domingo, 3 de abril de 2016

A propósito de «Alentejo Prometido» de Henrique Raposo



Do Alentejo, recordo as extensas planuras sem casa à vista a não ser de longe em longe, primitiva impressão de quando lá fomos a primeira vez, de regresso de África. E um sobreiro ou uma azinheira, ao longo da estrada, estranhando que não fossem mais  as árvores, essas «Árvores do Alentejo» que Florbela Espanca descreveu como «esfíngicas» e «sangrentas» e «revoltadas», que «gritam a Deus a bênção duma fonte». E a ausência de povoados, e o monte mal avistado, e o calor insuportável caindo a pique… Impressões antigas, da primeira ida ao Algarve, ou das idas posteriores a Vila Viçosa, a Évora, a Beja, a Portalegre, ainda não havia a autoestrada…  E a lembrança de longa data do «Eu não sei que tenho em Évora» de Luís Piçarra, que ouvíamos no rádio primeiro que tivemos, ganho pelo meu pai como primeiro prémio, (num concurso de marcas de cigarros lourençomarquinos), canção que cantávamos e nos fazia amar esse «Alentejo da minh’alma», donde Piçarra «abalou chorando» quando «olhou para trás». Quando «retornámos» e nas raras vezes que atravessámos o Alentejo, era sobretudo uma sensação de lonjura e seca e isolamento que retínhamos, bem diverso das paisagens que conhecêramos – da Beira Alta, sobretudo -  na infância e na juventude, paisagens de recorte e verdura, de povoados com casas e hortas, entre serranias arborizadas, um rio destacando-se, ao longo da linha do comboio…
Mas o Alentejo sofreu  melhorias - e a internet mostra belas imagens – no regadio, sobretudo, graças às barragens que os dinheiros de Bruxelas proporcionaram. E à  modernização vária e colectiva, afinal, em que a rede de estradas, a electrificação, permitindo a mediatização mais vastamente difundida, a difusão de escolas, e do ensino superior em Évora, possibilitaram a identificação da juventude provinciana com a citadina, nos trajes, nas falas, nos jeitos, nos objectivos. Um Alentejo foi, pois, prometido, diferente do que Henrique Raposo recolheu da sua infância dos anos noventa – Alentejo segregacionista, maledicente, machista, de homens e mulheres vivendo de costas voltadas, o que o “Cante” masculino reproduz, no eco triste do seu coro, a que a mulher é alheia.
Um livro de uma centena de páginas no qual, a propósito das suas origens e história familiar, a cada passo retomada - que recua aos avós e bisavós, e se polariza nos tempos actuais dos tios e primos que permaneceram na terra, ao contrário da família de Henrique Raposo, que nos anos sessenta partira para Lisboa – descreve idiossincrasias do povo alentejano, as quais, repudiando-as nos seus antepassados, sem receio de as citar, condena no povo fechado ao progresso, de homens sem grande coesão familiar, as mulheres mais carinhosas e dedicadas aos filhos e ambientes domésticos, os homens não prescindindo da taberna, indiferentes e machistas, a percentagem de suicídios superior à das outras províncias, em análise surgindo de cuidadosa pesquisa. Fala com admiração de outras províncias, mais abertas e abnegadas, facto que J. Rentes de Carvalho, na magnífica apresentação de «Alentejo Prometido», justifica como de motivação juvenil, em sentimento de repúdio ou de admiração que o avançar dos anos moderará.
Não sei se assim será. Quem um dia se desligou da sua terra - qualquer que seja o território que ela ocupa - quer por ambição quer por recusa de se manter no primitivismo de um ambiente campesino, dificilmente se adaptará a um reviver aldeão, onde, apesar dos avanços, jamais se poderá fazer uma vida livre, indiferente à coscuvilhice ou maledicência, que a grosseria popular favorece. Indiscutivelmente, a cidade fornece outras perspectivas de abertura, diferentes das da taberna que refere Henrique Raposo.
Trata-se de um livro bem escrito, sem demagogia e com a seriedade  - e juvenilidade – q.b., que se lê com prazer.  É em homenagem a Henrique Raposo – mesmo que estes dizeres não cheguem aos seus olhos - cujo livro significou para mim um exemplo de lucidez e de coragem, e afinal, de amor pela terra onde nasceu, que critica por desejar alterar os condicionalismos que a oprimem, que relembro os poemas que referi -  o soneto de Florbela Espanca e os versos cantados pela bela voz de Luís Piçarra que a Internet me fez reviver, versos de amor e comunhão pela terra alentejana, amada por todos, como um pedacinho de Portugal:

Árvores do Alentejo
Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a benção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!
                        Florbela Espanca

O meu Alentejo
Eu não sei que tenho em Évora 
Que de Évora me estou lembrando 
Ao passar o rio Tejo 
As ondas me vão levando 
 
Ceifeira que andas à calma 
À calma, ceifando o trigo 
Ceifa as penas da minh´alma 
Ceif´as e lev´as contigo.
 
Abalei do Alentejo 
Olhei para trás chorando 
Alentejo da minh´alma 
Tão longe me vais ficando 
                  Luís Piçarra

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