Falávamos do papel da mulher na actualidade. Observámos quanto a conquista dos seus direitos sociais lhe proporcionava cargos de alto gabarito no governo ou em empresas, que o homem não deixava de lhe atribuir, para se mostrar actualizado, embora sujeitasse o número de vagas femininas a quotas malandras.
Aliás, as quotas malandras eram norma social dos novos tempos, que fazia que, por exemplo no professorado, professores com aulas assistidas e avaliadas com Muito Bom, com muitos outros parâmetros com avaliação de Excelente e Muito Bom, em determinada cláusula o Conselho directivo avaliava com apenas Bom ou até um Suficiente para o tal professor ou professora não atingir o Muito Bom de acesso, devido ao número limitado de quotas de obstáculo à subida no escalão depauperador das contas estaduais. Ao Muito Bom acediam professores sem aulas assistidas mas com bom posicionamento junto dos conselhos directivos. Era o resultado da avaliação por que tanto lutara o Primeiro Ministro e a primeira Srª Ministra da Educação. Mas injustiças dessas pertenciam a todas as épocas, inúteis as réplicas contra a força do hábito.
Falámos também do papel dos pais, importante na educação e orientação dos filhos e logo a minha amiga rebateu:
- Cada vez é mais difícil. E a maioria dos pais já não segura ninguém. Dizem as notícias que a malta nova se embebeda até dizer chega. E os pais já não têm outro remédio senão esperar que os filhos lhes cheguem a casa vivos. E as notícias que se publicam é que cada vez o alcoolismo começa mais cedo. Ora o que é que se pode dizer de gente tão nova bêbeda, o que é que lhes pode acontecer? E os pais o que é que fazem a isso? Hoje é um risco tomar conta dos filhos. Exige-se que sejam responsáveis! Os pais já não conseguem, não têm capacidade.
Não pude rebater o pessimismo da minha amiga com um protesto de confiança nos novos tempos. Já há uns anos, pelos anos 80, numa “Queima das Fitas” em Coimbra, em que nos reunimos os do curso de Românicas dos anos 53-57, pude horrorizar-me com o amontoado dos cacos das garrafas atiradas para o chão pelos gloriosos estudantes que assim festejavam o seu final de curso, do alto dos seus carros floridos. Criaturas formadas, em breve formadoras elas próprias, numa cadeia de perversão de que notícias mais recentes apontam certas praxes académicas como autênticas monstruosidades de sadismo repugnante. Que se permitem, neste país.
E o sentimento de inutilidade e impotência perante o descalabro social que todas essas manifestações implicam, me leva a voltar-me para o meu texto sobre “A Literatrura da Resistência”, no seu corolário final das seis questões, as três últimas da responsabilidade de cada aluno. Como são de pequena extensão, vou transcrever as duas últimas, ditadas, sobretudo a última, talvez por um certo espírito de malícia de quem sentia ainda os efeitos de derrapagem vivencial causada pela descolonização apressada, e que a professora Crabbé Rocha, ilustre ensaísta, esposa de Miguel Torga – Adolfo Rocha de seu nome de baptismo – não aceitaria de bom grado, como o demonstrou no final do ano, em que o meu nome foi anulado da pauta, reposto mais tarde, após o protesto contra a força de hábito da injustiça nacional, apesar da sua nacionalidade belga.
“A Literatura da Resistência ”
“5ª Pergunta: O conceito de herói na literatura neo-realista terá o mesmo valor que nas escolas literárias anteriores?”
Resposta:
Desde os romances de cavalaria que na literatura portuguesa o conceito de herói tem um particular relevo, designando aquele que pratica as façanhas, e de tal modo que, por vezes, o título dos livros tomava, ao modo homérico, o nome do herói – caso do “Amadis de Gaula”, “Palmeirim de Inglaterra”, a própria “Menina e Moça”, se bem que personagem quase irreal, de tão vaga, mas substituindo facilmente a designação “Livro das Saudades”. Em “Peregrinação” é Fernão Mendes Pinto o herói participante, antes, anti-herói, em “Primavera” é o pastor Lereno, no romantismo são bem nítidas as figuras participantes, no seu individualismo, tanto na novela passional camiliana como no romance histórico. Com o realismo o herói central vai-se esbatendo, perdendo densidade, substituído por uma série de personagens representativas de determinado tipo social que se quer pôr em destaque. Assim, na ficção queirosiana, ao lado das figuras centrais giram outras de não menor importância, todas elas com as suas características determinadas, mais ou menos caricaturais, porque todas elas implicando uma faceta específica da sociedade em análise.
