Foi Álvaro de Campos que
escreveu a «Ode Triunfal» como um dos monumentos do Primeiro Modernismo, na sua versão
futurista, de dessacralização da arte, refractária aos temas do
convencionalismo clássico da Beleza e da filosofia humanista, enveredando
decisivamente pelos temas prosaicos, do feio, da violência, da mecânica ruidosa
e brutal numa sociedade industrializada, que o passo seguinte exemplifica:
……Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!......
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!......
Foi, pois, Álvaro de Campos e
a sua Ode Triunfal que o artigo de José Pacheco Pereira me fez evocar - «Offshores:
não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia» - espécie de
monumento sobre o novo modernismo, se já não pelos ruídos sanguinários do martelar dos mecanismos industriais, para delícia dos
ouvidos dos poetas, numa civilização a
modernizar-se, se expande agora no pungir dos zunzuns dos moscardos, denunciando
igual violência, mas, sobretudo, menos consciência laboral, no frenesim universal
e mudo dos mecanismos de guardar dinheiros ocultos, no hábil frenesim das
gentes do universo que escondem os dinheiros nessas máquinas silenciosas do
mundo, no frenesim volumoso desses dinheiros escondidos, provenientes não de
trabalho ruidoso ou suado mas de cambalachos variados em rede oculta de multiplicidade
infinita de fios e de nós. Mundo de zunzuns às escondidas, criando a guerra, o caos, a miséria em torno. Como se tem visto. Como o
aponta José Pacheco Pereira no seu
estudo de história e filosofia e sociologia. Indigno de Ode e muito menos
triunfal, neste retrato penalizante do carácter humano:
Offshores: não é uma questão fiscal, é uma questão de democracia
Público, 9/04/2016
Nas suas declarações sobre as revelações (mais confirmações
do que revelações) dos chamados “Documentos do Panamá”, Marcelo Rebelo de Sousa
foi ao âmago da questão quando disse que o problema dos offshores era um
problema de democracia. E é.
Os
offshores são, antes de tudo, do crime, da lavagem de dinheiro, da fuga ao
fisco, uma questão que significa para as democracias a perda de um princípio
básico — o de que o poder político legitimado pelo voto e pelo primado da lei
se sobrepõe ao poder económico. Por isso, tratar a questão dos offshores apenas
como sendo de natureza fiscal e andar às voltas por aí é já um mau ponto de
partida.
A
questão que muitas vezes é iludida é que não existe uma única razão económica
sólida para que haja offshores. Para que é que eles servem para a economia,
para a produção, para o emprego, para a indústria, para o comércio, para o
investimento limpo? Nada. Tudo aquilo para que os offshores servem é para
esconder dinheiro e os seus proprietários, para esconder a origem do dinheiro, através
de um conjunto de fachadas anónimas que depois vão desaguar aos grandes bancos
sediados na Suíça ou em Londres.
O
que os políticos europeus dizem, quando confrontados com esta realidade, ou com
os escândalos periódicos, como o actual com os documentos da Mossack Fonseca, é
que não podem fazer nada e que o que podem fazer fazem. Por detrás desta
declaração de impotência — eu estou a falar de políticos democráticos — está o
retrato da captura ocorrida nas últimas décadas, e agravada pela crise de 2008,
da política em democracia pelos interesses financeiros globais, pela banca,
pelos “mercados”. Sim, porque uma das faces semivisíveis dos offshores são os
biliões que circulam em fundos e outros tipo de operações financeiras e
bancárias, a que nós chamamos os “mercados”, o Deus ex machina que faz mover os
países como marionetas.
Podem
fazer alguma coisa? Podem fazer tudo. Repito: podem fazer tudo. E acrescento:
mas não querem. Podem fazer tudo, mas não querem — esta é a frase que melhor
resume o “problema para a democracia”. E não querem por dois motivos. Um de
fraqueza política, — a maioria dos políticos europeus são gente frágil à frente
de países fragilizados, uma combinação de que resulta uma imensa fraqueza para
lidar com interesses poderosos, como são os que estão por detrás e pela frente
dos offshores. O outro é a hegemonia nos partidos de direita, e em muitos
socialistas subservientes, de uma mistura entre ideias sobre a economia, sobre
o Estado, sobre as empresas, sobre a governação dos países, que corresponde ao
“pensamento único” que tem presidido à política da Comissão Europeia, do
Eurogrupo, aos partidos do PPE, e que tem levado a cabo a política de Schäuble
e dos alemães e de alguns outros países seus aliados.
