Dentre os excelentes artigos da «E» de 16 de
Abril, retiro “Brontë no Funchal”, de Pedro Mexia, como registo
literário de acontecimento recente, passado no Funchal. Não se refere o título a
Charlotte ou Mary mas à Emily do “Monte dos Vendavais” que, lido na adolescência,
constituiu sempre para mim estranha e complexa obra, que facilmente despromovi
a favor de uma “Jane Eyre” muito mais suave e concordante com as
aspirações de alma juvenis que pediam finais felizes, apesar de tantos
obstáculos criados à volta de uma personagem feminina de carácter forte e
determinado, mau grado a sua frágil aparência física.
Trata o escrito de Pedro Mexia, pois, do caso
recente de uma inglesa de idade – Susan Brown – numa quase
trágica história de desespero amoroso – ou de “surto psicótico” – em viagem
de cruzeiro à Madeira com o marido – que uma zanga com aquele quase ia
vitimando, deixando a dúvida sobre o seu estado mental, ao lançar-se a nadar
atrás do barco, tendo perdido o rasto do marido no aeroporto, finalmente salva
por uns pescadores, e talvez pelos médicos que a acompanharam.
Da elegante argumentação de Pedro Mexia, a que não
falta o sentido de humor, transcrevo a parte final que alia referências
literárias e conceitos psicológicos a opiniões mais realistas dos exigentes do
rigor técnico, além de concluir em
tirada reveladora de extrema sensibilidade analítica:
«O “surto psicótico”, por seu lado, tanto pode ter
sido causa como consequência: um desespero amoroso que fez perder a lucidez, ou
um colapso mental que a levou a uma atitude tresloucada. Para ser camoniano,
diria que “segundo o amor tiverdes”, tereis o entendimento deste episódio. Há
pessoas para quem isto é uma extraordinária história amorosa, enquanto outras
cépticas, preferem conhecer o boletim clínico. Todos nós, que vivemos histórias
destas, menos públicas, menos psicóticas, observamos com interesse as reacções
de empatia e de desconfiança. Projectamos em casos como os de Susan Brown a
nossa temperatura emocional e a daqueles de quem gostamos, tão alta como a de
um alucinado ou tão gélida como a dos mares à meia noite.
A história de Susan é muito evocativa porque quase
tudo bate certo em termos romanescos, um casal no estrangeiro, uma ilha, a
Madeira da imperatriz Sissi, um barco chamado “Marco Polo”, uma Ofélia afogada como
a de John Everett Millais, o “Titanic”. Até a idade deles, pouco habitual nas
histórias de amor mais celebradas, ou o aspecto dela, uma reformada frágil,
contribuem para a estranheza e o fascínio. É verdade que tudo pode não ter
passado de uma querela doméstica, de um caso mental, mas queremos imaginar
Susan Brown como uma figura de um romance de Emily Brontë. Imaginá-la a dizer: “Mesmo
que ele amasse com todas as forças do seu ser enfezado não conseguiria amar
tanto em oitenta anos como eu num só dia.”
Das minhas evocações sobre os amantes na bela ilha da Madeira,
retiro também o caso , talvez lendário, que
Dom Francisco Manuel de Melo refere na sua «Epanáfora Amorosa» - a
história de Machim e de Ana de Arfert, como primeiros habitantes da
Madeira, (anteriores, pois, a Gonçalves Zarco), que uma tempestade desviou para
lá, quando fugiam num barco com amigos, para França, para se unirem em profundo
amor, contrariado pelos nobres parentes ingleses de Ana, e onde morreram, na
fragilidade dos condicionalismos sofridos.
Mas, para responder ao “entendimento dos meus
versos”, citado por Mexia, e porque o seu belo texto mo pede, concluo também
com Camões, o maior aprofundador da dualidade desse sentimento de alma - o amor
como pura ideia platónica - que o corpo, feito de “matéria simples”
aspira concretizar na realidade dos sentidos, respondendo assim à perplexidade sobre
essa definição de cariz platónico, que o sujeito poético naturalmente rejeita:
Transforma-se o amador
na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
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