No romance neo-realista, mais flagrante se torna o fosso existente entre o conceito clássico de herói e o conceito actual, pois realmente todas as personagens são principais numa engrenagem que se quer escalpelizar, no sentido de revelar como cada uma é uma peça dessa engrenagem. E é assim que em “Esteiros”, ou “Gaibéus” ou “Vagão J”, por exemplo, todas as personagens – crianças e adultos – aparecem com o seu papel específico, onde nenhuma é principal nem secundária, porque todas elas exercem a sua função de denunciar uma determinada malha de uma sociedade podre. Se noutros livros como “Fanga”, “A Barca dos Sete Lemes”, as aventuras de herói são mais destacadas em acção onde não falta enredo, em todo o caso tal herói torna-se, afinal, também um símbolo, ou um tipo, personagem plana, tais como as personagens várias dos romances citados, porque ele é, igualmente, uma denúncia. Teremos que regressar ao romance existencial para novamente se dar uma especial valoração à personagem do herói, não já nas suas façanhas mais ou menos heróicas dos romances anteriores, mas na análise atenta às subtilezas dos seus pensamentos e às lucubrações do seu espírito, um pouco, afinal, também, à maneira da “Menina e Moça”, o que mais uma vez serve de apoio à lei de Lavoisier: “Na natureza nada se cria...”»
«6ª Pergunta: Afirmou Pessoa que “O poeta é um fingidor”. Numa literatura acentuadamente lírica que é a nossa, que valor atribui à sinceridade nos escritores neo-realistas?»
Resposta:
«Se Pessoa afirmou que “O poeta é um fingidor”, não lhe negou, em todo o caso, a capacidade de sentir deveras, e partiremos, pois, desse ponto de vista, para avaliarmos a sinceridade dos escritores neo-realistas. Não nos parece que devamos pôr em dúvida a capacidade de revolta e a sinceridade dos escritores, ao desenvolverem nos seus livros os seus temas de subversão e ataque. Inicialmente, pelo menos, o escritor é sincero e bem intencionado. O artifício surgirá depois, quando ao notar o impacto causado pelo tema do seu livro, o escritor escolherá outro e outro, na ânsia de um cada vez maior renome. Poderá por vezes não ser esse propriamente o motivo da escolha do tema, mas porque é talvez esse o meio mais fácil de auto-realização literária. Com efeito, mais fácil se tornará a criação de um enredo à volta de um caso específico de desagravo ou desajustamento, para onde o escritor poderá transferir o seu mundo de revolta, do que a invenção pura, onde acção e caracteres se entrelaçam de forma a revelar a capacidade imaginativa do seu autor.
Resta-nos a justificação da afirmação feita acima sobre a nossa literatura “acentuadamente lírica”. Basta-nos estabelecer um leve confronto com uma literatura estrangeira, a francesa, por exemplo, para imediatamente nos apercebermos da nossa pobreza literária – patente na falta de imaginação, pois que, ressalvando alguns raros nomes, pouco se aproveita a não ser um pouco de retoricismo, mas realmente escassa capacidade inventiva, ou até mesmo filosófica ou psicológica.
Num Racine, as personagens actuam de determinada forma porque não podem fazê-lo de outra, num conflito onde a análise de caracteres é perfeita, como o é a de qualquer das personagens de Molière, Marivaux, Musset, Giraudoux, Anouilh, Pagnol, Sartre, numa dialogação pertinente e de grande riqueza conceitual. No nosso teatro – exceptuando Gil Vicente, cujo defeito foi não ter vivido um pouco mais tarde, para poder vazar, numa linguagem mais actual, tipos e situações perenes de graça e realização – nada soubemos criar de realmente válido. No romance, de tão vasta margem de construção, só um ou outro escritor se vai erguendo do charco de mediocridade em que vegetamos – e reparemos como mesmo o próprio Eça de Queirós nos interessa acima de tudo, afinal, na sua faceta negativa de crítica satírica e da ironia, nos aspectos em que desanca o país na sua mediocridade a todos os níveis.
Realmente, é, sobretudo, parece-nos, como poetas líricos, haja em vista a quantidade, desde os primitivos cancioneiros até às canções dos nossos bardos modernos, que sabemos expressar a nossa mundivivência, a qual pouco mais exige que uma certa facilidade buriladora de conceitos ou reveladora dos sentimentos de que se compõe, “ad aeternum” a íntima natureza humana.»
