quarta-feira, 6 de abril de 2016

Peças da nossa História



 Já antiga, a de Vasco Pulido Valente, que fui guardando, na expectativa de lhe pegar um dia, sempre suplantado na avalanche de outros casos que iam superando as águas mornas da indignação e pena e vergonha e espanto perante um espécime nosso tão «lagarto a quem cortam o rabo / E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente» - sempre falando e dando que falar, sempre acusando para não se acusar, sempre atacando para obstar ao ataque alheio, sempre vitimizando-se, prodígio de aventureirismo verbal para esconder os truques do aventureirismo sem escrúpulos, faceta do seu carácter.
Mas o texto de João Miguel Tavares «Os interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?», fazendo referência ao «politicamente correcto» do nosso bem-estar - creio que por interesse nosso em não destapar muito a tampa do tacho em que a cada passo outros cozinhados se fabricam na nossa lusitana praia – levou-me de novo ao texto de Pulido Valente, como retrato correcto de uma figura que marcou  - já o disse antes – o desencadear do naufrágio que, como aprendiz de feiticeiro desmiolado e preguiçoso, ia fazendo subverter a casa portuguesa.
Um fingidor, lhe chamou Pulido Valente adequadamente, que ao contrário do «poeta» de Pessoa «chega a fingir que é dor a dor que realmente não sente», e isso o aproxima do vulgar mentiroso.
O “Correio da Manhã” o desmistificou, e João Miguel Tavares pergunta se se deve avançar na revelação dos factos, concluindo que a elucidação é fundamental para obstar à cegueira em que os que mandam vão envolvendo os que são mandados, rebanho desatento e passivo.
Mas realmente o grande defeito nestas coisas são os maus exemplos, que, aliás, não nos importaria de seguir, se tivéssemos jeito, atidos ao provérbio do «Bem prega Frei Tomás», olhando, é claro, mais para o que ele faz do que para o que ele diz. Como a cobardia nos impede, podemos, assim, generalizar uma aparência de equilíbrio respeitador  das regras, o que é sempre  de bom tom.

Eis os textos:
1º- Um fingidor
VASCO PULIDO VALENTE
28/11/2014 – PÚBLICO
Nunca gostei da personagem política “José Sócrates”, desde a campanha para secretário-geral do PS (em que ele prometeu não aumentar impostos que, de facto, aumentou) até à sua ascensão a primeiro-ministro, muito ajudado por Pedro Santana Lopes e pela reputação de autoritário que entretanto adquirira.
Não tranquiliza particularmente ser governado por um indivíduo que se descreve a si mesmo como um “animal feroz”, nem por um indivíduo que prefere a força política e legal à persuasão e ao compromisso. Se o tratam mal a ele agora, seria bom pensar na gente que ele tratou mal quando podia: adversários, serventes, jornalistas, toda a gente que tinha de o aturar por necessidade ou convicção. Sócrates florescia no meio do que foi a sufocação do seu mandato.
O dr. António Costa quer hoje separar os sarilhos de um alegado caso criminal do seu antigo mentor da política do Partido Socialista e do seu plano para salvar a Pátria. O que seria razoável, se José Sócrates não encarnasse em toda a sua pessoa o pior do PS: o ressentimento social, o narcisismo, a mediocridade, o prazer de mandar. Claro que, como qualquer arrivista, Sócrates se enganou sempre. Começou pelos brilhantíssimos fatos que ostentava em público, sem jamais lhe ocorrer se as pessoas que se vestiam “bem” se vestiam assim. Veio a seguir a “licenciatura” da Universidade Independente, como se aquele papel valesse alguma coisa para alguém. E a casa da Rua Braamcamp, que é o exacto contrário da discrição e do conforto e último sítio em que um político transitoriamente reformado se iria meter.
Depois de sair do Governo e do partido, Sócrates mostrava a cada passo a sua falsidade, não a dos negócios, que não interessam aqui, mas da notabilidade pública, por que desejava que o tomassem. Resolveu estudar em Paris, para se vingar da humilhação do Instituto de Engenharia e da Universidade Independente, e resolveu fazer um mestrado em “Sciences Po”, sem perceber que o mestrado é uma prova escolar de um estatuto irrisório. Em Paris, viveu no “seizième”, o bairro “fino”, como ele achava que lhe competia, e, de volta a Lisboa, correu para a RTP, onde perorava semanalmente para não o esquecerem: duas decisões ridículas que só serviram para o prejudicar, embora estivessem no seu carácter. Como o resto do país, não sei nem me cabe saber se o prenderam justa e justificadamente. Sei – e, para mim, chega – que o homem é um fingidor.

