- Sim, porque nós temos um historial como africanas - constatou a nossa amiga em evocação orgulhosa de
tempos bem anteriores à data que estávamos a festejar sem cravo ao peito, que adiáramos
para o feriado por impedimento dominical.
Eu lembrei que, se alguém porventura a estivesse a
escutar, não deixaria passar em claro a questão, sem jogar um dos termos “fascista”
ou “colonialista”, mas a nossa amiga recalcitrou que esses termos tinham feito
a sua época, já revogados os piropos de
há quarenta anos, embora os frequentadores do café aparentassem, como nós, as
mesmas marcas com que o inexorável Cronos vai preenchendo sem favoritismos as
existências, pelo que certamente esses
epítetos ainda estariam presentes.
- Mas soterrados por encrencas tão mais
importantes, que passaram à história, concluiu a minha irmã indiferente, em
meio das suas torradas.
- O que é certo é que os temas do racismo andam sempre
na berra, como ainda há dias ouvi, numa discussão entre pai e filha, que
apresentava ao pai o namorado negro –
justifiquei eu a perenidade do tema. Até apaguei a televisão, sem paciência
para ouvir o contínuo denegrimento das nossas relações humanas.
- Mas tratava-se de uma mistificação, feita por actores,
explicou a nossa amiga, sempre criteriosa em repor a verdade.
Admirei-me e a minha irmã lembrou a estátua do Eusébio,
como prova da nossa simpatia universal, além de que o segregacionismo era uma
característica comum das distinções sociais dentro dos próprios povos,
resultante das diferentes educações.
- Por isso a nossa mãe nunca quis casar com os
lavradores ricaços da combinação do pai dela, e decidiu-se pelo nosso pai, que fora
de África e era um rapaz bonito e educado, embora sem terras – contei eu,
de memórias recentes resultantes das muitas evocações da nossa mãe, nos seus
últimos anos de vida, a diluir os seus medos da morte no refúgio do passado.
Mas a questão do historial africano não fora esquecida
pela nossa amiga, que retomou a palavra:
- Um dia fomos ao mato, a uma caçada nocturna…
Desta vez foi a minha irmã que a interrompeu:
- Mas não foi só nocturna, foi diurna também. Porque
os abutres não andam de noite.
Eu que, na questão dos abutres nunca determinei horários,
ainda lancei que qualquer hora seria competente, mas a minha irmã continuou:
- Lembro-me de que só levámos o javali. Não te lembras
disso?
A nossa amiga não se lembrava:
- Lembro-me de estarmos ali na relva, da bela casa do
mato, com jardim e piscina, desse nosso amigo que era caçador… - considerou ela em êxtase lírico.
- Pois, mas deixaram o outro animal caçado para trás,
e quando lá voltaram, os abutres tinham-no devorado quase todo.
Com tal precisão de dados, desejei registar a
conversa, mas não havia guardanapos na mesa, o que me pareceu definhante amostra de
penúria, tratando-se de um Riviera, mas a minha irmã logo me forneceu duas
folhinhas de um minúsculo bloco, velho de trinta ou mais anos, que passava de
mala em mala, para as suas anotações.
- Era de quando eu andava com o A. (o marido). Às vezes, nas firmas ofereciam-lhe
coisas, como este bloquinho.
Eu, que até nem mala levo, por desnecessária a documentação identificadora, quando saímos no seu Mercedes aos domingos – ontem excepcionalmente no feriado - a minha irmã dando por
adquirido que chefia com autoridade a nossa expedição semanal, não nos deixando
pagar a despesa, apesar de irmos naturalmente prevenidas, eu, de porta-moedas no bolso do
casaco e a caneta para qualquer eventualidade de tirada da nossa amiga, que transporta a sua
malinha a tiracolo mas sempre ao pescoço, com receio dos meliantes, agarrei nas folhas, com a consciência pesada por estar a destruir
uma relíquia como essa do velho bloquinho.
E foi assim que se completou a história da caçada –
nocturna ao opinião da nossa amiga, também diurna na da minha irmã, por conta
dos abutres, que ficaram nas suas memórias em imagem de horror como já vi nos
filmes.
Também falaram da visita a Milange, de que existem
fotos das duas amigas – a minha irmã e a amiga, só sua, por essa altura, ambas colegas
de ofício na Escola Comercial, em Quelimane – fotos na enorme escadaria do palacete.
- A gente levava horas a chegar lá.
- Como foram eles fazer uma casa daquelas naquele sítio
isolado! – sublinhou a minha irmã.
Aproveitei para falar na coragem daqueles que levaram
a civilização ao mato, e a nossa amiga acrescentou:
- Eu é que passava as guias de marcha para as
professoras e pensava nelas com muita pena.
- Mas algumas fizeram a sua vida no mato e casaram
e tiveram filhos… - concluiu a minha irmã, sempre objectiva.
Mas recordou o tio Carlos, que foi administrador
longe, no mato, e a tia Isolina que nunca o acompanhara e figurava no nosso
imaginário como uma espécie de madrasta da Branca de Neve, ficando-se pela cidade,
e viajando por Moçambique como inspectora primária, sempre muito bela e
elegante e trocista.
- Era tão lindo, o tio Carlos! E foi tão desgraçado! – concluiu a minha irmã, a recordar a bela foto dos
oito irmãos Brás, no Carregal, quando três deles lá foram de férias, de África.
Também lembrei muitos outros primos nossos e do meu
marido que andaram por longe, em Moçambique, e a minha irmã trouxe à baila “O
Anjo Branco” de José Rodrigues dos Santos, de homenagem ao pai:
- Era médico, o seu pai. Ia de avioneta acudir às
pessoas…
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