Tive – tenho – uma prima abastada que, nos tempos da nossa adolescência, comia requintadamente por receita, receitas extraídas do melhor livro de culinária, segundo dizia – o “Pantagruel” – o que me fazia sentir grande respeito por esse nome, traduzindo enormidade de pratos que colidiam com a trivialidade dos pratos da minha mãe – todos sem receita e apenas com o requinte do asseio – embora bem saborosos – a carne estufada, o belo peixe frito africano, em postas, com o arroz refogado, as sopas, os bifes, aos domingos o caril, com o pudim de sobremesa, ou a aletria ou o leite-creme que o meu pai queimava com os ferros da sua lavra, aquecidos no fogareiro da serradura, colhida pelo nosso Armando, na serração perto de casa.
Mais tarde li que o Pantagruel era filho de Gargantua, este, filho de Grandgousier, tudo nomes simbólicos de enormidades, evocando força e gigantismo físicos, altissonância de vozes, avidez na comida, na bebida, nos estudos, nos prazeres da vida ... Um deslumbramento!
Rabelais (1494-1554?), o seu autor, monge, humanista, no sentido de conhecedor das Humanidades, tradutor de latim, estudioso de direito, viajante, médico, escritor, revela, no seu primeiro livro “Pantagruel” e no “Gargantua”, soma intraduzível de conhecimentos além de uma irreverência e sentido crítico, em que a facécia e a fantasia se aliam a um poderoso realismo descritivo, acompanhados do preceito aristotélico de que “le rire est le propre de l’homme”.
É no “Gargantua” que define os preceitos de uma educação humanista, segundo uma formação equilibrada de espírito e corpo, numa exigência de saber mergulhado nos clássicos, e no desenvolvimento do corpo pelos jogos em liberdade, mas numa superabundância extrema, que me transportou à actualidade das nossas exigências escolares.
É que me chegou à caixa do correio um panfleto encimado por um grupo de belos jovens sorridentes, com livros e um violoncelo, com o sugestivo título “Novas oportunidades” – Aprender compensa”, com, em destaque, a informação “Há cada vez mais profissões na tua escola” “Faz o Secundário, aprendendo uma profissão”, e, dentro, “+ de 130 Profissões nas Escolas e Centros de Formação Profissional de todo o País”, (...) terminando por “AFINAL PODES SER QUEM TU QUISERES!” (...)
A última folha contém a lista das tais mais de 130 Profissões, que se iniciam pela de Actor e acabam, após a multiplicidade de Técnicos, na de Topógrafo- Geómetra.
Mas, contrariamente à insensatez das exigências formativas de Rabelais, de um gigantismo incompatível com a mediana natureza humana, mas revelando um abarcar de conhecimentos admirável do seu autor, a insensatez fora da realidade porque desonesta, falsa e megalómana do panfleto, ao contrário do orgulho que pretende incutir, só me deixou indignada.
Lembrei o meu percurso de professora, de uma exigência que não significou, ao contrário do que se diz da exigência, rigor de férula, mas profissionalismo, e vontade de formar os alunos que ano após ano me iam cabendo em sorte.
E hoje em dia, em que as evoluções maneiristas das pedagogias, confluem em critérios de pseudo-exigência que se traduzem por uma quase nulidade de êxito real, deixando, nos professores – os que o são de facto – o sentimento de vazio e de incompetência, pelo panorama cada vez mais aflitivo de impreparação escolar, com reflexos sobre a vida profissional futura, um panfleto como este das “Novas Oportunidades” só pode merecer o tal “riso próprio dos homens”, embora amarelo de impotência, neste desfilar para o abismo quais os “moutons de Panurge”.
Era Panurge um companheiro de Pantagruel, espertalhão refinado, que, embarcado num navio onde ia o mercador de carneiros Dindenault, ao querer comprar a este um carneiro, teve que se haver com as manhas do vendedor e acabou comprando-lho, mas por um preço exorbitante. Logo Panurge, sem tir-te nem guar-te, atirou o carneiro borda fora. E os outros de o seguirem e de se afogarem com ele, e bem assim Dindenault, agarrado ao último, a tentar impedi-lo.
