domingo, 17 de abril de 2016

Como sair-se desta?



Um jornal que me tinha escapado, soterrado na profusão de Públicos e Expresso com que a minha irmã fraternalmente preenche as minhas breves ânsias de cultura política que primeiro lhe passaram pelas mãos, contribuindo, se não para o aumento de vendas, pelo menos para a difusão dos textos do nosso prazer semanal.
Porque hoje é sábado, e não tenho que me debruçar sobre os livros do Bruno, para mais rapidamente conseguir passar-lhe as mensagens da sua cultura escolar, que considero perfeitamente próprias para a minha idade, no seu nível de exigência que julgo não permitir tempo para brincar aos meninos do 7º ano, tempo de que eu prescindo agora mas que não deixei de aproveitar outrora, com convicção, peguei neste DN de há mais de um mês, onde encontro uma crónica de Alberto Gonçalves e um artigo historiográfico de Jaime Nogueira Pinto que, como sempre, me encantaram: o texto do historiador Jaime Nogueira Pinto que transcrevo com o prazer de sempre, na admiração por uma lucidez reconhecida desde os tempos do «Portugal - Os Anos do Fim» com que fui alimentando orgulhos patrióticos, nessas excepções corajosas de quem se aventurava a contestar os reboliços destruidores de divisas como essa do “Pola Lei e pola Grei” já relembrada a D. João III por Sá de Miranda, na conhecida epístola a esse “Rei de muitos Reis”, referindo-se ao “grão rei” D. João II:
Do vosso nome um grão rei
neste reino lusitano,
se pôs essa mesma lei,
que diz o seu Pelicano:
Pola Lei e Pola Grei.
 Neste caso, sublinho os conceitos “direita” e “esquerda”, não mais dum ponto de vista maniqueísta, que é o meu, feito de despretensão conceptual, que me fez votar inicialmente num CDS supostamente defensor dos valores clássicos, como eram os meus, ainda grudada na tal divisa, e que paulatinamente, para fortalecer um grupo político mais provável opositor dos da esquerda que incluíam o PS, principal responsável no processo da desagregação pátria, canalizei para o PSD os meus votos, atida à divida pessoal “do mal o menos”. Jaime Nogueira Pinto - tal como fora a sua mulher, de saudosa memória, Maria José Nogueira Pinto - nas suas aparições súbitas televisivas, ou em escritos seus mediáticos, como este, esclarece com o preciso conhecimento, trazendo expectativas de mudança na formação do pensamento contemporâneo.
Tal não é o caso do sociólogo Alberto Gonçalves, cujo cepticismo realista se revela no retrato sarcástico do bem intencionado PR, desmascarando-lhe os artifícios e as ambiguidades, com pouca generosidade, é certo. Pois o papel do Presidente de uma República tão comezinha e tão reduzida em tantas frentes não pode ser senão aquele, de atamancar os vários desafios risonhamente. Que outra coisa poderá ele fazer, num país dilacerado por histórias de Bancos falidos onde a mais dispersa gente engana e contribui para o empobrecimento e a tristeza gerais do país?

