Serve o título para justificar
uma das asserções do artigo de João Miguel Tavares – «O lugar da adversativa» -
como definindo o homem (mais o respectivo par feminino, que os pruridos de
sensibilidade democrática ordenam que não fique de fora dos conceitos da
universalidade por respeito à igualdade de direitos de ambos os sexos. Por
isso, na banca do peixe, onde os epicenos são mais comuns – embora também
existam muitas confusões de falsos emparelhamentos na zona não aquática, como é
o caso da lagarta, cujo par oficial seria pura aberração atribuir-se-lhe o
lagarto, a não ser em banda desenhada, que essa admite casamentos díspares,
como é o caso do sapo Cocas e da porca Piggy que ficou miss por via da
aberração. Mas eu falava da banca do peixe, onde existem mais epicenos, o que
torna as compras mais prolongadas, se se quiser optar pela delicadeza dos
acrescentos – macho ou fêmea - para não ferir as susceptibilidades das
criaturas destinadas aos tachos: - Arranje-me um quilo de sardinhas macho e
meio de sardinhas fêmea, quero tanto de caranguejo macho e tanto de fêmea, de
lulas machos e fêmeas, se faz favor…)
Dizia eu, pois, que, servindo
a adversativa para introduzir opostos, o que lhe vem do adjectivo latino adversus,
adversa, adversum, que significa contrário, no masculino, feminino e
neutro, este último género não existindo entre nós, daí que o nosso banco não
seja forçosamente a parelha da nossa banca, (embora se possam efectivamente harmonizar),
João Miguel Tavares parte dela – da adversativa – para definir conceitos que
têm por base a moral e a filosofia, segundo os pontos de vista de cada
utilizador da conjunção, referindo-se aos apoiantes da Justiça ou aos apoiantes
dos (in)justiçados: todos eles apresentam deficiências
mas ou se opta por uns ou por outros, conforme o partido político. E assim se
define a moral de cada um, segundo o lugar do mas / porém /contudo…, na
opinião de João Miguel Tavares.
Penso, todavia, que não é o mas que se desloca, mas as asserções
opostas que definem os pareceres: Assim: Se eu disser “Ela é bonita mas
muito mazinha”, eu me defino como defensor da Moral. Se, pelo contrário,
disser: “Ela é mazinha mas muito bonita”, coloco-me numa posição
de admirador do Belo, desculpabilizante do erro. Não é o mas que me
define, ocupando o seu lugar no centro, mas o posicionamento dos dois termos da
asserção, segundo a minha opção. O certo é que a última palavra me pertence, a partir do mas, e isso dá-me pujança. E conforto.
O
lugar da adversativa
Público, 22/03/2016
Diz-me onde
colocas o teu “mas” e eu dir-te-ei quem és. Um dos segredos para compreender as
genuínas convicções de qualquer pessoa que fale sobre Lula da Silva ou José
Sócrates está em detectar o lugar onde no seu discurso surge a conjunção
adversativa “mas”. Como acontece em todas as situações extremadas com vastas
zonas de cinzento, o “mas” aparece sempre. Qualquer pessoa admite que os
comportamentos de Lula ou Sócrates são criticáveis, e qualquer pessoa admite
que a justiça tem tido comportamentos discutíveis. A questão está no peso que
cada um de nós atribui a uma coisa e a outra.
Não é, de todo, equivalente dizer: “A
forma como os telefonemas de Lula foram divulgados pelo juiz Sérgio Moro é
inadmissível, mas a aceitação por parte de Lula de um cargo de ministro de
Estado é intolerável.” Ou dizer: “A aceitação por parte de Lula de um cargo de
ministro de Estado é inadmissível, mas a forma como os seus telefonemas foram
divulgados pelo juiz Sérgio Moro é intolerável.” Do mesmo modo, não é
equivalente dizer: “As fugas ao segredo de justiça têm de ser esclarecidas, mas
as suspeitas que recaem sobre José Sócrates são de uma gravidade extrema.” Ou
dizer: “As suspeitas que recaem sobre José Sócrates têm de ser esclarecidas,
mas as fugas ao segredo de justiça são de uma gravidade extrema.”
Em qualquer dos casos, o político, o
jornalista ou o comentador está a exibir um pretenso equilíbrio argumentativo.
Só que, visto ao pé da letra, ele é muito menos equilibrado do que finge
parecer. A colocação da adversativa tem como efeito retórico automático a
valorização argumentativa da segunda parte da frase – donde, é invariavelmente
essa a posição que o político, o jornalista ou o comentador está mais
interessado em defender. Mais importante do que saber como começa um texto ou
um discurso é verificar como ele termina. Se o autor desse discurso acabar a
protestar contra o estado da justiça em vez de protestar contra o estado da
política, há uma escolha que foi feita, e certamente que ela não foi ingénua.
Dir-me-ão: mas não é possível uma pessoa
não tomar partido e estar igualmente horrorizada pela actuação dos políticos e
da justiça? Possível, será. Mas é muito, muito difícil. A conjunção adversativa
é muito sedutora, porque junta opostos, permite contrastes e promove uma certa
imagem de equilíbrio do locutor, mas a sua neutralidade é apenas simulada e,
quase sempre, falsa. O “mas” tem de ser colocado nalgum lado, e o lugar onde
ele está acaba por clarificar as verdadeiras intenções (e as verdadeiras
convicções) do dono do discurso.
No
meu caso, essa opção está feita: ainda que haja abusos da justiça que me
parecem inadmissíveis (a divulgação das conversas de Lula com o seu advogado
ultrapassam aquilo que é aceitável num Estado de direito), eles não têm
comparação com a gravidade do que está a ser posto a descoberto na Operação Lava Jato. Há quem (como o PCP e o Bloco) coloque a
ideologia à frente da corrupção, dentro da lógica “ele é corrupto mas é o meu corrupto”. Dispenso essa visão, tal como dispenso o
medo de uma qualquer “república dos juízes”, esse velho espantalho que é sempre
erguido quando o statu quo entra em pânico. O
que é isso de uma “república dos juízes”, eu não faço ideia, porque nunca vi nenhuma.
Já um regime corrupto sei muito bem o que é, porque continuo a ver muitos. E
contra isto não há mas, nem meio mas.
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