sexta-feira, 22 de abril de 2016

Rei Momo



Dois artigos de opiniões opostas transcrevo do Público de 26/3, sobre o caso Dilma/Lula, que tem pintalgado as páginas dos jornais, deixando boquiaberto de estupefacção quem ainda se deixe influenciar por inúteis pruridos de natural vergonha. E lembramos o Carnaval brasileiro, de pujante e colorido bambolear de corpos nas ruas de Copacabana, admirando a beleza dos trajes, e a firmeza e denguice das pernas, prometendo vitalidade e continuidade de um povo amante de diversão e vivendo-a com tanta garra. Entretanto, no segredo dos deuses e no meio da sua selva, os homens do governo aplicam-se a recriar os seus próprios bailados enredados em ambições lucrativas. De igual pujança, desprezando o povo, em proveito próprio. Mas o povo habituado ao sambódromo aí está participando, em espalhafato, manipulado por estes ou aqueles, divertindo-se em carnaval constante, que os da rede ambiciosa fazem mover a seu gosto. E no seu próprio interesse, é claro.

Corrupção é corrupção. Ponto final. Parágrafo
26/03/2016 - 00:25
É bonito! É até querido! É mesmo comovente constatar tanta camaradagem, tanta solidariedade para com correligionários e camaradas. Mas há momentos em que o excesso de ingenuidade em política parece mais compadrio mal disfarçado de cegueira política. E quando isso acontece, o que resta é apenas indignação com tanto despudor.
E é de indignação o único sentimento que é possível sentir quando se observa a reacção que o PCP, a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, e o ex-líder Francisco Louçã tiveram perante a decisão da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, de empossar o seu antecessor, Lula da Silva, como seu ministro, para que este ganhasse direito a ser apenas julgado pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil — o equivalente ao Tribunal Constitucional português — e assim evitar a possibilidade da sua iminente prisão preventiva no âmbito da operação Lava-Jato.
Não interessa sequer discutir se as acusações criminais a Lula da Silva são ou não verdadeiras. Cabe à Justiça brasileira investigar, provar e punir. O que é facto é que há uma vasta quantidade de políticos brasileiros, dirigentes de vários partidos, governantes, deputados, senadores que foram ou estão a ser investigados por práticas de corrupção. Os casos são vários e vão do Mensalão ao Lava-Jato. Há várias investigações autónomas em curso, sendo que Lula da Silva é referido ou investigado em quatro. É um facto que o juiz Sérgio Moro extrapolou os limites do cargo ao divulgar escutas que devem ficar em sigilo. Mas isso em nada invalida que ele seja uma figura determinante pela coragem que tem demonstrado na investigação Lava-Jato. E por outro lado é bom salientar que ele não é o único juiz que investiga a corrupção na política brasileira.
É também uma evidência que é uma habilidade política de quem se acha impune e acima do Estado de direito democrático optar, como a Presidente Dilma Rousseff fez, por dar posse ao seu antecessor, como ministro do seu Governo, com o objectivo evidente de que este ganhasse o privilégio de só poder ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. É uma forma de abuso do poder em que Dilma Rousseff pôs em causa o respeito que os ocupantes dos órgãos de soberania democráticos devem uns aos outros.
É bom recordar que, no Estado de direito democrático, os órgãos de soberania são os órgãos de poder político — os presidentes, os parlamentos e os governos —, mas são-no também os tribunais. E que é do equilíbrio de poderes entre estes três órgãos que vive a democracia. Como é bom referir que, no Estado de direito democrático, a Justiça tem de ser autónoma e operante, sem medo do poder político e independente deste. Mais: uma das diferenças entre democracia e ditadura é precisamente a existência nesta última de uma Justiça discricionária exercida por um poder político que não reconhece autonomia aos tribunais. Assim como tem de ser dito que numa democracia é essencial a existência de liberdade de imprensa e de um jornalismo livre que exerça a sua função de escrutinar o poder político.
Isto tudo vem a propósito da indignação de ver parte da esquerda portuguesa a relativizar o que se passa no Brasil e a fazer de Dilma Rousseff e de Lula da Silva vítimas de tenebrosas conspirações de juízes e jornalistas. Seria ridículo se não fosse grave ler o comunicado do PCP em que é dito que "os recentes desenvolvimentos no Brasil não podem ser desligados do aprofundamento da crise do capitalismo", que no Brasil "os seus sectores mais retrógrados e antidemocráticos promovem uma intensa operação de desestabilização e de cariz golpista", que agem "por via da instrumentalização do poder judicial e da acção de órgãos de comunicação social", para uma "acção de desestabilização indissociável do conjunto de manobras de ingerência promovidas pelos Estados Unidos".
Mas igualmente grave é a declaração feita por Catarina Martins de que a acção da Justiça brasileira é um "golpe de Estado do século XXI", acusando "um poder judicial, com órgãos de comunicação social, que está a agir fora do Estado de direito". Ou a relativização feita por Louçã na SIC, em que tentou reduzir ao ridículo as investigações.
Será que Louçã quer fazer de conta que acha que todos nós acreditamos que ele acredita que os indícios conhecidos sobre Lula são tão-só a ida uma vez a uma casa que pensou comprar e não comprou? Considera Louçã que nós acreditamos que ele acredita que é apenas por causa de um juiz que é teimoso e persegue Lula que este está a ser investigado? Será que Jerónimo de Sousa e a restante direcção do PCP acreditam mesmo que nós acreditamos que eles acreditam que o que está em causa é um ataque do capitalismo e dos Estados Unidos a um líder de esquerda?
Minhas senhoras e meus senhores, corrupção é corrupção. Ponto final. Parágrafo.

