Três temas que dão que pensar, no artigo de Manuel
Carvalho de 3/4: o primeiro, a que se refere o título - Saudades do guião
de reformas de Portas - sobre o Programa Nacional de Reformas aponta
características objectivas que são, para nós, um balde de água fria nas ilusões
criadas pela Pluma Caprichosa de 2/4 – «Calmamente, Altamente»
de Clara Ferreira Alves com a sua música de cantochão, de Hosana ao
altíssimo – neste caso a António Costa - sobre o momento que estamos a passar, já nem
de susto e expectativa mas de plena estabilidade e beatitude em que vivemos, no
melhor dos mundos, calmamente, altamente. Manuel Carvalho,
pelo contrário, expõe sobre a vacuidade e subjectividade do Plano de
Reformas de Costa, que indica intenções de reforma mas omite os “comos”
para a sua realização, o que é, naturalmente, arriscado.
Quanto a Passos Coelho,
(que Clara Ferreira Alves volta a atacar com a antiga garra, pendendo
decididamente para Costa, na actual conjuntura), depois de lhe exprobar o titubeamento
actual, sucedâneo a uma atitude inicial de protesto contra a vilania de uma
usurpação inconcebível, Manuel Carvalho aconselha-o a procurar alternativas
para um possível volte-face da aparente bonomia governativa em que mergulhamos,
com um Costa corajoso e bem sucedido, apesar dos ameaços.
Mas o balde de água fria foi
mesmo a actuação de António Lamas - o tal da obra meritória no
Parque de Sintra - que João Soares demitiu, fazendo erguer um coro de
protestos, e que Manuel Carvalho descreve nas suas intenções de destruição da
cultura a favor da tónica financeira – como, de resto, fez em Sintra, segundo
novos pareceres, que, aquando da sua destituição por Soares, apenas lhe
mereceram loas, pela má vontade generalizada contra João Soares.
E deste modo se escreve a
História, aos trancos e barrancos das múltiplas conjecturas. E conjunturas.
Saudades do guião de reformas de Portas
Análise Memória Futura
Manuel Carvalho
Público, 3/4/2016
1. O Programa Nacional de Reformas (PNR) que o
primeiro-ministro apresentou
esta semana é um dos documentos mais indigentes dos últimos anos da
governação. Tão indigente que o famigerado Guião
para a Reforma do Estado, de Paulo Portas, até parece uma obra-prima
do pensamento e da estratégia política. É inacreditável que o Governo se
tenha exposto ao ridículo de produzir tamanho monumento à vacuidade, ao
lugar-comum e ao copy-paste. E é incompreensível como uma mão cheia de ministros
inteligentes e experientes puderam assinar um power-point que não mereceria mais do que um suficiente menos a
qualquer estudante de uma escola superior.
Ninguém estaria à espera de que o programa
deslumbrasse pelo rasgo ou pela originalidade. Portugal anda há anos demais a
fazer diagnósticos para que dali pudesse sair uma ideia fora da caixa. O que
se esperava era apenas um programa assertivo, determinado e focado no essencial.
Seria normal e coerente que o seu teor absorvesse a natureza programática do
Governo, que abolisse de vez as veleidades da liberdade de escolha nas escolas
e reafirmasse a descida das taxas moderadoras, por exemplo. Mas seria
igualmente normal e coerente esperar que o programa tivesse, ao menos, uma
única medida ousada que se aproximasse do conceito de reforma. E que tivesse
presente a ideia de que o
crescimento baixo está para durar e o país não dispõe de condições
para manter um Estado com estas dimensões. Ora, o PNR não tem nada disso. Não
é tão palavroso como o guião de Portas, mas é muito mais vago. Qualquer
burocrata da mais esconsa repartição do Estado o conseguiria fazer.
Ao longo dos 53 slides do power-point que o revela, o Programa limita-se a expressar
desejos e estados de alma. O Governo quer, por exemplo, “modernizar o
sistema de ensino e os modelos e instrumentos e aprendizagem”. Ora, quem não
quer? O problema é que em lado algum se diz como se moderniza. O Governo
ambiciona “desenvolver ecossistemas que potenciem o aparecimento e crescimento
de start-ups” e “promover a captação de Investimento Directo
Estrangeiro (IDE), nomeadamente em actividades de inovação”. Claro que sim. O
anterior também ambicionava e os que lhe sucederem também o hão-de ambicionar.
Mas como? Com que recursos?
