terça-feira, 26 de abril de 2016

Memórias



- Sim, porque nós temos um historial como africanas - constatou a nossa amiga em evocação orgulhosa de tempos bem anteriores à data que estávamos a festejar sem cravo ao peito, que adiáramos para o feriado por impedimento dominical.
Eu lembrei que, se alguém porventura a estivesse a escutar, não deixaria passar em claro a questão, sem jogar um dos termos “fascista” ou “colonialista”, mas a nossa amiga recalcitrou que esses termos tinham feito a sua época, já revogados os piropos de há quarenta anos, embora os frequentadores do café aparentassem, como nós, as mesmas marcas com que o inexorável Cronos vai preenchendo sem favoritismos as existências,  pelo que certamente esses epítetos ainda estariam presentes.  
- Mas soterrados por encrencas tão mais importantes, que passaram à história, concluiu a minha irmã indiferente, em meio das suas torradas.
- O que é certo é que os temas do racismo andam sempre na berra, como ainda há dias ouvi, numa discussão entre pai e filha, que apresentava ao pai o namorado negro – justifiquei eu a perenidade do tema. Até apaguei a televisão, sem paciência para ouvir o contínuo denegrimento das nossas relações humanas.
- Mas tratava-se  de uma mistificação, feita por actores, explicou a nossa amiga, sempre criteriosa em repor a verdade.
Admirei-me e a minha irmã lembrou a estátua do Eusébio, como prova da nossa simpatia universal, além de que o segregacionismo era uma característica comum das distinções sociais dentro dos próprios povos, resultante das diferentes educações.
- Por isso a nossa mãe nunca quis casar com os lavradores ricaços da combinação do pai dela, e decidiu-se pelo nosso pai, que fora de África e era um rapaz bonito e educado, embora sem terras – contei eu, de memórias recentes resultantes das muitas evocações da nossa mãe, nos seus últimos anos de vida, a diluir os seus medos da morte no refúgio do passado.
Mas a questão do historial africano não fora esquecida pela nossa amiga, que retomou a palavra:
- Um dia fomos ao mato, a uma caçada nocturna…
Desta vez foi a minha irmã que a interrompeu:
- Mas não foi só nocturna, foi diurna também. Porque os abutres não andam de noite.
Eu que, na questão dos abutres nunca determinei horários, ainda lancei que qualquer hora seria competente, mas a minha irmã continuou:
- Lembro-me de que só levámos o javali. Não te lembras disso?
A nossa amiga não se lembrava:
- Lembro-me de estarmos ali na relva, da bela casa do mato, com jardim e piscina, desse nosso amigo que era caçador… - considerou ela em êxtase lírico.
- Pois, mas deixaram o outro animal caçado para trás, e quando lá voltaram, os abutres tinham-no devorado quase todo.
Com tal precisão de dados, desejei registar a conversa, mas não havia guardanapos na mesa, o que me pareceu definhante amostra de penúria, tratando-se de um Riviera, mas a minha irmã logo me forneceu duas folhinhas de um minúsculo bloco, velho de trinta ou mais anos, que passava de mala em mala, para as suas anotações.
- Era de quando eu andava com o A. (o marido). Às vezes, nas firmas ofereciam-lhe coisas, como este bloquinho.
Eu, que até nem mala levo, por desnecessária a documentação identificadora, quando saímos no seu Mercedes aos domingos – ontem excepcionalmente no feriado - a minha irmã dando por adquirido que chefia com autoridade a nossa expedição semanal, não nos deixando pagar a despesa, apesar de irmos naturalmente prevenidas, eu, de porta-moedas no bolso do casaco e a caneta para qualquer eventualidade de tirada da nossa amiga, que transporta  a sua malinha a tiracolo mas sempre ao pescoço, com receio dos meliantes, agarrei nas folhas, com a consciência pesada por estar a destruir uma relíquia como essa do velho bloquinho.
E foi assim que se completou a história da caçada – nocturna ao opinião da nossa amiga, também diurna na da minha irmã, por conta dos abutres, que ficaram nas suas memórias em imagem de horror como já vi nos filmes.
Também falaram da visita a Milange, de que existem fotos das duas amigas – a minha irmã e a amiga, só sua, por essa altura, ambas colegas de ofício na Escola Comercial, em Quelimane – fotos na enorme escadaria do palacete.
- A gente levava horas a chegar lá.
- Como foram eles fazer uma casa daquelas naquele sítio isolado! – sublinhou a minha irmã.
Aproveitei para falar na coragem daqueles que levaram a civilização ao mato, e a nossa amiga acrescentou:
- Eu é que passava as guias de marcha para as professoras e pensava nelas com muita pena.
- Mas algumas fizeram a sua vida no mato e casaram e tiveram filhos… - concluiu a minha irmã, sempre objectiva.
Mas recordou o tio Carlos, que foi administrador longe, no mato, e a tia Isolina que nunca o acompanhara e figurava no nosso imaginário como uma espécie de madrasta da Branca de Neve, ficando-se pela cidade, e viajando por Moçambique como inspectora primária, sempre muito bela e elegante e trocista.
- Era tão lindo, o tio Carlos! E foi tão desgraçado! – concluiu a minha irmã, a recordar a bela foto dos oito irmãos Brás, no Carregal, quando três deles lá foram de férias, de África.
Também lembrei muitos outros primos nossos e do meu marido que andaram por longe, em Moçambique, e a minha irmã trouxe à baila “O Anjo Branco” de José Rodrigues dos Santos, de homenagem ao pai:
- Era médico, o seu pai. Ia de avioneta acudir às pessoas…

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