Aliás, as quotas malandras eram norma social dos novos tempos, que fazia que, por exemplo no professorado, professores com aulas assistidas e avaliadas com Muito Bom, com muitos outros parâmetros com avaliação de Excelente e Muito Bom, em determinada cláusula o Conselho directivo avaliava com apenas Bom ou até um Suficiente para o tal professor ou professora não atingir o Muito Bom de acesso, devido ao número limitado de quotas de obstáculo à subida no escalão depauperador das contas estaduais. Ao Muito Bom acediam professores sem aulas assistidas mas com bom posicionamento junto dos conselhos directivos. Era o resultado da avaliação por que tanto lutara o Primeiro Ministro e a primeira Srª Ministra da Educação. Mas injustiças dessas pertenciam a todas as épocas, inúteis as réplicas contra a força do hábito.
Falámos também do papel dos pais, importante na educação e orientação dos filhos e logo a minha amiga rebateu:
- Cada vez é mais difícil. E a maioria dos pais já não segura ninguém. Dizem as notícias que a malta nova se embebeda até dizer chega. E os pais já não têm outro remédio senão esperar que os filhos lhes cheguem a casa vivos. E as notícias que se publicam é que cada vez o alcoolismo começa mais cedo. Ora o que é que se pode dizer de gente tão nova bêbeda, o que é que lhes pode acontecer? E os pais o que é que fazem a isso? Hoje é um risco tomar conta dos filhos. Exige-se que sejam responsáveis! Os pais já não conseguem, não têm capacidade.
Não pude rebater o pessimismo da minha amiga com um protesto de confiança nos novos tempos. Já há uns anos, pelos anos 80, numa “Queima das Fitas” em Coimbra, em que nos reunimos os do curso de Românicas dos anos 53-57, pude horrorizar-me com o amontoado dos cacos das garrafas atiradas para o chão pelos gloriosos estudantes que assim festejavam o seu final de curso, do alto dos seus carros floridos. Criaturas formadas, em breve formadoras elas próprias, numa cadeia de perversão de que notícias mais recentes apontam certas praxes académicas como autênticas monstruosidades de sadismo repugnante. Que se permitem, neste país.
E o sentimento de inutilidade e impotência perante o descalabro social que todas essas manifestações implicam, me leva a voltar-me para o meu texto sobre “A Literatrura da Resistência”, no seu corolário final das seis questões, as três últimas da responsabilidade de cada aluno. Como são de pequena extensão, vou transcrever as duas últimas, ditadas, sobretudo a última, talvez por um certo espírito de malícia de quem sentia ainda os efeitos de derrapagem vivencial causada pela descolonização apressada, e que a professora Crabbé Rocha, ilustre ensaísta, esposa de Miguel Torga – Adolfo Rocha de seu nome de baptismo – não aceitaria de bom grado, como o demonstrou no final do ano, em que o meu nome foi anulado da pauta, reposto mais tarde, após o protesto contra a força de hábito da injustiça nacional, apesar da sua nacionalidade belga.
“A Literatura da Resistência ”
“5ª Pergunta: O conceito de herói na literatura neo-realista terá o mesmo valor que nas escolas literárias anteriores?”
Resposta:
Desde os romances de cavalaria que na literatura portuguesa o conceito de herói tem um particular relevo, designando aquele que pratica as façanhas, e de tal modo que, por vezes, o título dos livros tomava, ao modo homérico, o nome do herói – caso do “Amadis de Gaula”, “Palmeirim de Inglaterra”, a própria “Menina e Moça”, se bem que personagem quase irreal, de tão vaga, mas substituindo facilmente a designação “Livro das Saudades”. Em “Peregrinação” é Fernão Mendes Pinto o herói participante, antes, anti-herói, em “Primavera” é o pastor Lereno, no romantismo são bem nítidas as figuras participantes, no seu individualismo, tanto na novela passional camiliana como no romance histórico. Com o realismo o herói central vai-se esbatendo, perdendo densidade, substituído por uma série de personagens representativas de determinado tipo social que se quer pôr em destaque. Assim, na ficção queirosiana, ao lado das figuras centrais giram outras de não menor importância, todas elas com as suas características determinadas, mais ou menos caricaturais, porque todas elas implicando uma faceta específica da sociedade em análise.