Leiamos então o ponto de vista de um dos representantes dessa esquerda unida pelos nossos nobres ideais de Abril:

Brasil: um golpe de Estado em transmissão directa
Francisco Louçã
Público, 22/3/2016
Assistimos no Brasil a um golpe de Estado em transmissão directa, por vezes em câmara lenta, outras em aceleração frenética. É assim que se procede no século XXI: em vez de tanques nas ruas, tudo começa com um juiz que quer derrubar um governo, declarando guerra ao princípio da soberania democrática. É golpe curto, bem sei, prender para eliminar politicamente e depois deixar as coisas seguirem o seu destino.
O juiz é um poder, certamente um poder especial pois ignora a proclamada separação de poderes e actua fora da lei, mas é um poder que pode tudo, pois não será corrigido em tempo útil, se é que alguma vez o será. O mal está feito, a desconfiança semeada, o pânico nas ruas, só não sabemos como vai prosseguir a saga.
Começou com a primeira detenção de Lula que era ilegal, e era mesmo. Depois, a escuta será ilegal, e é, a sua divulgação um crime, e é, a escuta abrangia todos os advogados de um escritório, e isso é delirantemente ilegal, o juiz é suspeito de intuito partidário, e não o esconde, a própria perseguição e o pedido de prisão preventiva não têm fundamento legal, e não têm mesmo, mas o juiz é um poder inexpugnável e por isso pode desencadear uma tempestade. Segundo Marco Aurélio Mello, Juiz do Supremo Tribunal Federal, referindo-se a Sérgio Moro, o magistrado que desencadeou as primeiras salvas do golpe, “ele simplesmente deixou de lado a Lei”.
Precipitado pelos magistrados golpistas, a manobra decide-se por estes dias no balanceamento dos movimentos da opinião pública, na ocupação da rua, nos ajustes de contas partidários e sobretudo na corrida contra o tempo. O que é certo é que nunca tínhamos visto um golpe de Estado assim: no Brasil, em 1964, no Chile, em 1973, na Argentina, em 1976, foi com baionetas que a ditadura avançou e não com sentenças ou acusações judiciais. Este novo tipo de golpe é mais eficaz, mobiliza a dúvida e espalha os ódios, disputa a aceitação e mesmo a participação de parte da população, ocupa o terreno do simbólico, que é a sede da política. Esta técnica de golpe de Estado neutraliza a argumentação e assim exclui a razão, porque se baseia na hegemonia afirmada de um poder supremo e imune à democracia. O César é o juiz, que se apresenta como um pai moralizador ou como o braço da vingança divina. Ele é o poder que pode tudo e por isso dispensa uma ditadura, se o choque e pavor tiverem como consequência a destruição eleitoral dos seus adversários, e neste caso a decapitação política de Lula, o mais temido candidato a re-presidente. O golpe tem este objectivo preciso: prender Lula, seja com que pretexto for.
Esta farsa grotesca, este golpe, havemos de convir que foi preparado ao longo de muito tempo. Havia esse ódio de classe contra Lula, um torneiro mecânico feito grande do país, havia o medo social das elites urbanas contra a massa popular em cidades de quinze milhões de habitantes, havia a raiva de latifundiários contra os sem-terra, havia as listas de sindicalistas a assassinar, tudo se foi conjugando para estes dias de chumbo.
