Um jornal que me tinha
escapado, soterrado na profusão de Públicos e Expresso com que a minha irmã fraternalmente
preenche as minhas breves ânsias de cultura política que primeiro lhe passaram
pelas mãos, contribuindo, se não para o aumento de vendas, pelo menos para a
difusão dos textos do nosso prazer semanal.
Porque hoje é sábado, e não
tenho que me debruçar sobre os livros do Bruno, para mais rapidamente conseguir
passar-lhe as mensagens da sua cultura escolar, que considero perfeitamente
próprias para a minha idade, no seu nível de exigência que julgo não permitir tempo
para brincar aos meninos do 7º ano, tempo de que eu prescindo agora mas que não
deixei de aproveitar outrora, com convicção, peguei neste DN de há mais de um
mês, onde encontro uma crónica de Alberto Gonçalves e um artigo
historiográfico de Jaime Nogueira Pinto que, como sempre, me encantaram:
o texto do historiador Jaime Nogueira Pinto que transcrevo com o prazer
de sempre, na admiração por uma lucidez reconhecida desde os tempos do «Portugal
- Os Anos do Fim» com que fui alimentando orgulhos patrióticos, nessas
excepções corajosas de quem se aventurava a contestar os reboliços destruidores
de divisas como essa do “Pola Lei e pola Grei” já relembrada a D. João
III por Sá de Miranda, na conhecida epístola a esse “Rei de muitos Reis”,
referindo-se ao “grão rei” D. João II:
Do vosso nome um grão rei
neste reino lusitano,
se pôs essa mesma lei,
que diz o seu Pelicano:
Pola Lei e Pola Grei.
Neste caso, sublinho os
conceitos “direita” e “esquerda”, não mais dum ponto de vista maniqueísta, que
é o meu, feito de despretensão conceptual, que me fez votar inicialmente num
CDS supostamente defensor dos valores clássicos, como eram os meus, ainda grudada
na tal divisa, e que paulatinamente, para fortalecer um grupo político mais
provável opositor dos da esquerda que incluíam o PS, principal responsável no
processo da desagregação pátria, canalizei para o PSD os meus votos, atida à
divida pessoal “do mal o menos”. Jaime Nogueira Pinto - tal como fora a sua
mulher, de saudosa memória, Maria José Nogueira Pinto - nas suas aparições súbitas
televisivas, ou em escritos seus mediáticos, como este, esclarece com o preciso
conhecimento, trazendo expectativas de mudança na formação do pensamento
contemporâneo.
Tal não é o caso do sociólogo
Alberto Gonçalves, cujo cepticismo realista se revela no retrato sarcástico do
bem intencionado PR, desmascarando-lhe os artifícios e as ambiguidades, com
pouca generosidade, é certo. Pois o papel do Presidente de uma República tão
comezinha e tão reduzida em tantas frentes não pode ser senão aquele, de
atamancar os vários desafios risonhamente. Que outra coisa poderá ele fazer,
num país dilacerado por histórias de Bancos falidos onde a mais dispersa gente engana
e contribui para o empobrecimento e a tristeza gerais do país?
