Estávamos bem no meio de
lucubrações pessimistas, a minha irmã chegando mesmo a lembrar que qualquer
dia, como já poderíamos partir de armas e bagagens para outro planeta, não nos
devíamos preocupar tanto, o que me deixou toda arrepiada, a lançar para os idos
de S. Nunca tal hipótese de mudança. Mas com frieza ela ainda acrescentou: -Oxalá
seja num planeta onde seja possível viver sem dinheiro.
Estas coisas desestabilizam-me,
pois ainda não desisti da minha ambição de ser agraciada com largo maná de
euros em notas daquelas que nunca vi e protestei arduamente ante a hipótese de
deixar este paraíso azul, com mosquitos penosos, é certo, e ruídos vários, mas
nosso. Mudar de planeta? E sem dinheiro? Que prazer haveria na vida? Retornar
ao Éden? Que sensaboria! Até me lembrei da Ilha Ogígia onde Ulisses gastou dez
anos de imortalidade apática junto da divina Calipso e cujo regresso a Ítaca e
à Penélope Eça descreve, no final do seu conto “A Perfeição”:
Depois
de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente
Herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco
dum roble, e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Mas então recordou
que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto,
pulou através da espuma, correu pela areia e pousou um beijo sereno na fronte
aureolada da Deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto: Quantos males te
esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha
perfeita, entre os meus braços perfeitos...
Ulisses
recuou, com um brado magnífico: Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na
tua perfeição! E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou
a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as
misérias - para a delícias das coisas imperfeitas!
Mas reconheço que não temos
safa. Agora que tantas coisas se descobriram, aterradoras, sobre o Universo, e
fazendo um flash-back sobre as histórias bíblicas e outros mitos estranhos que
nos levam às origens e onde temos assinalados os fins apocalípticos, acho que só
podemos reconhecer a ideia da nossa dimensão mínima, num Universo fatal, sempre
em mudança. Mas, optimisticamente, augurámos essa mudança para daqui a biliões
de anos e considerámos quanto os estudos têm o
pendão de procurarem lenha para nos queimarmos todos.
A nossa amiga,
entretanto, falava do papa Francisco de passagem pelos migrantes, nas suas
desgraças sem solução à vista, apesar do papel de tantos que tentam remediar,
um papa da sua admiração, acorrendo aos países, com a sua palavra de conforto e
bênção.
Eu ainda ponderava
sobre a sua disponibilidade de aceitação
desse papa, herege como ela é, mas atribuí o facto à sua natureza sensível,
sempre em protesto contra os males do mundo mau, e apressei-me a concordar,
ficando a saber que o papa levou onze dessas pessoas para o Vaticano, no seu
avião.
Já em casa, leio o artigo do
frontal Alberto Gonçalves, acusando os comentadores aparentemente
ligados à direita, pretensamente isentos, mas na realidade ambíguos nos seus
comentários politicamente correctos. Lembrei-me de tempos passados, quando, de
repente, os reconhecidos adeptos do governo se passaram de armas e bagagens para
os novos orientadores dos destinos da nação e um sem número de adeptos das
novas ideologias políticas pululou.
Alberto Gonçalves não se impressiona com os
meneios de António Costa e não vai com os seus trejeitos de aparência suave,
considerando-o, decididamente, uma “nulidade irresponsável”, que a breve
trecho conduzirá o país pelas sendas da perdição. Entretanto, esses comentadores
encartados das televisões, querendo parecer responsáveis e sabedores, vão
largando sentenças puramente vazias, de nem carne nem peixe, prováveis seguidores
modernos de dieta vegetariana, dizendo amen, interesseiramente defendendo o seu
posto.
Um homem inteligente denuncia
a cobardia:
Aos comentadores de
"direita"
Alberto
Gonçalves DN, 17/4/16
Oficial
e abençoadamente, a austeridade acabou. Talvez por distracção, o que não acabou
foi o défice, que será o segundo maior da "zona euro" em 2016. Nem a
dívida, que em 2021 promete destacar-se na Europa. Sobre o crescimento,
prevê-se que nos arrastemos pelos fundilhos da Terra. As exportações não andam
risonhas. O desemprego sobe. O tom dramático dos avisos do FMI também sobe, à
semelhança do cepticismo das agências de rating. O investimento estrangeiro
ameaça tornar-se uma figura retórica. Principalmente, paira por aí a fatal
impressão de que se tende a perder, e depressa, os débeis laços que nos
seguravam do lado certo da civilização. Até o sr. Draghi saiu daqui arrepiado.
Porque
é que isto acontece? Ninguém faz ideia. Um governo do partido derrotado nas
urnas, chefiado por uma nulidade irresponsável, herdeiro da histórica
competência do PS, repleto de adolescentes mentais e iluminado pela ponderação
do PCP e do BE tinha tudo para funcionar. É a história do maluco que se lançou
várias vezes do 3.º andar com consequências aborrecidas - e agora lança-se do
5.º para ver se aterra ileso.
