terça-feira, 12 de abril de 2016

Do povo saíram




Além dos artigos de José Pacheco Pereira e de Alberto Gonçalves, sobre a questão dos esconderijos das massas pecuniárias em maior volume – e do mais recente deles, o «Panama papers» - leio ainda «Coito fiscal interrompido» de João Taborda da Gama, de que transcrevo o parágrafo final das suas revelações moralistas e punitivas:

«Na música dos Clash a lei ganha sempre. Mas na versão dos Dead Kennedys, de 1978, a letra é alterada e aquele que luta contra a lei ganha sempre, e ganha porque tem amigos em sítios importantes, no fundo ganha porque ele é a lei. No mundo dos offshores e nos Panama Papers é um pouco assim.
As leis durante décadas não quiseram verdadeiramente apanhar o dinheiro que lhes fugia, e a maior parte das pessoas não se preocupava muito com isso. Mas depois aconteceu esta coisa da aldeia global e esta coisa da crise, da austeridade, da crescente moralização do espaço público (em 2011, a Conferência Episcopal Portuguesa lembrou que "se há paraísos fiscais, há infernos de pobreza e injustiça"), se calhar aconteceu mesmo esta coisa de o mundo ir ficando um lugar melhor, mais justo. E a lei formal, da garantia absoluta de privacidade, do direito absoluto ao planeamento fiscal, do artificialismo e das empresas sem substância, foram totalmente ultrapassadas por um novo sentido de justiça, uma ideia de justiça fiscal global. Uma ideia que legitima atuações informais de acesso a informação protegida e a sua divulgação como a que foi feita pelo Consórcio Internacional. É a sociedade a fazer as vezes da lei, porque diga a lei o que disser, o mundo já decidiu apanhar os espertalhões que descansavam no coito.»

Concordo com Pacheco Pereira, no texto seguinte, que historia os factos de um ponto de vista igualmente condenatório dada a inversão do princípio cultural e humanista básico - o do «poder político legitimado pelo voto e pelo primado da lei sobreposto ao poder económico»  - (inversão que fez afundar não só os princípios da democracia, mas os do bom senso e da moral) - mas igualmente concordo com o cepticismo de Alberto Gonçalves no 3º texto, condenatório das trafulhices permitidas por um Estado como primeiro comilão, acenando à corrupção.
Duas crónicas para guardar – a primeira como documento de saber histórico e moralista, a segunda como sátira bastante corrosiva do sistema que apela à “fuga”.   

Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia
Público, 9/04/2016
Se queremos salvar a democracia no século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido algures é objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de Bruxelas.
Nas suas declarações sobre as revelações (mais confirmações do que revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo Rebelo de Sousa foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos offshores era um problema de democracia. E é.
Os offshores são, antes de tudo, do crime, da lavagem de dinheiro, da fuga ao fisco, uma questão que significa para as democracias a perda de um princípio básico o de que o poder político legitimado pelo voto e pelo primado da lei se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão dos offshores apenas como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é já um mau ponto de partida.
A questão que muitas vezes é iludida é que não existe uma única razão económica sólida para que haja offshores. Para que é que eles servem para a economia, para a produção, para o emprego, para a indústria, para o comércio, para o investimento limpo? Nada. Tudo aquilo para que os offshores servem é para esconder dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem do dinheiro, através de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão desaguar aos grandes bancos sediados na Suíça ou em Londres.
O que os políticos europeus dizem, quando confrontados com esta realidade, ou com os escândalos periódicos, como o actual com os documentos da Mossack Fonseca, é que não podem fazer nada e que o que podem fazer fazem. Por detrás desta declaração de impotência — eu estou a falar de políticos democráticos — está o retrato da captura ocorrida nas últimas décadas, e agravada pela crise de 2008, da política em democracia pelos interesses financeiros globais, pela banca, pelos “mercados”. Sim, porque uma das faces semivisíveis dos offshores são os biliões que circulam em fundos e outros tipo de operações financeiras e bancárias, a que nós chamamos os “mercados”, o Deus ex machina que faz mover os países como marionetas.
Podem fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito: podem fazer tudo. E acrescento: mas não querem. Podem fazer tudo, mas não querem — esta é a frase que melhor resume o “problema para a democracia”. E não querem por dois motivos. Um de fraqueza política, — a maioria dos políticos europeus são gente frágil à frente de países fragilizados, uma combinação de que resulta uma imensa fraqueza para lidar com interesses poderosos, como são os que estão por detrás e pela frente dos offshores. O outro é a hegemonia nos partidos de direita, e em muitos socialistas subservientes, de uma mistura entre ideias sobre a economia, sobre o Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos países, que corresponde ao “pensamento único” que tem presidido à política da Comissão Europeia, do Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a cabo a política de Schäuble e dos alemães e de alguns outros países seus aliados.
Esta segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa aparece como de costume nos mais rudimentares defensores dos offshores que pululam na nossa direita mais radical, nos jornais, nos blogues e nas redes sociais. Eles são reveladores, porque têm a imprudência de dizer aquilo que os de cima da cadeia alimentar pensam, mas não podem dizer. E todos ficaram imensamente incomodados com os “Documentos do Panamá”, porque é “deles” e dos seus que os “documentos” falam. E correram logo a dizer que era uma questão com Putin e não com o capitalismo. Ou seja, os offshores são mais uma perversão do comunismo e do socialismo e dos “oligarcas”, como gostam de chamar aos poderosos do “outro lado”. E então é ler como os offshores são uma resposta à tirania fiscal dos Estados “socialistas”, ou uma digna resposta da liberdade económica do dinheiro e das empresas para fluir para todo o lado sem barreiras. Sem dúvida, admitem, que há crimes e lavagem de dinheiro, mas são pechas menores dos offshores. O essencial é que eles são mais uma manifestação normal da liberdade económica e da luta contra a prepotência dos Estados e das políticas “socialistas” dos altos impostos. Isto vem de quem fez o “enorme aumento de impostos”, retirou aos contribuintes qualquer protecção face aos abusos do fisco e só é “liberal” na bandeirinha da lapela. Pobre da “mão invisível” que foi possuída pela família Adams.

