Além dos artigos de José
Pacheco Pereira e de Alberto Gonçalves, sobre a questão
dos esconderijos das massas pecuniárias em maior volume – e do mais recente
deles, o «Panama papers» - leio ainda «Coito fiscal interrompido» de João Taborda da Gama, de que transcrevo o
parágrafo final das suas revelações moralistas e punitivas:
«Na
música dos Clash a lei ganha sempre. Mas na versão dos Dead Kennedys, de 1978,
a letra é alterada e aquele que luta contra a lei ganha sempre, e ganha porque
tem amigos em sítios importantes, no fundo ganha porque ele é a lei. No
mundo dos offshores e nos Panama Papers é um pouco assim.
As
leis durante décadas não quiseram verdadeiramente apanhar o dinheiro que lhes
fugia, e a maior parte das pessoas não se preocupava muito com isso. Mas
depois aconteceu esta coisa da aldeia global e esta coisa da crise, da
austeridade, da crescente moralização do espaço público (em 2011, a Conferência
Episcopal Portuguesa lembrou que "se há paraísos fiscais, há infernos de
pobreza e injustiça"), se calhar aconteceu mesmo esta coisa de o mundo ir
ficando um lugar melhor, mais justo. E a lei formal, da garantia absoluta de
privacidade, do direito absoluto ao planeamento fiscal, do artificialismo e das
empresas sem substância, foram totalmente ultrapassadas por um novo sentido de
justiça, uma ideia de justiça fiscal global. Uma ideia que legitima atuações
informais de acesso a informação protegida e a sua divulgação como a que foi
feita pelo Consórcio Internacional. É a sociedade a fazer as vezes da lei,
porque diga a lei o que disser, o mundo já decidiu apanhar os espertalhões que
descansavam no coito.»
Concordo com Pacheco Pereira, no texto seguinte, que historia os factos de
um ponto de vista igualmente condenatório dada a inversão do princípio cultural
e humanista básico - o do «poder político legitimado pelo voto e pelo
primado da lei sobreposto ao poder económico» - (inversão
que fez afundar não só os princípios da democracia, mas os do bom senso e da
moral) - mas igualmente concordo com o cepticismo de Alberto Gonçalves no 3º texto, condenatório
das trafulhices permitidas por um Estado como primeiro comilão, acenando à
corrupção.
Duas crónicas para guardar – a primeira como documento
de saber histórico e moralista, a segunda como sátira bastante corrosiva do
sistema que apela à “fuga”.
Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia
Público,
9/04/2016
Se
queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro anónimo,
escondido, fugido e protegido algures é objectivamente mais dissolvente do que
os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas.
Nas suas declarações sobre as revelações (mais confirmações
do que revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo Rebelo de Sousa
foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos offshores era um
problema de democracia. E é.
Os
offshores são, antes de tudo, do crime, da lavagem de dinheiro, da fuga ao
fisco, uma questão que significa para as democracias a perda de um princípio
básico — o de que o poder político legitimado pelo voto e pelo primado
da lei se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão dos offshores
apenas como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é já um mau
ponto de partida.
A
questão que muitas vezes é iludida é que não existe uma única razão
económica sólida para que haja offshores. Para que é que eles servem
para a economia, para a produção, para o emprego, para a indústria, para o
comércio, para o investimento limpo? Nada. Tudo aquilo para que os offshores
servem é para esconder dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem
do dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão
desaguar aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.
O
que os políticos europeus dizem, quando confrontados com esta realidade, ou com
os escândalos periódicos, como o actual com os documentos da Mossack Fonseca, é
que não podem fazer nada e que o que podem fazer fazem. Por detrás desta
declaração de impotência — eu estou a falar de políticos democráticos — está o
retrato da captura ocorrida nas últimas décadas, e agravada pela crise de 2008,
da política em democracia pelos interesses financeiros globais, pela banca,
pelos “mercados”. Sim, porque uma das faces semivisíveis dos offshores são os
biliões que circulam em fundos e outros tipo de operações financeiras e
bancárias, a que nós chamamos os “mercados”, o Deus ex machina que faz mover os
países como marionetas.
Podem
fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito: podem fazer tudo. E acrescento:
mas não querem. Podem fazer tudo, mas não querem — esta é a frase que
melhor resume o “problema para a democracia”. E não querem por dois motivos.
Um de fraqueza política, — a maioria dos políticos europeus são gente frágil à
frente de países fragilizados, uma combinação de que resulta uma imensa
fraqueza para lidar com interesses poderosos, como são os que estão por detrás
e pela frente dos offshores. O outro é a hegemonia nos partidos de direita, e
em muitos socialistas subservientes, de uma mistura entre ideias sobre a
economia, sobre o Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos países, que
corresponde ao “pensamento único” que tem presidido à política da Comissão
Europeia, do Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a cabo a política
de Schäuble e dos alemães e de alguns outros países seus aliados.