O PNR não ataca nenhum dos problemas reais do país. Não se dirige às gorduras do Estado central;
circunscreve o desígnio da administração pública ao imperativo (saudável) de
simplificar; não refere um único corte, uma única medida de fundo que torne a
orgânica do Estado mais operacional; não apresenta uma ideia válida para
valorizar o território – nem sequer a reforma
profunda que o seu ministro adjunto Eduardo Cabrita está a liderar para
permitir a eleição dos presidentes das Áreas Metropolitanas; não produz uma
única linha sobre o sector público empresarial, nem sobre a reforma fiscal (uma
breve referência à fiscalidade verde, apenas). É uma imensa desilusão. A
prova de que o Governo vive na doce crença de que a tempestade passou e o país
pode viver à bolina. É verdade que para lá das críticas que ouviu na
concertação social – é vago, é genérico, é omisso -, Costa não foi alvo do
bombardeamento de críticas que se ouviram quando Portas divulgou o seu guião.
Mas merecia-as. Porque ao lado do Programa, o Guião é uma obra-prima.
2. Pedro Passos Coelho deve andar a mastigar na cabeça o
mito da Fénix que renasce das suas próprias cinzas – ou das cinzas da fogueira
da surpreendente coligação da esquerda. Ao contrário da determinação e clareza
de convicções que mostrou como chefe de governo, Passos é hoje um homem
titubeante, incapaz de conceber um plano coerente e metódico para gerir o seu
renascimento. Errou ao não antecipar a génese do governo de Costa. Errou ao
colar-lhe o anátema da ilegitimidade. Errou ao acreditar que seria uma coisa
breve. Mas se estes erros foram comuns a muita gente insuspeita de
partidarismos, o que de alguma forma o desculpa, a sua tentação em despir-se da
imagem de homem frio, que pedia a “libertação” da sociedade do jugo do Estado,
que considerava o queixume
contra os impostos ou os cortes salariais uma manifestação “piegas” de um
povo mole está a matar-lhe a essência. Os seus próximos garantem que no PSD não
vai haver mudanças de rumo, porque Passos “não é de plástico”, mas essa súbita devoção
do líder à social-democracia o que é, senão uma tentativa de branquear
o passado?
Agora que reconhece a legitimidade do Governo e
percebe que António Costa, protegido pelo Presidente, pode estar para durar,
Passos não sabe nem como nem quando poderá renascer. Na essência, ele é o que
foi no passado – o que o leva a chumbar
no Parlamento votos de protesto contra a intolerável violação dos Direitos
Humanos em Angola ou a exigir que o Estado não
se deve preocupar com o destino do sistema financeiro do país. A
social-democracia que agora invoca é apenas uma máscara para o PSD se sentir
melhor neste tempo em que a política e o país se sentem melhor à esquerda.
Na mais longa e talvez mais dura travessia do deserto
que se anuncia, Passos terá no entanto mais oportunidades de renascer se continuar
a ser a Fénix que foi no governo. O país precisa de uma alternativa liberal que
force o sistema a manter na agenda política uma política financeira mais
rígida, um discurso económico mais premente e um espírito de reforma mais
alargado. Só assim, se alguma coisa correr mal no Governo, Passos poderá provar
que nas actuais circunstâncias ele tem a solução nas mãos.
3. Quanto mais se conhece a obra de António Lamas nos
Parques de Sintra, mais se aplaude a decisão do Governo de o afastar da gestão
do eixo Ajuda-Belém e do CCB. Porque o que estava em preparação era mais um
inominável processo de desapropriação do património histórico e cultural em
favor de uma lógica estritamente financeira. Os monumentos e os museus, escreveu
no Público Luís Raposo, são “reservas de soberania que devem ser
colocadas ao serviço da emancipação cidadã”. Na óptica de António Lamas, porém,
esses bens são apenas fontes de receita. Ora nessa lógica, não há lugar para a
memória nacional, para a educação, para o usufruto da cultura. O que há são
máquinas de depenar turistas e de tornar o acesso ao património privilégio das
classes mais abastadas.
Em Sintra, por exemplo, o acesso ao parque e ao
Palácio da Pena custa 55 euros a uma família com dois filhos. Cada criança com
mais de cinco anos paga 12.5 euros para entrar. Pergunta-se: quantas famílias
portuguesas se podem dar a este luxo? Muito poucas. Ao afastar da memória
histórica os cidadãos mais desfavorecidos, a política de António Lamas pode
enriquecer os cofres das empresas gestoras da cultura, mas fá-lo através de um
processo de exclusão tão imoral como ilegítimo. O Palácio da Pena é uma herança
nacional, à qual todos têm de ter acesso. João Soares pode por isso ter sido
arrogante e bruto na forma como despediu Lamas. Mas ter salvo Lisboa e o
país de mais um desses planos nos quais o Estado age como um explorador
colonial do património público é uma medalha que pode ostentar no curriculum.
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