Andar aos papéis
Alberto Gonçalves
D.N, 10/4/16
Além do título apelativo, a história dos Panama Papers dava um filme. Um filme dramático, longo e chato como a ferrugem. Ou uma comédia razoável. Eu pelo menos ri-me aqui e ali. Há a rábula das virgens ofendidas com as violações nacionais do segredo de justiça que se tornam galdérias excitadas com qualquer revelação internacional obtida à socapa. Há a rábula dos regimes "progressistas" implicados, prova cabal de que o desprezo pela lógica do capital termina onde começa a possibilidade de ganhar uns trocos. Há a rábula do sr. Almodóvar, o cineasta cuja obra encerra subtis críticas ao consumismo e cuja vida abraça o dito sem subtilezas. Há a rábula dos desiludidos com a escassez na lista de milionários de Wall Street, que engendraram imediatamente uma teoria da conspiração para imputar os "papéis" a um golpe americano. Há a rábula do Expresso, que tarda em divulgar os "ex-ministros" metidos nisto. E há, sobretudo, a rábula dos que acham sinistra a existência de "paraísos fiscais", e criminosos todos os que fogem aos infernos do género.
Enquanto as boas almas se horrorizavam com os Panama Papers, em Portugal o governo prometia apostar jovialmente o fundo da Segurança Social em "reabilitação urbana", leia-se entregar os descontos de todos a um punhado de construtores amigos. É um mero exemplo, nem sequer fiscal. Porém, o que para o caso importa é o silêncio dedicado à proeza, garantia de que as boas almas não a estranharam. Não podiam, já que a tradição é justamente essa, a de o Estado achar que os cidadãos e as empresas são clinicamente incapazes de gastar o próprio dinheiro com juízo. E a resignação com que muitos cidadãos e muitas empresas aceitam o dogma parece dar razão ao Estado. Não dá: apenas dá razão a quem possui os meios e o engenho para colocar os rendimentos literalmente ao largo.
As terríveis offshores da lenda são, afinal, territórios que optaram por não sujeitar as pessoas a saques regulares e "legítimos". Por isso atraem fortunas. E por isso atraem o ódio dos socialistas dos vários partidos, genuinamente convencidos de que as fortunas seriam bem melhor aplicadas na satisfação de compinchas e na compra de votos. Quando Augusto Santos Silva sugere o fim das offshores em nome da "transparência", o cinismo é óbvio. É verdade que os Panamás e os Mónacos também atraem indivíduos corruptos ou no mínimo pouco confiáveis, por acaso o tipo de gente que nunca, eu fique ceguinho, alguma vez desempenhou funções estatais relevantes ou beneficiou delas. O facto de haver meliantes no ramo da filatelia, digamos, talvez não justifique a abolição dessa ancestral actividade.
A abolir alguma coisa, antes o socialismo. Não é por nada, mas tendo a simpatizar mais com instituições que respeitam o meu dinheiro do que com aquelas que mo subtraem. Desgraçadamente, a paixão é platónica: não tenho um euro fora do país, quer porque o Estado me tira metade dos euros primeiro, quer porque os paraísos em causa se limitam a receber os ricos. Ao contrário do que proclama o sensível Pacheco Pereira, as offshores só são uma ameaça para a democracia se não se democratizarem. Pormenores à parte, a ameaça é outra.

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