quinta-feira, 28 de abril de 2016

Morra Marta (mas) morra farta



Serve o título para justificar uma das asserções do artigo de João Miguel Tavares – «O lugar da adversativa» - como definindo o homem (mais o respectivo par feminino, que os pruridos de sensibilidade democrática ordenam que não fique de fora dos conceitos da universalidade por respeito à igualdade de direitos de ambos os sexos. Por isso, na banca do peixe, onde os epicenos são mais comuns – embora também existam muitas confusões de falsos emparelhamentos na zona não aquática, como é o caso da lagarta, cujo par oficial seria pura aberração atribuir-se-lhe o lagarto, a não ser em banda desenhada, que essa admite casamentos díspares, como é o caso do sapo Cocas e da porca Piggy que ficou miss por via da aberração. Mas eu falava da banca do peixe, onde existem mais epicenos, o que torna as compras mais prolongadas, se se quiser optar pela delicadeza dos acrescentos – macho ou fêmea - para não ferir as susceptibilidades das criaturas destinadas aos tachos: - Arranje-me um quilo de sardinhas macho e meio de sardinhas fêmea, quero tanto de caranguejo macho e tanto de fêmea, de lulas machos e fêmeas, se faz favor…)
Dizia eu, pois, que, servindo a adversativa para introduzir opostos, o que lhe vem do adjectivo latino adversus, adversa, adversum, que significa contrário, no masculino, feminino e neutro, este último género não existindo entre nós, daí que o nosso banco não seja forçosamente a parelha da nossa banca, (embora se possam efectivamente harmonizar), João Miguel Tavares parte dela – da adversativa – para definir conceitos que têm por base a moral e a filosofia, segundo os pontos de vista de cada utilizador da conjunção, referindo-se aos apoiantes da Justiça ou aos apoiantes dos (in)justiçados: todos eles apresentam deficiências mas ou se opta por uns ou por outros, conforme o partido político. E assim se define a moral de cada um, segundo o lugar do mas / porém /contudo…, na opinião de João Miguel Tavares.

Penso, todavia,  que não é o mas que se desloca, mas as asserções opostas que definem os pareceres: Assim: Se eu disser “Ela é bonita mas muito mazinha”, eu me defino como defensor da Moral. Se, pelo contrário, disser: “Ela é mazinha mas muito bonita”, coloco-me numa posição de admirador do Belo, desculpabilizante do erro. Não é o mas que me define, ocupando o seu lugar no centro, mas o posicionamento dos dois termos da asserção, segundo a minha opção. O certo é que a última palavra me pertence, a partir do mas, e isso dá-me pujança. E conforto.

O lugar da adversativa
Público, 22/03/2016

Diz-me onde colocas o teu “mas” e eu dir-te-ei quem és. Um dos segredos para compreender as genuínas convicções de qualquer pessoa que fale sobre Lula da Silva ou José Sócrates está em detectar o lugar onde no seu discurso surge a conjunção adversativa “mas”. Como acontece em todas as situações extremadas com vastas zonas de cinzento, o “mas” aparece sempre. Qualquer pessoa admite que os comportamentos de Lula ou Sócrates são criticáveis, e qualquer pessoa admite que a justiça tem tido comportamentos discutíveis. A questão está no peso que cada um de nós atribui a uma coisa e a outra.
Não é, de todo, equivalente dizer: “A forma como os telefonemas de Lula foram divulgados pelo juiz Sérgio Moro é inadmissível, mas a aceitação por parte de Lula de um cargo de ministro de Estado é intolerável.” Ou dizer: “A aceitação por parte de Lula de um cargo de ministro de Estado é inadmissível, mas a forma como os seus telefonemas foram divulgados pelo juiz Sérgio Moro é intolerável.” Do mesmo modo, não é equivalente dizer: “As fugas ao segredo de justiça têm de ser esclarecidas, mas as suspeitas que recaem sobre José Sócrates são de uma gravidade extrema.” Ou dizer: “As suspeitas que recaem sobre José Sócrates têm de ser esclarecidas, mas as fugas ao segredo de justiça são de uma gravidade extrema.”
Em qualquer dos casos, o político, o jornalista ou o comentador está a exibir um pretenso equilíbrio argumentativo. Só que, visto ao pé da letra, ele é muito menos equilibrado do que finge parecer. A colocação da adversativa tem como efeito retórico automático a valorização argumentativa da segunda parte da frase – donde, é invariavelmente essa a posição que o político, o jornalista ou o comentador está mais interessado em defender. Mais importante do que saber como começa um texto ou um discurso é verificar como ele termina. Se o autor desse discurso acabar a protestar contra o estado da justiça em vez de protestar contra o estado da política, há uma escolha que foi feita, e certamente que ela não foi ingénua.   
Dir-me-ão: mas não é possível uma pessoa não tomar partido e estar igualmente horrorizada pela actuação dos políticos e da justiça? Possível, será. Mas é muito, muito difícil. A conjunção adversativa é muito sedutora, porque junta opostos, permite contrastes e promove uma certa imagem de equilíbrio do locutor, mas a sua neutralidade é apenas simulada e, quase sempre, falsa. O “mas” tem de ser colocado nalgum lado, e o lugar onde ele está acaba por clarificar as verdadeiras intenções (e as verdadeiras convicções) do dono do discurso.
 No meu caso, essa opção está feita: ainda que haja abusos da justiça que me parecem inadmissíveis (a divulgação das conversas de Lula com o seu advogado ultrapassam aquilo que é aceitável num Estado de direito), eles não têm comparação com a gravidade do que está a ser posto a descoberto na Operação Lava Jato. Há quem (como o PCP e o Bloco) coloque a ideologia à frente da corrupção, dentro da lógica “ele é corrupto mas é o meu corrupto”. Dispenso essa visão, tal como dispenso o medo de uma qualquer “república dos juízes”, esse velho espantalho que é sempre erguido quando o statu quo entra em pânico. O que é isso de uma “república dos juízes”, eu não faço ideia, porque nunca vi nenhuma. Já um regime corrupto sei muito bem o que é, porque continuo a ver muitos. E contra isto não há mas, nem meio mas.

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