Para “Memória Futura”, subtítulo em epígrafe das
crónicas de Manuel Carvalho – e bem julgo que o ficarão, por aliar à
inteligência crítica e dimensão cultural um bom senso e perspicácia de que
andamos sedentos, num país de muita crise, de muita lamechice, de muita falta
de orientação, suponho que por muita falta de competência também. Desde sempre.
Talvez para sempre.
Já se perdeu tempo bastante
com o episódio das bofetadas – bengaladas nos tempos da aristocracia de direito
(se não de facto) – mas este artigo de Manuel Carvalho repõe os dados na
circunstância de uma absoluta falta de modéstia e de princípios educativos e a
sua análise é perfeita. Como o são, parece-me, as revelações sobre as intenções
esclarecedoras ao Governo do PR no caso das “bengaladas” de Mário Draghi, ou a
referência à actuação “anjinha” do Governo no caso da TAP e da extinção dos
voos do Porto.
Uma aula para ser gravada nos
anais da nossa história, mau grado a mediania dos factos.
A
substância política da bofetada
1. Há quem julgue que a ameaça de João
Soares a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido Valente não passou de
uma simples declaração de deselegância ou de falta de chá. Não é o caso. Muitos
pensam que a promessa de umas “salutares bofetadas” são apenas um impropério
vulgar de uma pessoa que há muitos anos se afirma em público pela grosseria
travestida em desassombro ou em coragem política. É pouco para explicar o
lamentável episódio que conduziu à sua abençoada demissão. João Soares deu-se ao luxo
de armar em cavalheiro do tempo das cartolas e das bengalas para se dedicar à
justiça por mãos próprias porque faz parte de uma certa classe de políticos que
se julgam investidos de um direito divino a viver e agir acima dos mortais.
É
essa convicção de déspotas iluminados pelo passado e pela intransigência
ideológica que os leva a confundir a ameaça com a liberdade de opinião, o
direito de resposta com o castigo aos que os ousam questionar. Um plebeu da
política, tipo Passos Coelho ou Jorge Coelho ou Mário Centeno ou Augusto Santos
Silva, seria fuzilado se alguma vez ousasse sequer meter um estalo no discurso;
um aristocrata da política, como João Soares, pode prometê-los a quem bem
entender porque, vindo de quem vem, não é ameaça, nem insulto, nem
deselegância, nem terceiro-mundismo. É direito à palavra.
Pode
ser romântico, mas a existência de personagens novecentistas como João Soares
na política igualitária e dessacralizada do século XXI é um anacronismo que só
podia acabar como acabou: numa demissão. Na sexta-feira, quando o
país se ria ou indignava com a ameaça patética do ministro, tornou-se premente
saber como iria o primeiro-ministro reagir. Costa, porém, esteve bem. Não
precisava afrontar uma ala poderosa do seu partido, e não o fez. Não precisava
de se assumir como um espalha brasas que vocifera à primeira contrariedade de
um elemento cuja escolha foi da sua responsabilidade, e não o fez. Revelando a
sua meticulosa arte de aranha política, capaz de construir teias à medida para
qualquer estratégia, limitou-se a deixar o isco envenenado. Dizendo que um ministro é um
ministro até no café. E pedindo desculpas aos visados. Dificilmente
um diplomata experiente seria capaz de produzir um ultimato com tanta subtileza
e eficácia.
Quando
um ministro se digna prometer bofetadas a críticos numa página de uma rede
social, a suspeita de que perdeu a noção das coisas torna-se pertinente; quando
é forçado a demitir-se e não é capaz de perceber o erro em que caiu, a certeza
de que vive num mundo paralelo, na qual uma qualquer cultura de valores
jacobina e elitista ainda reina, ganha consistência. Ao cair, João Soares
arrasta consigo um pouco dessa corte que se julga ter direito a tudo e a ser
capaz de tudo por ter um passado e ideias irredutíveis que o testemunham.