Por
estes dias, Alexis Tsipras, que salvou a Grécia da austeridade para a enfiar no
caos, recebeu em êxtase o dr. Costa e, a título de elogio, chamou-lhe
comunista. Não é um bom sinal: é, ou deveria ser, um convite ao pânico. Só que
não há pânico algum. Contemplar a querida pátria através dos media, e sobretudo
das televisões, é suportar intermináveis lengalengas acerca da
"normalidade democrática". É ouvir louvores ao
"entendimento" da maioria parlamentar. É perceber a resignação,
entusiástica ou apática, aos indivíduos que tomaram conta de um país
mal-amanhado e, tarde ou cedo, devolverão um destroço irrecuperável. O maluco
continua a cair e apenas se debate a limpeza da calçada que o espera.
Os
nossos media inclinam-se para a esquerda? Talvez, mas nem é isso que importa. A
esquerda, preponderante ou não, cumpre o seu papel. O problema é que a
"direita" ou, sem aspas, o que sobra da esquerda não cumpre o dela.
Salvo excepções, contemplar os alegados adversários do poder em vigor é descobrir
uma realidade às avessas. Quem são os comentadores da "direita"? São
os que se fingem sociais--democratas para catequizar as massas com puro
terceiro-mundismo. Ou os que se dizem do PSD para conferir peculiar
"legitimidade" à veneração do PS. Ou os incapazes de criticar
qualquer estalinista ou similar sem primeiro anunciarem o "enorme
respeito" que lhe dedicam. Ou os que quase se envergonham por defender
vagamente, muito vagamente, a propriedade privada ou a concorrência ou a
globalização. Ou os que não referem as evidentes vantagens do capitalismo sem
acrescentar de imediato a necessidade do respectivo controlo. Ou os que se
declaram à direita na economia e, a fim de exibir credenciais (e de facto
exibindo estupidez), à esquerda nas "questões sociais". Ou os que se
orgulham de ter "amigos" cujas convicções, se plenamente aplicadas,
incluem a abolição de fraternidades assim.
Em
suma, estamos num país onde a esquerda não tolera a existência de
"reaccionários" ou "neoliberais" (convém simplificar para
não perturbar os analfabetos). E onde a "direita" pede licença, e
frequentemente desculpa, por existir. Uns possuem uma visão sectária e
senhorial do regime, os outros suspeitam ser inquilinos a prazo. Uns determinam
os limites admissíveis do discurso, os restantes vivem receosos de
ultrapassá-los. Este desequilíbrio essencial perverte a discussão pública e
promove um estado de alucinação contínua.
Normalidade
democrática? Não é nada normal que uma autarquia socialista convoque uma
homenagem ao falecido tiranete da Venezuela. Não é normal que um ministro
ofereça um par de bofetadas a colunistas e um par de deputadas intimide
colunistas em tribunal. Não é normal que o primeiro-ministro redistribua
jovialmente os impostos de todos pelo "melhor amigo". Não é normal
que se "compreenda" o terror islâmico enquanto se luta para mudar a
designação do Cartão de Cidadão por ofensa às cidadãs. Não é normal que
governantes consumidores de Luso e de Mercedes aconselhem a ralé a beber água
da torneira e a deslocar-se na Carris. Não é normal que o PM grego nos
apresente como exemplo de sucesso e o PM irlandês como exemplo de tragédia. Não
é normal que um governo não perca a oportunidade de se envolver descaradamente
em negociatas privadas. Não é normal que um ministro da Defesa desfile a
"irreverência" dos rústicos perante a tropa. Não é normal que um
ministro da Educação se empenhe a combater a dita. Não seria normal que o sr.
Centeno fosse sequer tesoureiro de uma mesa de Monopoly. E não será normal que
uma democracia ocidental acabe tomada por uma federação de interesses
pouquíssimo democráticos.
Se
acharem que é normal, por favor inscrevam-se de vez no PS ou num workshop do
BE, participem em vigílias pelos refugiados e em manifestações contra o
"jugo alemão", passeiem as T-shirts do "Che" e o amor a
Lula e as obras completas do Boaventura, berrem pelo Luaty ou de acordo com as
conveniências esqueçam o Luaty, excitem-se com os Papéis do Panamá e condenem
as escutas de Sócrates, assinem mais 600 artigos a reprovar Passos Coelho e a
exaltar a "capacidade negociadora" do inacreditável dr. Costa,
aplaudam o dr. Costa e escandalizem-se com os avanços do sr. Trump, enfim façam
o que quiserem.
Mas
se acharem que não é normal, digam.
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