2º- Excerto do interrogatório a Carlos Santos Silva
As gravações reveladas pelo Correio da Manhã, com longos excertos transmitidos também na CMTV, mostram as ligações de Sócrates ao amigo Santos Silva, que o Ministério Público acredita ser o testa de ferro de um esquema que permitiu a Sócrates apropriar-se de 23 milhões de euros.
As conversas revelam ainda a forma como o ex-primeiro-ministro distribuía verbas avultadas por familiares e amigos.

3º- Os interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?
Público, 31/03/2016
A defesa da privacidade e do segredo de justiça não podem ignorar o dever de prestar contas quando estão em causa crimes tão graves.

Imaginemos que até hoje nada se sabia do processo envolvendo José Sócrates, para além dos crimes de que é suspeito: corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. O segredo de justiça teria sido rigorosamente preservado; o Ministério Público, como é seu hábito, emitiria somente comunicados obscuros em português gongórico; e o ex-primeiro-ministro andaria entretido a fazer digressões pelas televisões e auditórios do país, queixando-se de perseguições, cabalas e urdiduras, e indignando-se perante a terrível infâmia a que estava a ser sujeito. Pergunta: enquanto participantes num espaço público, nós estaríamos mais mal ou mais bem servidos com tão cumpridora ignorância?
A resposta é óbvia. Embora haja um problema evidente com o segredo de justiça em Portugal, a ter de escolher entre um sistema com fugas e um sistema opaco, eu escolho o sistema com fugas. Quem defende o segredo de justiça de forma absoluta, como acontece com tantos ex-admiradores de José Sócrates, está a desvalorizar a importância de todos nós sermos agentes activos no debate democrático. Esta ideia de que divulgar as gravações dos inquéritos judiciais não é mais do que voyeurismo ou populismo denuncia uma visão profundamente passiva da cidadania, que apenas atribui a cada um de nós e à comunicação social o triste dever de aguardar pacientemente que o poder judicial faça o seu caminho, sem vigilância nem escrutínio. Ora, os vários poderes numa sociedade democrática não são apenas complementares – eles são conflituantes. E é por isso que em nome do interesse público é tantas vezes admitida à comunicação social a quebra do segredo de justiça.
Convém não esquecer que um político se torna figura pública por opção deliberada, e deve a sua projecção e carreira à confiança que os eleitores nele depositaram, em troca da promessa de uma administração honesta da coisa pública. A defesa da privacidade e do segredo de justiça não podem ignorar o dever de prestar contas quando estão em causa crimes tão graves, e é por isso que a lei permite que qualquer pessoa se possa constituir assistente num processo que envolva crimes de corrupção ou tráfico de influências. Esse é um dos argumentos que podem justificar a divulgação dos interrogatórios por parte do Correio da Manhã. Outro argumento, mais importante, é este: demonstrar aos leitores que as declarações públicas de Sócrates e dos seus advogados sobre a inexistência de indícios são pura e simplesmente mentira. A facilidade com que um ex-primeiro-ministro divulga o seu discurso nos media exige um exercício de contraditório que os meios judiciais, pela sua própria natureza, não estão em condições de oferecer. A comunicação social está – e ela também serve para isso.
O Correio da Manhã teve atitudes inconcebíveis ao longo da operação Marquês, a mais grave das quais foi ter pedido, através de dois jornalistas da casa que são assistentes no processo, que Fernanda Câncio e Sofia Fava fossem constituídas arguidas. É uma decisão tão idiota que custa a crer que alguém a tenha tomado. Mas o interesse jornalístico do seu trabalho é inegável e o modo como toda a comunicação social está a ignorar as gravações é um absurdo. O Correio da Manhã envolveu-se demasiado no caso Sócrates? É possível. Mas boa parte dos jornais está – outra vez – a envolver-se muito menos do que devia.

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