O PSD há muito que aboliu os baronatos e desceu ao país das pessoas comuns. É
boa notícia que o PS esteja a seguir o mesmo caminho. Como dizia Paulo Rangel,
está na hora de acabar com os doutores. Os que se julgam tão sábios
e tão etéreos que até acham que as bofetadas podem ser “salutares”.
2. Antes de Mário Draghi ter vindo a
Lisboa participar
no primeiro Conselho de Estado da era Marcelo, pouco se ouviu sobre
a ideia. Mas, logo depois de presidente do Banco Central Europeu ter apanhado o
avião de regresso, as críticas surgiram em catadupa. Do PS, através do deputado
Ascenso Simões, mas principalmente do Bloco e do seu eterno guru intelectual,
Francisco Louçã. Entre o antes e o depois, porém, há uma pergunta que convém
fazer: alguém estava à espera que Draghi dissesse uma coisa diferente do que
disse em relação ao Governo actual e ao anterior? Ora imagine-se que o
convidado seria Iannis Varoufakis: alguém imaginaria um discurso diferente do
que tem feito contra a “austeridade” por essa Europa a fora.
Registada
a evidência, o que importa é determinar a razão que levou o novo presidente
a convidar Draghi para falar aos conselheiros. E aí só há uma resposta óbvia:
Marcelo quer manter na agenda política a pressão das autoridades europeias
sobre a política financeira do Governo. Na sua versão de “Marcelo paz e
amor”, o presidente não está disposto a rasgar o ecumenismo nem a tirar o
capacete azul da ONU com que iniciou o seu mandato. Mas alguém por ele há-de
vir a cena dizer o que o ardente desejo de mudança dos portugueses e a monumental
capacidade do Governo em construir narrativas não deixam dizer: que Portugal
permanece numa situação frágil, que numa mudança de governo não é boa ideia
deitar fora o bebé com a água do banho, que o país tem de estar preparado para
aceitar eventuais medidas difíceis. Era isso que o presidente queria que se
dissesse e ouvisse. E Draghi fez-lhe o jeito com naturalidade e satisfação.
3. Dizia esta semana ao Jornal de
Negócios o ministro do Planeamento, Pedro Marques: “Não acredito que algum
português pense que o Estado, por ter xis por cento dos direitos
económicos, não exercerá estrategicamente o seu papel de maior accionista” da
TAP. Com o devido respeito, senhor ministro, há pelo menos um: o autor desta
coluna. O que o confrangedor episódio do esvaziamento do aeroporto do Porto
mostra sem margem para dúvidas é que o Governo não passa de um patinho
sentado na administração privada da companhia. Porque o que está em causa
desde o princípio é uma pergunta à qual nem Pedro Marques, nem António Costa
nem a administração da TAP respondem: se a renacionalização de parte do
capital tem como objectivo garantir a defesa do interesse nacional, por que
razão se desinveste num aeroporto que, pela facilidade de acessos à principal
região exportadora do país, tanto contribui para esse interesse? Se fosse por
falta de clientes, nós percebíamos; mas com taxas de
ocupação tão altas nos voos extintos, o que fica claro é que o
Governo trocou o interesse nacional pela maximização dos resultados dos
interesses particulares.
Pedro
Marques pode dar-se ao luxo de tornar público um discurso assim incoerente e
vazio porque o Porto e o Norte tornaram-se um rebanho manso de associações
empresariais e autarcas. Com Rui Moreira a falar sozinho e a arriscar-se ao
papel de D. Quixote cheio de razão, o Governo põe e dispõe dos interesses de
uma das principais infra-estruturas do Norte e do Centro porque sabe que fala
para uma plateia calada pelos interesses mesquinhos do protagonismo ou pelo
medo de perder boleias do poder público. Muitos desses protagonistas
amuados pela rivalidade de egos ou pelo receio de ter de esperar pela agenda do
poder hão-de continuar por aí a falar do centralismo e das assimetrias que
tornam o país injusto, desequilibrado e pobre. Mas, como bem sabe Pedro
Marques, os omissos deputados ou ministros do Porto e do Norte, com esses é
fácil lidar. Palavras, palavras, palavras. Que quando chegam combates a
sério, como o da TAP, é vê-los retirar de mansinho.
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