quarta-feira, 11 de novembro de 2015

La royauté des borgnes




João Miguel Tavares generaliza ao país inteiro a característica de sonsice, no seu artigo do Público “No país dos sonsos”. Creio que ela tem a ver com o nosso complexo ancestral de inferioridade. Existe o de Édipo, existe o de Electra, mas esses são demasiado eruditos, têm mais a ver com as fases de desenvolvimento das crianças e o seu apego sentimental ao progenitor do sexo oposto, que os gregos enfatizaram nas suas tragédias e o Freud decifrou na sua psicanálise.
O nosso complexo é mais de ordem cultural, e usamos a sonsice como defesa. Costuma-se dizer que “Au royaume des aveugles, les borgnes sont rois”, e os sonsos são, talvez, os tais zarolhos que ocupam a realeza, como processo inteligente de contornar os seus complexos, ocultando, pela evasiva, pela insinceridade, pelo cinismo, pela esperteza saloia, em suma, um pensamento que não queremos admitir, embora saibamos que é correcto.
Para além da questão das afirmações laudatórias de Paulo Rangel sobre um maior equilíbrio da Justiça no governo de Passos Coelho, que João Miguel Tavares defende e Ricardo Costa ataca, o que justifica todo o artigo daquele, tomo como exemplo do genérico título “No país dos sonsos” o extraordinário caso da auto eleição do governo de esquerda, sem que um resquício de vergonha faça corar as faces dos salteadores da barca perdida, nem dos que aceitam isso, que somos todos nós, sem que peguemos em armas contra a vilania impune.

No país dos sonsos
Público, 03/09/2015 - 00:25
Paulo Rangel foi à Universidade de Verão do PSD proferir duas afirmações óbvias e uma provocação. Afirmação óbvia 1: “Não é obra deste Governo, não é mérito deste Governo, mas foi durante este Governo que pela primeira vez em Portugal houve um ataque sério, profundo e consistente à corrupção e à promiscuidade.” Afirmação óbvia 2: “O ar democrático em Portugal hoje é mais respirável e nós somos um país mais decente.” Provocação: “Alguém acredita que se os socialistas estivessem no poder haveria um primeiro-ministro sob investigação?”
Não há dúvidas de que a provocação é uma joelhada eleitoralista, até porque se trata de uma declaração impossível de aferir. Universos paralelos só nos filmes da Marvel, e ninguém consegue adivinhar o que aconteceria a Sócrates se o governo fosse outro. No entanto, estando tudo o resto correcto, fazem pouco sentido as reacções ultrajadas das associações de magistratura e de socialistas como Francisco Assis, mas sobretudo de vários jornalistas e comentadores, unidos contra o terrível perigo da “partidarização da justiça” — que seria, de facto, um terrível perigo… se ela não tivesse já sido vergonhosamente partidarizada.
É isso que me encanita. Compreendo muito mal que um jornalista tão estimável quanto Ricardo Costa afirme no Expresso que as declarações de Paulo Rangel (que, aliás, as explicou excelentemente no PÚBLICO de terça-feira) são “muito pouco inteligentes”, “erradas” e “perigosas”. E isto porquê? Porque “um político experiente tem a obrigação de saber que a questão, depois de se levantar, tem perna longa e faz ricochete”. Ou seja, Ricardo Costa aconselha Rangel a estar caladinho porque um dia a justiça ainda vai bater à porta do PSD. E aí somos obrigados a perguntar: e então? E se for? O que é que um jornalista tem a ver com isso? Acaso a função dos jornalistas é proteger as costas dos partidos do sistema? Não será que a sua primeira obrigação é lutar por uma sociedade mais justa e transparente? Aquilo que me interessa saber nas declarações de Paulo Rangel não é se são incómodas para o statu quo ou se podem vir a tramar o PSD. É se são verdadeiras.
Ora, se alguém está em boa posição para responder a essa questão é o próprio Ricardo Costa, director do Expresso e um dos mais influentes jornalistas portugueses — porque ele sofreu os anos socráticos na pele. É ou não verdade, caro Ricardo, que o ar em Portugal é hoje mais respirável do que nos tempos de José Sócrates? É ou não verdade que, por muitos defeitos que Pedro Passos Coelho tenha, ao menos ele não andou a enfiar o nariz nas redacções e a berrar com jornalistas? É ou não verdade que a relação com a comunicação social nada tem a ver com a época 2005-2011? É ou não verdade, para citar o actual primeiro-ministro, que “há hoje uma percepção de que a justiça funciona melhor”?
Que os juízes não o possam admitir, eu até percebo. Mas nós, jornalistas, deveríamos reconhecer o óbvio — o ar está mesmo mais respirável —, em vez de andarmos a brincar às equidistâncias, que servem apenas para pôr em prática a velha não-inscrição de José Gil: fingimos que os acontecimentos nunca aconteceram para continuarmos a disfarçar as nossas profundas falhas políticas, sociais e de cidadania. Em vez de assumirmos os erros, optamos pelo silêncio. E, no entanto, Paulo Rangel está cheio de razão: a partidarização da justiça existiu mesmo. E é uma pena, acrescento eu, se ela não vier a ser discutida na campanha eleitoral.

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