Do Alentejo, recordo as extensas
planuras sem casa à vista a não ser de longe em longe, primitiva impressão de
quando lá fomos a primeira vez, de regresso de África. E um sobreiro ou uma
azinheira, ao longo da estrada, estranhando que não fossem mais as árvores, essas «Árvores do Alentejo»
que Florbela Espanca descreveu como «esfíngicas» e «sangrentas» e
«revoltadas», que «gritam a Deus a bênção duma fonte». E a
ausência de povoados, e o monte mal avistado, e o calor insuportável caindo a
pique… Impressões antigas, da primeira ida ao Algarve, ou das idas posteriores
a Vila Viçosa, a Évora, a Beja, a Portalegre, ainda não havia a autoestrada… E a lembrança de longa data do «Eu não sei
que tenho em Évora» de Luís Piçarra, que ouvíamos no rádio primeiro que
tivemos, ganho pelo meu pai como primeiro prémio, (num concurso de marcas de
cigarros lourençomarquinos), canção que cantávamos e nos fazia amar esse «Alentejo
da minh’alma», donde Piçarra «abalou chorando» quando «olhou para
trás». Quando «retornámos» e nas raras vezes que atravessámos o
Alentejo, era sobretudo uma sensação de lonjura e seca e isolamento que
retínhamos, bem diverso das paisagens que conhecêramos – da Beira Alta, sobretudo
- na infância e na juventude, paisagens de
recorte e verdura, de povoados com casas e hortas, entre serranias arborizadas,
um rio destacando-se, ao longo da linha do comboio…
Mas o Alentejo sofreu
melhorias - e a internet mostra belas imagens – no regadio, sobretudo, graças às barragens que os dinheiros
de Bruxelas proporcionaram. E à
modernização vária e colectiva, afinal, em que a rede de estradas, a electrificação,
permitindo a mediatização mais vastamente difundida, a difusão de escolas, e do
ensino superior em Évora, possibilitaram a identificação da juventude
provinciana com a citadina, nos trajes, nas falas, nos jeitos, nos objectivos. Um
Alentejo foi, pois, prometido, diferente do que Henrique Raposo recolheu da sua
infância dos anos noventa – Alentejo segregacionista, maledicente, machista, de
homens e mulheres vivendo de costas voltadas, o que o “Cante” masculino
reproduz, no eco triste do seu coro, a que a mulher é alheia.
Um livro de uma centena de páginas no qual, a
propósito das suas origens e história familiar, a cada passo retomada - que
recua aos avós e bisavós, e se polariza nos tempos actuais dos tios e primos
que permaneceram na terra, ao contrário da família de Henrique Raposo, que nos
anos sessenta partira para Lisboa – descreve idiossincrasias do povo alentejano,
as quais, repudiando-as nos seus antepassados, sem receio de as citar, condena
no povo fechado ao progresso, de homens sem grande coesão familiar, as mulheres
mais carinhosas e dedicadas aos filhos e ambientes domésticos, os homens não
prescindindo da taberna, indiferentes e machistas, a percentagem de suicídios
superior à das outras províncias, em análise surgindo de cuidadosa pesquisa. Fala
com admiração de outras províncias, mais abertas e abnegadas, facto que J.
Rentes de Carvalho, na magnífica apresentação de «Alentejo Prometido»,
justifica como de motivação juvenil, em sentimento de repúdio ou de admiração
que o avançar dos anos moderará.
Não sei se assim será. Quem um dia se desligou da sua
terra - qualquer que seja o território que ela ocupa - quer por ambição quer
por recusa de se manter no primitivismo de um ambiente campesino, dificilmente
se adaptará a um reviver aldeão, onde, apesar dos avanços, jamais se poderá fazer
uma vida livre, indiferente à coscuvilhice ou maledicência, que a grosseria
popular favorece. Indiscutivelmente, a cidade fornece outras perspectivas de
abertura, diferentes das da taberna que refere Henrique Raposo.
Trata-se de um livro bem escrito, sem demagogia e com
a seriedade - e juvenilidade – q.b., que
se lê com prazer. É em homenagem a
Henrique Raposo – mesmo que estes dizeres não cheguem aos seus olhos - cujo livro significou para mim um exemplo de
lucidez e de coragem, e afinal, de amor pela terra onde nasceu, que critica por
desejar alterar os condicionalismos que a oprimem, que relembro os poemas que
referi - o soneto de Florbela Espanca e os
versos cantados pela bela voz de Luís Piçarra que a Internet me fez reviver,
versos de amor e comunhão pela terra alentejana, amada por todos, como um
pedacinho de Portugal:
Árvores
do Alentejo
Horas
mortas... Curvada aos pés do Monte
A
planície é um brasido e, torturadas,
As
árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam
a Deus a benção duma fonte!
E
quando, manhã alta, o sol posponte
A
oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas,
recortam desgrenhadas
Os
trágicos perfis no horizonte!
Árvores!
Corações, almas que choram,
Almas
iguais à minha, almas que imploram
Em
vão remédio para tanta mágoa!
Árvores!
Não choreis! Olhai e vede:
Também
ando a gritar, morta de sede,
Pedindo
a Deus a minha gota de água!
Florbela Espanca
O
meu Alentejo
Eu não sei que tenho em Évora
Que de Évora me estou lembrando
Ao passar o rio Tejo
As ondas me vão levando
Ceifeira que andas à calma
À calma, ceifando o trigo
Ceifa as penas da minh´alma
Ceif´as e lev´as contigo.
Abalei do Alentejo
Olhei para trás chorando
Alentejo da minh´alma
Tão longe me vais ficando
Luís
Piçarra
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