O
futuro da direita
Jaime Nogueira Pinto
DN, 11/3/16
A
direita governou Portugal durante mais de quarenta anos com o regime
nacional-autoritário de Salazar. Por isso, embora tenha tido altos custos, foi
normal que a esquerda governasse no ciclo seguinte, em termos de hegemonia
ideológica e supremacia política. Quando falo de direita e de esquerda não falo
dos conceitos maniqueístas vulgarizados (pela "esquerda"), em que a
esquerda são os pobres, os camponeses, as classes trabalhadoras, os
intelectuais, os jovens, os progressistas, os bons; e a direita, os ricos, os
lavradores (alentejanos), os patrões, os capitalistas, os reacionários, os
fascistas, os maus da história. Nem da versão igualmente maniqueísta da
"direita", em que a direita são as classes médias empreendedoras, os
empresários, os liberais, os europeístas, os antifascistas, o "país
real" - os bons; e a esquerda os que vivem de subsídios, os comunistas, os
anarquistas, os socialistas, os estatistas, os totalitários - os maus...O que
separa a direita da esquerda tem pouco ou nada que ver com estas guerras e
epítetos de classe ou de renda: são bases filosóficas distintas como o
"pessimismo" e o "otimismo" antropológicos, isto é, o ponto
de partida sobre a natureza humana que classifica o homem como
"naturalmente" bom ou mau. Santo Agostinho, Maquiavel e Hobbes seriam
"de direita" e Rousseau, Marx e Lenine de esquerda.Se o 25 de Abril
de 1974 rejeitou os valores de direita, a verdade é que as direitas, com
exceção das novas gerações, tinham deixado de pensar politicamente nos últimos
anos do Estado Novo. As esquerdas, aproveitando o descontentamento corporativo
dos militares com a guerra de África e a transição marcelista, impuseram a sua
linha a partir do golpe de Abril. A direita sociológica e até ideológica que
sobreviveu, continuou ou recomeçou na política, teve, partidariamente, de se
resignar a alinhar e votar nos partidos do "centro", no Centrão
democrático social ou social-democrático. Os principais valores da trilogia
estadonovista - Deus, Pátria e Família - desapareceram na voragem antifascista
do PREC e na correção política que se lhe seguiu. Com medo de incorreções, os
líderes partidários das direitas foram-se ficando pelo conservadorismo
social-cristão ou por um compromisso de austeridade social-democrática que os
seus inimigos qualificam de liberal ou ultraliberal ou "de direita"
ou "ultradireita".Partindo de um pessimismo antropológico de base, os
valores da direita estão ligados ao realismo geopolítico, ao nacionalismo
político, ao conservadorismo familiar e social e à economia de mercado. E, numa
altura em que a legislação está sujeita aos caprichos e à chantagem ideológica
da esquerda utópica, também aos custos ocultos das mudanças.Se uma comunidade
viveu durante muitos séculos com valores de orientação como o patriotismo, o
enraizamento, a família tradicional, a propriedade privada, o sentido do
transcendente será que se pode deixar de cultivá-los e acabar com eles sem
consequências? A acabar: somos hoje uma nação dependente, mas o resto do mundo
começou a dar a volta: estes valores (de direita) estão outra vez presentes no
Leste europeu, na Ásia, nas Américas. Portugal, que sob este ciclo
político-ideológico decaiu e empobreceu para limites nunca vistos, poderá nos
próximos anos - e até pela terapia de choque do desastre - estar aberto a um novo
ciclo político-ideológico.Às forças políticas e partidos da não-esquerda
compete retomar sem medos as bandeiras da direita nacional, ou deixá-las
abandonadas ou livres, para quem tiver a coragem e a força de as restaurar.Os
dados são estes. Quem os irá lançar?
Foi para isto que se elegeu
Marcelo?
Alberto
Gonçalves
DN,
13/4/16
Até
ver, o único momento apreciável da presidência de Marcelo revelou-se logo após
a tomada de posse, quando as bancadas parlamentares do PCP e do BE recusaram
aplaudir-lhe o juramento. Não foi grande demonstração da cultura democrática
alegadamente adquirida após a alegada queda do alegado muro. Mas a aversão da
extrema-esquerda é sempre uma medalha ou, no mínimo, uma carta de recomendação.
Infelizmente,
os sinais positivos ficaram--se por aí. O dr. Costa, apetrechado de uma
procuração que não me lembro de lhe ter passado, afirmou que "todos nos
podemos reconhecer" nas palavras de Marcelo. O dr. Ferro dissertou acerca
de um chefe de Estado "sintonizado com o país" e "promotor das
convergências de que Portugal tanto necessita". O dr. César dos Açores
garantiu que todo o PS "teve prazer" em aplaudir Marcelo. E as
televisões encheram-se de "personalidades" maiores e menores, todas
eufóricas, todas empenhadas em exaltar o novo presidente por comparação com o
velho. O "politólogo" José Adelino Maltez, uma esperança adiada do
pensamento pátrio, resumiu a coisa: "Marcelo é uma espécie de anti-Cavaco,
psicologicamente falando".