Mas, ainda assim, mesmo com tanto ódio, nada fazia prever a cavalgada dos juízes e dos seus partidários. De facto, Lula governou sem beliscar os interesses dos que temem pela propriedade e pelo estatuto, o seu partido foi-se habituando aos salões e cultivando a intriga. Nem a terra foi distribuída nem a indústria e a finança foram ameaçadas ou entregues ao povo, que recebeu uns reais para que a pobreza ficasse menos pobre, umas escolas e universidades para os seus filhos e muita paciência para todos porque o Brasil ainda há-de ser um imenso Portugal. O pouco que mudou, mudou alguma coisa para muita gente dos de baixo mas nada para os de cima. E o Brasil viveu tranquilamente o encabulamento da Copa do Mundo e depois voltou à sua vida de todos os dias. Nada fazia prever o golpe, portanto.
Dilma remou na mesma maré. Inaugurou o segundo mandato cedendo tudo à direita, nomeando para postos chaves do governo o homem que seria o ministro das finanças do seu adversário e uma representante de terratenentes para a agricultura. Porque deu tudo aos adversários, o golpe parecia coisa de ficção ou de jogo de computador.
Até que chegou o Caso Petrobrás, ou Lavajato. E ele tocou no ponto frágil de toda esta construção, os partidos, tanto do governo como da oposição. O principal partido de direita que faz parte do acordo governista, o PMDB, distinguiu-se entre os que, com o presidente do Parlamento Federal, Eduardo Cunha, correm contra o tempo da acusação judicial e da prisão, depois de as suas contas no estrangeiro serem identificadas e ser exibida a mão que lhe pagou. Outra parte do PMDB, com o vice-presidente Temer, perfila-o como sucessor de Dilma se conseguir a sua impugnação. No PSDB, o principal partido de oposição, luta-se entre os que querem demitir Dilma agora (com alguma acusação derivada do Lavajato), para provocar uma eleição a curto prazo, ou os que querem demiti-la depois (com o processo rocambolesco sobre o financiamento da campanha eleitoral), conforme as conveniências de cada um, seja Serra, Alckmin ou Aécio Neves, colegas e inimigos. Todos correm contra o tempo e isso cria uma irracionalidade colectiva: os chefes partidários, apanhados na teia da corrupção e irmanados na desgraça, escolheram todos o quanto pior melhor. Quanto mais depressa incendiarem o Brasil, mais depressa esperam sentir-se aliviados da pressão sobre cada um deles.
É preciso reconhecer que o PT alimentou esta monstruosidade. Os seus dirigentes acreditaram que a composição da aliança governista criaria uma distribuição de benesses e um espírito situacionista que cimentaria esta multidão de partidos e de interesses graúdos. Chegou-se ao ponto, quanto as primeiras frestas estalaram, de agenciar a compra e venda de votos de deputados com o Mensalão, para manter o governo a flutuar entre as suas próprias piranhas.
O Brasil tornou-se assim um pavor de ameaças neste golpe em câmara lenta onde só vejo desperdício de esperança, tanta tristeza, tanta gente extraordinária que está a ser sacrificada, tanta ameaça contra a liberdade, tanta pesporrência golpista, tanta violência evocativa da ditadura militar, tanta asquerosa condenação dos mais fracos: nesse mundo eles não têm direito. Não precisávamos desta farsa de golpe para nos lembrarmos que a história é parteira de tragédias.

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