O futuro da direita
Jaime Nogueira Pinto
DN, 11/3/16
A direita governou Portugal durante mais de quarenta anos com o regime nacional-autoritário de Salazar. Por isso, embora tenha tido altos custos, foi normal que a esquerda governasse no ciclo seguinte, em termos de hegemonia ideológica e supremacia política. Quando falo de direita e de esquerda não falo dos conceitos maniqueístas vulgarizados (pela "esquerda"), em que a esquerda são os pobres, os camponeses, as classes trabalhadoras, os intelectuais, os jovens, os progressistas, os bons; e a direita, os ricos, os lavradores (alentejanos), os patrões, os capitalistas, os reacionários, os fascistas, os maus da história. Nem da versão igualmente maniqueísta da "direita", em que a direita são as classes médias empreendedoras, os empresários, os liberais, os europeístas, os antifascistas, o "país real" - os bons; e a esquerda os que vivem de subsídios, os comunistas, os anarquistas, os socialistas, os estatistas, os totalitários - os maus...O que separa a direita da esquerda tem pouco ou nada que ver com estas guerras e epítetos de classe ou de renda: são bases filosóficas distintas como o "pessimismo" e o "otimismo" antropológicos, isto é, o ponto de partida sobre a natureza humana que classifica o homem como "naturalmente" bom ou mau. Santo Agostinho, Maquiavel e Hobbes seriam "de direita" e Rousseau, Marx e Lenine de esquerda.Se o 25 de Abril de 1974 rejeitou os valores de direita, a verdade é que as direitas, com exceção das novas gerações, tinham deixado de pensar politicamente nos últimos anos do Estado Novo. As esquerdas, aproveitando o descontentamento corporativo dos militares com a guerra de África e a transição marcelista, impuseram a sua linha a partir do golpe de Abril. A direita sociológica e até ideológica que sobreviveu, continuou ou recomeçou na política, teve, partidariamente, de se resignar a alinhar e votar nos partidos do "centro", no Centrão democrático social ou social-democrático. Os principais valores da trilogia estadonovista - Deus, Pátria e Família - desapareceram na voragem antifascista do PREC e na correção política que se lhe seguiu. Com medo de incorreções, os líderes partidários das direitas foram-se ficando pelo conservadorismo social-cristão ou por um compromisso de austeridade social-democrática que os seus inimigos qualificam de liberal ou ultraliberal ou "de direita" ou "ultradireita".Partindo de um pessimismo antropológico de base, os valores da direita estão ligados ao realismo geopolítico, ao nacionalismo político, ao conservadorismo familiar e social e à economia de mercado. E, numa altura em que a legislação está sujeita aos caprichos e à chantagem ideológica da esquerda utópica, também aos custos ocultos das mudanças.Se uma comunidade viveu durante muitos séculos com valores de orientação como o patriotismo, o enraizamento, a família tradicional, a propriedade privada, o sentido do transcendente será que se pode deixar de cultivá-los e acabar com eles sem consequências? A acabar: somos hoje uma nação dependente, mas o resto do mundo começou a dar a volta: estes valores (de direita) estão outra vez presentes no Leste europeu, na Ásia, nas Américas. Portugal, que sob este ciclo político-ideológico decaiu e empobreceu para limites nunca vistos, poderá nos próximos anos - e até pela terapia de choque do desastre - estar aberto a um novo ciclo político-ideológico.Às forças políticas e partidos da não-esquerda compete retomar sem medos as bandeiras da direita nacional, ou deixá-las abandonadas ou livres, para quem tiver a coragem e a força de as restaurar.Os dados são estes. Quem os irá lançar?

