quarta-feira, 22 de julho de 2009

Tábua rasa da tábua

-“Se os homens passassem a ferro, talvez já tivessem descoberto a fibra necessária para não ser preciso fazê-lo”.
Mais uma vez a minha amiga, nas suas exuberâncias de protesto, se excedeu na expressão das suas expectativas críticas. Mas continuou, lançada:
-“Não há direito! Nada se fez para que isto não acontecesse! A gente continua com a tábua e o ferro! Tanta gente que foi à praia! E tenho a roupa por passar! Não há direito! Mete-me cá uma raiva! Ainda por cima no verão!”
Parecia o Solnado, nos tempos áureos dos seus sketchs humorísticos. Tento apaziguar, com os ditames do meu saber e da minha condescendência para com a vida:
- “Hoje já há homens que passam, que as mulheres não estão para isso, adeptas de uma democracia igualitária. Além disso, há lavandarias em que os homens passam, restaurantes em que os homens cozinham.... Hoje já todos os trabalhos são, de um modo geral, sem fronteiras de sexos”.
-“ Mas o que era preciso é que os tecidos não precisassem de ferro. Fazer tábua rasa da tábua! Nada de tábua, nada de ferro, só roupa sintética! O ferro a desaparecer, a tábua no forno, a arder, e a gente a espairecer... É tão estúpido passar a ferro! Nunca esta coisa passou de moda, e já tanta coisa foi inventada! Estou a referir-me, é claro, aos que não têm dinheiro para mandar passar na lavandaria!”
-“Eu também detesto passar a ferro, e não só isso: toda a casa é um peso de mortificação, sempre a exigir o que não apetece dar. Em África tínhamos criados para esses trabalhos, bem sortudas que éramos, entre as mulheres do planeta. Em todo o caso, a roupa sintética não é tão saudável! E a gente sempre tem que alguma coisa fazer, para não entristecer...” O trabalho fonte de prazer...
Condescendeu, que os discursos racionais conduzem a ponderação.
-“ Só espero é que o nosso Senhor não fique zangado comigo!”
Mas quando atravessámos a passagem de nível, enfiou o tacão num buraco e torceu o pé.
- “Eu não lhe disse? Não posso protestar, que Nosso Senhor logo faz sentir o seu desagrado contra mim”. Só lhe faltava agora julgar-se o centro da atenção divina!
- “Foi porque não olhou para o chão! No nosso país isso é fundamental, procurar os lírios do campo, olhar para o chão, para evitar as topadas nas covas das calçadas, já há dias referimos...” Não quis ficar-lhe atrás na conversa de pendor bíblico, resultado da sentida crença de que Deus providenciará o alimento ao nosso povo, como faz aos lírios do campo.
- “Pois, mas não se lembra de que, por causa disso, levou há tempos uma cabeçada, ao embater contra os protectores transparentes da cabine telefónica erguida no chão, como um cogumelo?”
Nada lhe escapa. - "Realmente, bati nas abas transparentes da cabine, porque ia distraída a olhar o chão, à procura de lírios. Não encontrei os lírios, mas fiquei a ver estrelas, às onze da manhã. Há sempre compensações poéticas nos embates por cá, e esse da cabine não me saiu da cabeça tão cedo. A Câmara deve apreciar o efeito das abas transparentes sobre os distraídos, se assim não fosse, tratava de colocar abas apelativas nas cabines!” Também eu me sinto mordaz.
- “Mas a tábua!” insistiu, insensível aos desvios. “Oxalá os nossos jovens cientistas que até têm obtido prémios lá fora em descobertas de valor – as coisas que ela sabe! - achassem, finalmente, o abracadabra que fizesse enviar tábua e ferro para o planeta Marte, que os marcianos talvez ainda estejam na pré-história da sua história e achem ferro e tábua um requinte de engenharia técnica.”
É sempre compensador ser-se optimista.

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