Esta
segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa aparece como de costume nos
mais rudimentares defensores dos offshores que pululam na nossa direita mais
radical, nos jornais, nos blogues e nas redes sociais. Eles são reveladores,
porque têm a imprudência de dizer aquilo que os de cima da cadeia alimentar
pensam, mas não podem dizer. E todos ficaram imensamente incomodados com os
“Documentos do Panamá”, porque é “deles” e dos seus que os “documentos” falam.
E correram logo a dizer que era uma questão com Putin e não com o capitalismo. Ou
seja, os offshores são mais uma perversão do comunismo e do socialismo e dos
“oligarcas”, como gostam de chamar aos poderosos do “outro lado”. E
então é ler como os offshores são uma resposta à tirania fiscal dos Estados
“socialistas”, ou uma digna resposta da liberdade económica do dinheiro e das
empresas para fluir para todo o lado sem barreiras. Sem dúvida, admitem,
que há crimes e lavagem de dinheiro, mas são pechas menores dos offshores. O
essencial é que eles são mais uma manifestação normal da liberdade económica e
da luta contra a prepotência dos Estados e das políticas “socialistas” dos
altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme aumento de impostos”, retirou
aos contribuintes qualquer protecção face aos abusos do fisco e só é “liberal”
na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão invisível” que foi possuída pela
família Adams.
Andar aos papéis
Alberto Gonçalves
D.N, 10/4/16
Além
do título apelativo, a história dos Panama Papers dava um filme. Um filme
dramático, longo e chato como a ferrugem. Ou uma comédia razoável. Eu pelo
menos ri-me aqui e ali. Há a rábula das virgens ofendidas com as violações
nacionais do segredo de justiça que se tornam galdérias excitadas com qualquer
revelação internacional obtida à socapa. Há a rábula dos regimes
"progressistas" implicados, prova cabal de que o desprezo pela lógica
do capital termina onde começa a possibilidade de ganhar uns trocos. Há a
rábula do sr. Almodóvar, o cineasta cuja obra encerra subtis críticas ao
consumismo e cuja vida abraça o dito sem subtilezas. Há a rábula dos
desiludidos com a escassez na lista de milionários de Wall Street, que
engendraram imediatamente uma teoria da conspiração para imputar os
"papéis" a um golpe americano. Há a rábula do Expresso, que
tarda em divulgar os "ex-ministros" metidos nisto. E há, sobretudo, a
rábula dos que acham sinistra a existência de "paraísos fiscais", e
criminosos todos os que fogem aos infernos do género.
Enquanto
as boas almas se horrorizavam com os Panama Papers, em Portugal o governo prometia
apostar jovialmente o fundo da Segurança Social em "reabilitação
urbana", leia-se entregar os descontos de todos a um punhado de
construtores amigos. É um mero exemplo, nem sequer fiscal. Porém, o que
para o caso importa é o silêncio dedicado à proeza, garantia de que as boas
almas não a estranharam. Não podiam, já que a tradição é justamente essa, a
de o Estado achar que os cidadãos e as empresas são clinicamente incapazes
de gastar o próprio dinheiro com juízo. E a resignação com que muitos
cidadãos e muitas empresas aceitam o dogma parece dar razão ao Estado. Não
dá: apenas dá razão a quem possui os meios e o engenho para colocar os
rendimentos literalmente ao largo.
As
terríveis offshores da lenda são, afinal, territórios que optaram por não
sujeitar as pessoas a saques regulares e "legítimos". Por isso atraem
fortunas. E por isso atraem o ódio dos socialistas dos vários partidos,
genuinamente convencidos de que as fortunas seriam bem melhor aplicadas na
satisfação de compinchas e na compra de votos. Quando Augusto
Santos Silva sugere o fim das offshores em nome da "transparência", o
cinismo é óbvio. É verdade que os Panamás e os Mónacos também atraem
indivíduos corruptos ou no mínimo pouco confiáveis, por acaso o tipo de
gente que nunca, eu fique ceguinho, alguma vez desempenhou funções estatais
relevantes ou beneficiou delas. O facto de haver meliantes no ramo da
filatelia, digamos, talvez não justifique a abolição dessa ancestral
actividade.
A
abolir alguma coisa, antes o socialismo. Não é por nada, mas tendo a
simpatizar mais com instituições que respeitam o meu dinheiro do que com
aquelas que mo subtraem. Desgraçadamente, a paixão é platónica: não tenho um
euro fora do país, quer porque o Estado me tira metade dos euros primeiro, quer
porque os paraísos em causa se limitam a receber os ricos. Ao contrário do
que proclama o sensível Pacheco Pereira, as offshores só são uma ameaça para a
democracia se não se democratizarem. Pormenores à parte, a ameaça é outra.
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