disfarçar as nossas
profundas falhas políticas, sociais e de cidadania. Em vez de assumirmos os
erros, optamos pelo silêncio. E, no entanto, Paulo Rangel está cheio de
razão: a partidarização da justiça existiu mesmo. E é uma pena, acrescento eu,
se ela não vier a ser discutida na campanha eleitoral.
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