No romance neo-realista, mais flagrante se torna o fosso existente entre o conceito clássico de herói e o conceito actual, pois realmente todas as personagens são principais numa engrenagem que se quer escalpelizar, no sentido de revelar como cada uma é uma peça dessa engrenagem. E é assim que em “Esteiros”, ou “Gaibéus” ou “Vagão J”, por exemplo, todas as personagens – crianças e adultos – aparecem com o seu papel específico, onde nenhuma é principal nem secundária, porque todas elas exercem a sua função de denunciar uma determinada malha de uma sociedade podre. Se noutros livros como “Fanga”, “A Barca dos Sete Lemes”, as aventuras de herói são mais destacadas em acção onde não falta enredo, em todo o caso tal herói torna-se, afinal, também um símbolo, ou um tipo, personagem plana, tais como as personagens várias dos romances citados, porque ele é, igualmente, uma denúncia. Teremos que regressar ao romance existencial para novamente se dar uma especial valoração à personagem do herói, não já nas suas façanhas mais ou menos heróicas dos romances anteriores, mas na análise atenta às subtilezas dos seus pensamentos e às lucubrações do seu espírito, um pouco, afinal, também, à maneira da “Menina e Moça”, o que mais uma vez serve de apoio à lei de Lavoisier: “Na natureza nada se cria...”»
«6ª Pergunta: Afirmou Pessoa que “O poeta é um fingidor”. Numa literatura acentuadamente lírica que é a nossa, que valor atribui à sinceridade nos escritores neo-realistas?»
Resposta:
«Se Pessoa afirmou que “O poeta é um fingidor”, não lhe negou, em todo o caso, a capacidade de sentir deveras, e partiremos, pois, desse ponto de vista, para avaliarmos a sinceridade dos escritores neo-realistas. Não nos parece que devamos pôr em dúvida a capacidade de revolta e a sinceridade dos escritores, ao desenvolverem nos seus livros os seus temas de subversão e ataque. Inicialmente, pelo menos, o escritor é sincero e bem intencionado. O artifício surgirá depois, quando ao notar o impacto causado pelo tema do seu livro, o escritor escolherá outro e outro, na ânsia de um cada vez maior renome. Poderá por vezes não ser esse propriamente o motivo da escolha do tema, mas porque é talvez esse o meio mais fácil de auto-realização literária. Com efeito, mais fácil se tornará a criação de um enredo à volta de um caso específico de desagravo ou desajustamento, para onde o escritor poderá transferir o seu mundo de revolta, do que a invenção pura, onde acção e caracteres se entrelaçam de forma a revelar a capacidade imaginativa do seu autor.
Resta-nos a justificação da afirmação feita acima sobre a nossa literatura “acentuadamente lírica”. Basta-nos estabelecer um leve confronto com uma literatura estrangeira, a francesa, por exemplo, para imediatamente nos apercebermos da nossa pobreza literária – patente na falta de imaginação, pois que, ressalvando alguns raros nomes, pouco se aproveita a não ser um pouco de retoricismo, mas realmente escassa capacidade inventiva, ou até mesmo filosófica ou psicológica.
Num Racine, as personagens actuam de determinada forma porque não podem fazê-lo de outra, num conflito onde a análise de caracteres é perfeita, como o é a de qualquer das personagens de Molière, Marivaux, Musset, Giraudoux, Anouilh, Pagnol, Sartre, numa dialogação pertinente e de grande riqueza conceitual. No nosso teatro – exceptuando Gil Vicente, cujo defeito foi não ter vivido um pouco mais tarde, para poder vazar, numa linguagem mais actual, tipos e situações perenes de graça e realização – nada soubemos criar de realmente válido. No romance, de tão vasta margem de construção, só um ou outro escritor se vai erguendo do charco de mediocridade em que vegetamos – e reparemos como mesmo o próprio Eça de Queirós nos interessa acima de tudo, afinal, na sua faceta negativa de crítica satírica e da ironia, nos aspectos em que desanca o país na sua mediocridade a todos os níveis.
Realmente, é, sobretudo, parece-nos, como poetas líricos, haja em vista a quantidade, desde os primitivos cancioneiros até às canções dos nossos bardos modernos, que sabemos expressar a nossa mundivivência, a qual pouco mais exige que uma certa facilidade buriladora de conceitos ou reveladora dos sentimentos de que se compõe, “ad aeternum” a íntima natureza humana.»
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