Este
segunda razão é do “podem, mas acham bem”, e essa aparece como de costume nos
mais rudimentares defensores dos offshores que pululam na nossa direita mais
radical, nos jornais, nos blogues e nas redes sociais. Eles são reveladores,
porque têm a imprudência de dizer aquilo que os de cima da cadeia alimentar
pensam, mas não podem dizer. E todos ficaram imensamente incomodados com os
“Documentos do Panamá”, porque é “deles” e dos seus que os “documentos” falam.
E correram logo a dizer que era uma questão com Putin e não com o capitalismo.
Ou seja, os offshores são mais uma perversão do comunismo e do socialismo e dos
“oligarcas”, como gostam de chamar aos poderosos do “outro lado”. E então é ler
como os offshores são uma resposta à tirania fiscal dos Estados “socialistas”,
ou uma digna resposta da liberdade económica do dinheiro e das empresas para
fluir para todo o lado sem barreiras. Sem dúvida, admitem, que há crimes e
lavagem de dinheiro, mas são pechas menores dos offshores. O essencial é que
eles são mais uma manifestação normal da liberdade económica e da luta contra a
prepotência dos Estados e das políticas “socialistas” dos altos impostos. Isto
vem de quem fez o “enorme aumento de impostos”, retirou aos contribuintes
qualquer protecção face aos abusos do fisco e só é “liberal” na bandeirinha da
lapela. Pobre da “mão invisível” que foi possuída pela família Adams.
Também
nos offshores se verifica a escassíssima vontade dos políticos europeus, que
tem à sua cabeça institucional o senhor Juncker, que tem no seu currículo ter
feito enquanto primeiro--ministro do Luxemburgo todo o tipo de acordos ilegais,
insisto, ilegais, à luz das regras europeias, destinadas a levar para o seu
país empresas que aí encontravam um paraíso fiscal protegidas pelo segredo de
Estado. Ou no caso do Reino Unido, em que dezenas de offshores estão em
territórios sob soberania britânica.
O
problema como sempre é o dos alvos e dos intocáveis. Ou melhor: defender por
todos os meios os “intocáveis” de serem tocados e impedir que os alvos deixem
de ser alvos. O objectivo da política do “ajustamento”, policiada pelas
instituições europeias sem estatuto democrático como o Eurogrupo, ou pelo FMI,
em consonância com os “mercados”, foi proteger o sistema bancário, os
“mercados”, o dinheiro que “flui” e, sem o dizer, no mesmo pacote vão os
offshores “contra os quais nada se pode fazer”. E o melhor atestado de
ineficácia da múltipla legislação europeia tão gabada nas suas intenções de dar
“transparência” ao sistema financeiro e combater a corrupção é o que revelam
estes “Documentos do Panamá” e muitas outras estimativas sérias: o dinheiro que
vai para os offshores é cada vez mais. Ponto.
A
solução da questão dos offshores é simples, se tivermos vontade para a aplicar.
E desconfiem de quem venha com muitas complexidades e complicações, é sempre
mau sinal. Insisto, não é muito complicado: trata-se de comparar o dinheiro dos
offshores com o dinheiro dos terroristas. Um rouba, em grande escala, Estados e
povos, o outro mata. Um mata à fome em África, outro nas ruas de Paris ou em
Nova Iorque. Um destrói economias, poupanças, classes médias criadas com muitos
anos e esforços para progredir, outro escraviza povos e reduz a ruínas países
já muito pobres. É uma comparação que admito ser excessiva, mas, se partirmos
dela, talvez possamos compreender (ou não) por que razão aquilo que se admite
em termos de recursos de investigação, penalizações duríssimas, confisco de
bens do crime ou da droga, ou da corrupção ou da fuga ao fisco, e se aplica ao
dinheiro do terrorismo, se pode aplicar ao dinheiro ilegal dos offshores. Ah!
Já estou a ouvir em fundo: “Mas muito desse dinheiro é legal.” Ai é? Então,
qual é o motivo por que em vez de estar inshore vai para os offshores?
Deixem-se
por isso de falsos espantos e falsas surpresas. Tudo o que está nos “Documentos
do Panamá” não é novidade para ninguém. Como não é novidade para ninguém o
discurso de “não se pode fazer nada”. Mas, se queremos salvar a democracia
no século XXI, o problema do dinheiro anónimo, escondido, fugido e protegido
algures numa caixa de correio humilde de uma casa nas Ilhas Caimão, ou num
cacifo acolchoado de um luxuoso escritório de advogados no Panamá é
objectivamente mais dissolvente do que os tiros de uma Kalashnikov nas ruas de
Bruxelas. Faz-nos pior, porque os tiros são-nos exteriores, são do
“inimigo”, e os biliões das Ilhas Virgens são de dentro, dos “amigos”.
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