Foi para isto que se elegeu Marcelo?
Alberto Gonçalves
DN, 13/4/16
Até ver, o único momento apreciável da presidência de Marcelo revelou-se logo após a tomada de posse, quando as bancadas parlamentares do PCP e do BE recusaram aplaudir-lhe o juramento. Não foi grande demonstração da cultura democrática alegadamente adquirida após a alegada queda do alegado muro. Mas a aversão da extrema-esquerda é sempre uma medalha ou, no mínimo, uma carta de recomendação.
Infelizmente, os sinais positivos ficaram--se por aí. O dr. Costa, apetrechado de uma procuração que não me lembro de lhe ter passado, afirmou que "todos nos podemos reconhecer" nas palavras de Marcelo. O dr. Ferro dissertou acerca de um chefe de Estado "sintonizado com o país" e "promotor das convergências de que Portugal tanto necessita". O dr. César dos Açores garantiu que todo o PS "teve prazer" em aplaudir Marcelo. E as televisões encheram-se de "personalidades" maiores e menores, todas eufóricas, todas empenhadas em exaltar o novo presidente por comparação com o velho. O "politólogo" José Adelino Maltez, uma esperança adiada do pensamento pátrio, resumiu a coisa: "Marcelo é uma espécie de anti-Cavaco, psicologicamente falando".
Psicologicamente falando, isto não me caiu bem. Os encómios de destacadas calamidades do regime "colam" Marcelo aos mais repugnantes vícios do dito e, por si só, não auguram maravilhas. Caberia a Marcelo desmenti-los. Para cúmulo, Marcelo apa- rentemente decidiu confirmá-los: em pouquíssimos dias, o "anti-Cavaco" acumulou uma sucessão de embaraços que só uma criança, ou o nível médio da opinião publicada, tomaria por aquilo que o representativo Pedro Santana Lopes chama "boa onda" e "bom astral".
O embaraço começa no discurso inaugural, que o Público considerou ter dito "tudo o que é essencial". De facto, não disse nada, excepto um caldo de lugares-comuns e fezadas absurdas capazes de envergonhar quem ainda consegue sentir vergonha. Marcelo exortou-nos a afirmar o "amor-próprio" e exaltou a "dignidade da pessoa humana" (distinta, suponho, da pessoa desumana incapaz de se deleitar com lirismos assim). Marcelo prometeu guardar os "valores" da Constituição e ajudar a construir "uma comunidade convivial e solidária". Marcelo saudou a emigração que "vive a criar Portugais" e o mar, o fatal mar que é "prioridade nacional" e "vocação universal" (por infelicidade, esqueceu-se do sol). Marcelo convocou, mediante citação, Torga e Lobo Antunes. Marcelo deseja conciliar a "criatividade da iniciativa privada" com o "relevante sector social". Sobretudo Marcelo quer "unidade, pacificação e reforçada coesão nacional", no pressuposto de que as divergências políticas e as visões conflituais do mundo são meros tiques nervosos, resolúveis entre um almoço e dois abraços. Marcelo, em suma, sonha com o tipo de beatitude descrito pelas candidatas a Miss Universo. Para um simples presidente, parece-me ambição excessiva. E embaraço idem.
Desgraçadamente, a ambição não se ficou por aí. O embaraço também não. Depois de um espectáculo com cançonetistas ligeiros, a que assistiu de manta e que provou a proximidade do presidente dos "afectos" ao povo (no sentido, presumo, em que o povo pagou a festarola), Marcelo correu a pendurar no site da presidência umas pertinentes divagações sobre como "nós, portugueses, continuamos a minimizar o que valemos". Pelos vistos, "valemos muito mais do que pensamos ou dizemos", na medida em que "o nosso génio - o que nos distingue dos demais - é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica". Fomos "grandes no passado". Seremos "grandes no futuro". O presente, repleto de inépcia, prepotência, falências, mendicidade e prosápia, é que é uma chatice, de resto insusceptível de integrar as preocupações do estadista que se preza.
Podíamos, é verdade, atribuir a arrepiante vacuidade acima aos entusiasmos do primeiro dia. Marcelo não permitiu. No segundo dia, chamou a António Guterres "o vulto mais brilhante da sua geração", sem que compreendêssemos se pretendia elogiar o ex-governante ou caluniar a geração. Ao terceiro dia no cargo, Marcelo subiu ao Porto, onde o deixam "ser saudavelmente rude", para entregar umas rimas de rap aos inquilinos dos bairros camarários: "Ouvi e gostei deste hip hop do Norte, Portugal será mais forte / Aqui no Bairro do Cerco e onde está a sua gente, estará sempre o Presidente." Ao quarto dia, anunciou uma "aplicação" para smartphones, talvez do tipo Angry Birds. Nem ouso imaginar o que fará ao quinto, sexto e sétimo dias, que bastaram para Deus criar a Terra e sobrarão para Marcelo se transformar num consumado artista de rua, com números de dança, trapézio e monociclo.
A estratégia, que tenta reproduzir o sucesso da campanha, é clara: ao abdicar de escolhas "difíceis" numa situação dificílima para o país, leia-se ao evitar ferir os sentimentos da esquerda, Marcelo toma por adquirido o apoio dos que o elegeram e procura conquistar os que o detestam. Mal termine a aclamação pasmada em curso, arrisca-se a perder uns e a falhar os outros. Mesmo descontada a retórica dos "consensos", um presidente da República não pode ser um penduricalho sorridente. Se for, pobre República.

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