Somos bem os carneiros de Panurge, atiram-nos com um panfleto aparentemente belo, brilhante, radioso, e só falso, irreal, falacioso, e caímos borda fora atrás dele, para, nos afundarmos sem remédio, na renúncia definitiva ao equilíbrio e à racionalidade.
Mais tarde li que o Pantagruel era filho de Gargantua, este, filho de Grandgousier, tudo nomes simbólicos de enormidades, evocando força e gigantismo físicos, altissonância de vozes, avidez na comida, na bebida, nos estudos, nos prazeres da vida ... Um deslumbramento!
Rabelais (1494-1554?), o seu autor, monge, humanista, no sentido de conhecedor das Humanidades, tradutor de latim, estudioso de direito, viajante, médico, escritor, revela, no seu primeiro livro “Pantagruel” e no “Gargantua”, soma intraduzível de conhecimentos além de uma irreverência e sentido crítico, em que a facécia e a fantasia se aliam a um poderoso realismo descritivo, acompanhados do preceito aristotélico de que “le rire est le propre de l’homme”.
É no “Gargantua” que define os preceitos de uma educação humanista, segundo uma formação equilibrada de espírito e corpo, numa exigência de saber mergulhado nos clássicos, e no desenvolvimento do corpo pelos jogos em liberdade, mas numa superabundância extrema, que me transportou à actualidade das nossas exigências escolares.
É que me chegou à caixa do correio um panfleto encimado por um grupo de belos jovens sorridentes, com livros e um violoncelo, com o sugestivo título “Novas oportunidades” – Aprender compensa”, com, em destaque, a informação “Há cada vez mais profissões na tua escola” “Faz o Secundário, aprendendo uma profissão”, e, dentro, “+ de 130 Profissões nas Escolas e Centros de Formação Profissional de todo o País”, (...) terminando por “AFINAL PODES SER QUEM TU QUISERES!” (...)
A última folha contém a lista das tais mais de 130 Profissões, que se iniciam pela de Actor e acabam, após a multiplicidade de Técnicos, na de Topógrafo- Geómetra.
Mas, contrariamente à insensatez das exigências formativas de Rabelais, de um gigantismo incompatível com a mediana natureza humana, mas revelando um abarcar de conhecimentos admirável do seu autor, a insensatez fora da realidade porque desonesta, falsa e megalómana do panfleto, ao contrário do orgulho que pretende incutir, só me deixou indignada.
Lembrei o meu percurso de professora, de uma exigência que não significou, ao contrário do que se diz da exigência, rigor de férula, mas profissionalismo, e vontade de formar os alunos que ano após ano me iam cabendo em sorte.
E hoje em dia, em que as evoluções maneiristas das pedagogias, confluem em critérios de pseudo-exigência que se traduzem por uma quase nulidade de êxito real, deixando, nos professores – os que o são de facto – o sentimento de vazio e de incompetência, pelo panorama cada vez mais aflitivo de impreparação escolar, com reflexos sobre a vida profissional futura, um panfleto como este das “Novas Oportunidades” só pode merecer o tal “riso próprio dos homens”, embora amarelo de impotência, neste desfilar para o abismo quais os “moutons de Panurge”.
Era Panurge um companheiro de Pantagruel, espertalhão refinado, que, embarcado num navio onde ia o mercador de carneiros Dindenault, ao querer comprar a este um carneiro, teve que se haver com as manhas do vendedor e acabou comprando-lho, mas por um preço exorbitante. Logo Panurge, sem tir-te nem guar-te, atirou o carneiro borda fora. E os outros de o seguirem e de se afogarem com ele, e bem assim Dindenault, agarrado ao último, a tentar impedi-lo.
Somos bem os carneiros de Panurge, atiram-nos com um panfleto aparentemente belo, brilhante, radioso, e só falso, irreal, falacioso, e caímos borda fora atrás dele, para, nos afundarmos sem remédio, na renúncia definitiva ao equilíbrio e à racionalidade.
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