Psicologicamente
falando, isto não me caiu bem. Os encómios de destacadas calamidades do regime
"colam" Marcelo aos mais repugnantes vícios do dito e, por si só, não
auguram maravilhas. Caberia a Marcelo desmenti-los. Para cúmulo, Marcelo apa-
rentemente decidiu confirmá-los: em pouquíssimos dias, o "anti-Cavaco"
acumulou uma sucessão de embaraços que só uma criança, ou o nível médio da
opinião publicada, tomaria por aquilo que o representativo Pedro Santana Lopes
chama "boa onda" e "bom astral".
O
embaraço começa no discurso inaugural, que o Público considerou ter dito
"tudo o que é essencial". De facto, não disse nada, excepto um caldo
de lugares-comuns e fezadas absurdas capazes de envergonhar quem ainda consegue
sentir vergonha. Marcelo exortou-nos a afirmar o "amor-próprio" e
exaltou a "dignidade da pessoa humana" (distinta, suponho, da pessoa
desumana incapaz de se deleitar com lirismos assim). Marcelo prometeu guardar
os "valores" da Constituição e ajudar a construir "uma
comunidade convivial e solidária". Marcelo saudou a emigração que
"vive a criar Portugais" e o mar, o fatal mar que é "prioridade
nacional" e "vocação universal" (por infelicidade, esqueceu-se
do sol). Marcelo convocou, mediante citação, Torga e Lobo Antunes. Marcelo
deseja conciliar a "criatividade da iniciativa privada" com o
"relevante sector social". Sobretudo Marcelo quer "unidade,
pacificação e reforçada coesão nacional", no pressuposto de que as
divergências políticas e as visões conflituais do mundo são meros tiques
nervosos, resolúveis entre um almoço e dois abraços. Marcelo, em suma, sonha
com o tipo de beatitude descrito pelas candidatas a Miss Universo. Para um
simples presidente, parece-me ambição excessiva. E embaraço idem.
Desgraçadamente,
a ambição não se ficou por aí. O embaraço também não. Depois de um espectáculo
com cançonetistas ligeiros, a que assistiu de manta e que provou a proximidade
do presidente dos "afectos" ao povo (no sentido, presumo, em que o
povo pagou a festarola), Marcelo correu a pendurar no site da presidência umas
pertinentes divagações sobre como "nós, portugueses, continuamos a
minimizar o que valemos". Pelos vistos, "valemos muito mais do que
pensamos ou dizemos", na medida em que "o nosso génio - o que nos
distingue dos demais - é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação
ecuménica". Fomos "grandes no passado". Seremos "grandes no
futuro". O presente, repleto de inépcia, prepotência, falências,
mendicidade e prosápia, é que é uma chatice, de resto insusceptível de integrar
as preocupações do estadista que se preza.
Podíamos,
é verdade, atribuir a arrepiante vacuidade acima aos entusiasmos do primeiro
dia. Marcelo não permitiu. No segundo dia, chamou a António Guterres "o
vulto mais brilhante da sua geração", sem que compreendêssemos se
pretendia elogiar o ex-governante ou caluniar a geração. Ao terceiro dia no
cargo, Marcelo subiu ao Porto, onde o deixam "ser saudavelmente
rude", para entregar umas rimas de rap aos inquilinos dos bairros
camarários: "Ouvi e gostei deste hip hop do Norte, Portugal será mais
forte / Aqui no Bairro do Cerco e onde está a sua gente, estará sempre o
Presidente." Ao quarto dia, anunciou uma "aplicação" para
smartphones, talvez do tipo Angry Birds. Nem ouso imaginar o que fará ao
quinto, sexto e sétimo dias, que bastaram para Deus criar a Terra e sobrarão
para Marcelo se transformar num consumado artista de rua, com números de dança,
trapézio e monociclo.
A
estratégia, que tenta reproduzir o sucesso da campanha, é clara: ao abdicar de
escolhas "difíceis" numa situação dificílima para o país, leia-se ao
evitar ferir os sentimentos da esquerda, Marcelo toma por adquirido o apoio dos
que o elegeram e procura conquistar os que o detestam. Mal termine a aclamação
pasmada em curso, arrisca-se a perder uns e a falhar os outros. Mesmo
descontada a retórica dos "consensos", um presidente da República não
pode ser um penduricalho sorridente. Se for, pobre República.
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