«Lula e a negação de si mesmo»
é o
título de um artigo de Manuel Carvalho (Público, 16/3/16) sobre um homem
que parece ter sido descomunal, ao prometer erradicar a pobreza do seu país, e
cumprindo-o em parte, para justificar a sua própria ascensão, de escapado dos
tentáculos da pobreza em que vivera, ultrapassando o imaginário do decoro
moral, de tal modo enriqueceu, embrulhado na confusão dos negócios, o que hoje
lhe é imputado acusadoramente e punitivamente, mas mais uma vez pretendendo
escapar fraudulentamente, desta vez dos tentáculos da Justiça, e ao que parece
indiferente aos males que poderá provocar à amiga que lhe estende a mão .
Não julgo, pois, que se tornou
a negação de si mesmo, vendedor que foi, antes, de banha de cobra para atrair mentecaptos
ou ingénuos, prestidigitador acenando com
o mundo de maravilha que apetece à criança, ou ao pobre que anseia o
mundo de bem-estar que lhe está interdito, e entretanto senhor do poder,
manipulando malabaristicamente em sua direcção os objectos por si apetecidos.
De esquerda se chamou, a tal
esquerda que desde sempre se concebeu indignada com as disparidades sociais, geralmente
no efeito fácil de as referir nos outros, quer por demonstração de sentimento, quer
por demonstração de seguidismo intelectual que favorece a nossa imagem,
enquanto nós mesmos não penetramos nas esferas superiores – essas sim – do poder
económico.
Não, Lula da Silva nunca me
pareceu mais que um arrivista, que usou a sua cordialidade bonacheirona - tão
expressiva no povo brasileiro - na conquista desse povo, para na sombra, como
todo o ser finório, trabalhar em seu próprio proveito, que a nova condição
social lhe permitia. Sem escrúpulo. Como
tantos mais. Vendedor da banha…
Lula
e a negação de si mesmo
Público, 16/03/2016
O que é feito daquele líder
político que vindo da pobreza extrema do Nordeste conquistou o Brasil com a
promessa de que “a esperança vence o medo”? O que é feito desse fenómeno de
popularidade que naquela madrugada de 28 de Outubro de 2002 encheu as
principais praças das cidades brasileiras com a crença de que, com ele no
poder, todas as crianças teriam pão e leite todos os dias, que o Brasil
enterraria, finalmente, as clivagens entre a casa grande e a senzala e
garantiria a todos as mesmas oportunidades da cidadania plena? O que é feito do
Presidente que tirou 42 milhões de brasileiros da pobreza, que alargou a classe
média, que tornou os centros urbanos lugares habitáveis, que fez da outorga da
dignidade aos mais pobres uma bandeira, que levou ao mundo a crença de que a
esquerda estava de regresso às suas origens históricas, feitas de ideias
progressistas e de esperança?
Luís Inácio Lula da Silva aceitou agora ser ministro.
Com essa escolha criou para si um estatuto especial de imunidade perante a lei.
E com esse estatuto desfez todo o seu legado político. Deixou de ser o que foi
e, politicamente, passou a ser coisa nenhuma. Quem o viu fotografado de tez
suada nos combates sindicais do final dos anos 70 em São Paulo, no vale do
Jequitinhonha a proclamar o fim da pobreza ou, em 1999, na Marcha dos 100 mil,
a pedir “ética na política”, olha para ele por estes dias e vê apenas uma
figura patética empenhada na insensatez da sua desconstrução.
Lula não se imolou, apenas: afundou o governo de Dilma
Rousseff e arrasou o crédito dessa máquina partidária transversal, criativa e
poderosa que foi o PT. Se as suas explicações sobre o triplex do complexo de
luxo de Guarujá pareciam erráticas e inconsistentes, a sua tentativa de escapar
ao foro da procuradoria de São Paulo acaba por provar a sua incapacidade de se
rever na pele de um cidadão igual aos outros. O Lula que criou a sua aura
mitológica na luta contra os privilégios já não habita o território dos
“fraquinhos” que o Estado teria de apoiar, dos sem terra, dos sem tecto ou
simplesmente dos operários. Lula passou-se para o lado dos intocáveis que
sempre combateu. Estatelou-se nas suas próprias contradições. Explodiu na banal
apetência do poder. Tornou-se uma figura de plástico, um insulto para os
milhões de pessoas que acreditaram nele, uma prova viva de que na política não
há lugar para as crenças nos amanhãs que cantam.
O caminho da autodestruição de Lula como símbolo
político não o afasta por completo do alcance da Justiça – José Dirceu,
que ocupou exactamente o mesmo Ministério da Casa Civil que Lula se prepara
para ocupar acabou condenado e preso pelo Supremo Tribunal Federal na sequência
do caso do Mensalão. E fá-lo transportar o vírus da suspeição para o interior
do Governo. No planalto de Brasília, Lula será visto não pelo que foi, mas pelo
que se tornou: um político acossado que se refugia no Governo.
Dilma, que parecia resistir à interminável vaga de
delações da Operação
Lava-Jato, surge neste cenário como a principal vítima colateral. Já
não é a primeira magistrada da República; ao acolher Lula tornou-se uma
tarefeira ao serviço dos interesses do seu partido. A Presidente tornar-se-á na
criatura sem espaço nem poder para disputar o protagonismo do seu criador, que
certamente tenderá a acabar com as políticas de ajuste fiscal e a optar por
medidas expansionistas que podem agravar o tumulto financeiro – os sinais dos
mercados nos últimos dias são a esse propósito esclarecedores. E a oposição e o
povo não deixarão de aumentar a pressão sobre um Governo em dificuldades. O
serviço em bandeja de um pântano moral há-de agravar a intolerância e o
radicalismo que ameaçam erodir ainda mais as instituições e a democracia
brasileira.
Custa a perceber como pode o Brasil segurar em tantas
pontas soltas e resgatar os consensos mínimos que fizeram a prosperidade do
país entre o colapso de Collor de Mello e o segundo governo de Dilma. A delação
de Delcídio do Amaral alarga ainda mais as suspeitas de corrupção, que envolvem
agora Lula, o vice-presidente, um ministro, os presidentes do Senado e da
Câmara de Deputados ou o líder do principal partido da oposição, Aécio Neves.
Junte-se a isso a mais grave crise financeira das últimas décadas e perceba-se
o grau de dificuldade que o Brasil atravessa. Uma dificuldade que não se supera
apenas com os vastos recursos naturais ou com uma sociedade e uma economia
dinâmicas. O problema maior do Brasil de hoje, já se sabia, é de natureza
moral. E Lula da Silva, o profeta da ética, veio reforçá-lo. O homem que nos
seus anos de luta dizia que os pobres iam para a cadeia e os ricos para o
governo, fez a sua opção de classe. Décadas de promessas e de discursos a favor
da igualdade de direitos e de oportunidades num dos países mais injustos do
mundo tornaram-se de súbito numa sórdida mentira.
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