Levei hoje para a minha amiga um texto do DN Gente, de 9 de Janeiro que a minha irmã me mostrou, indignada com o conteúdo da mesma. A minha amiga também ficou indignada.
É de Fernanda Câncio, sobre Isabela Figueiredo, uma portuguesa nascida em Moçambique, que aos doze anos foi mandada para Portugal, por alturas da descolonização, confiada a familiares pouco compreensivos, ela própria parecendo hostilizar o ambiente metropolitano pouco receptivo. Como jornalista, sentiu-se manietada, é actualmente professora de português, ao que parece das injustiçadas pela política ministerial, mas finalmente encontrou a paz, feliz entre a miudagem que lecciona. Teve um blog “O Mundo Perfeito”, das memórias de África, tem um novo blogue “Novo Mundo”, parece que também perfeito. E tudo isso publicado na Angelus Novus. A reportagem apresenta ainda ternurentas fotos memorialistas da menina, e uma foto da Isabela adulta.
- Esta fulana Câncio publica isto, tem quase todas as pessoas que lá viveram contra ela – começou a minha amiga. Quanto a esta Isabela, tem que ser uma louca, uma tarada. Pode ter muita raiva ao pai e está a vingar-se.
Com efeito, o livro que publicou, “desfaz, segundo Câncio, o postal da África mitificada, doce, dos fins de tarde rosa, dos vestidos brancos, dos criados negros calados, “naturalmente submissos” (na expressão de Isabela) e agradecidos a quem (na de Câncio) “se tratava muito bem” (Isabela). Não (Câncio). “É terrível falar disto (escreveu Isabela) mas a verdade é que nós vivíamos num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão...”
- Mas isso ainda hoje acontece. Lá como cá. Basta que se prove que a culpa não foi do atropelante. A minha amiga conhece casos.
Continua Câncio: “Sim, Isabela é capaz de ver e dizer isto, esta coisa arrepiante: houve uma espécie de justiça no massacre dos brancos. Mesmo se ela sabe que quando em Setembro de 1974 mataram famílias conhecidas à catanada, espalhando-lhes os restos pelas machambas, animais e pessoas, tudo o que era branco, à mistura, só por sorte inaudita ela e os pais não fizeram parte das contas”. (Isabela): “Quando começaram os tiros escondemo-nos no corredor da casa, deitados no chão... ainda hoje me pergunto se foram os nossos vizinhos negros que nos protegeram.” (Câncio): “Os vizinhos negros com quem ela estava proibida de se dar, como o menino da casa ao lado com quem queria brincar, ele em cima da árvore, ela sobre a garagem, a conversar até a mãe os apanhar em flagrante...” (Isabela): “As minhas memórias de infância estão cheias desses interditos. Nós não podíamos dar-nos com os pretos e tudo o que eu queria era dar-me com eles. Queria usar capulanas, andar descalça, aprender a língua... E tudo isso me era proibido.”
Neste ponto, apontámos a contradição do discurso com a foto da reportagem, das meninas de vestido branco, provavelmente da comunhão solene, onde Isabela está no meio de uma maioria de meninas negras.
Eu ainda considerei gravemente a possibilidade de ela preferir não as meninas pretas, que eram bastantes, pela foto se vê, mas os meninos pretos, por naturais instintos de adolescência em expansão.
E a minha amiga, acrescentou, sempre irada:
- Os meus filhos andaram na escola primária de Quelimane com uma maioria de rapazes negros, brincavam juntos, e um deles lanchava em nossa casa, trazido pelo meu mais velho.
Eu também falei da minha infância de pé muitas vezes descalço, com as meninas goesas e os meninos indianos da nossa rua, em correrias e brincadeiras, subidas às árvores da rua 5 de Outubro, de cujos galhos da época das podas camarárias o meu pai fazia andas para montarmos.
E é do pai que se fala agora, nos discursos de Câncio / Isabela, pai muito amado, mas muito bruto para “os seus muitos pretos” (Isabela), que “agredia com palavras e porrada (Câncio) para as tardes de camarão grelhado e penalties com os outros homens em que aprendeu a linguagem do racismo, para as aldeias onde espancava um empregado faltoso”, (Isabela): “um preto de merda”, “um preto cabrão”, enquanto aconselhava a filha “a ser independente, dona da sua vida”.
Segue-se o discurso evocativo sobre o pai amado, mas que vai incriminar, agora que morreu: “Saldar, a bem ou a mal, a dívida que pensava dever, não se importar de ser uma cabra, pária de sangue e de raça”, escreve" diz Câncio, que prossegue: “A pária que retrata no pai Portugal e a história do colonialismo...” “A “traidora” que caminha na fronteira entre todas as lealdades”, expõe Câncio de Isabela, muito incongruente na sua bondade de defesa das pessoas – embora só as que não foram massacradas – atacando o governo da descolonização, já esquecida do que um pouco atrás afirmara sobre os colonialistas racistas, merecedores de massacre: “É imperdoável que o governo da altura, sabendo o que se tinha passado noutras descolonizações, tenha deixado ali as pessoas. A descolonização foi muito mal feita – e podia não ter sido. As pessoas foram entregues”, conclui penalizada.
De qualquer maneira, safou-se Isabela, entregue pelo pai, preocupado em salvar a filha, aos hospedeiros aéreos, mais o cãozinho da foto. Para contar a história.
A minha amiga mostra repulsa e desprezo:
- E esta Câncio que não percebe nada de África, põe isto no jornal! E a outra! Imagine ela a transmitir estas mentiras aos miúdos! É duma atrasada mental!
- Ou oportunismo literário, para vender o livro.
-Ou isso! Veio aos doze anos para cá! O que sabe ela?
E a minha amiga refere que, nas viagens que fizeram a África, há uns anos, ela e o marido, foram recebidos pelos criados, o porteiro do Polana e outros negros amigos, com verdadeira alegria e desejo de que voltassem, “que os portugueses é que eram humanos”.
- É claro que disse verdades, más educações e prepotências sempre houve, em toda a parte. Mas o livro é uma bojarda.
- Conheço o género. Para safar a pele. Amanhã vou transcrever um texto de “Pedras de Sal”, sobre uma professora acusadora, tal como esta, muito progressista, muito individualista, muito insensata. Julgava que já tinham acabado estas figuras sinistras.
(Continua).
É de Fernanda Câncio, sobre Isabela Figueiredo, uma portuguesa nascida em Moçambique, que aos doze anos foi mandada para Portugal, por alturas da descolonização, confiada a familiares pouco compreensivos, ela própria parecendo hostilizar o ambiente metropolitano pouco receptivo. Como jornalista, sentiu-se manietada, é actualmente professora de português, ao que parece das injustiçadas pela política ministerial, mas finalmente encontrou a paz, feliz entre a miudagem que lecciona. Teve um blog “O Mundo Perfeito”, das memórias de África, tem um novo blogue “Novo Mundo”, parece que também perfeito. E tudo isso publicado na Angelus Novus. A reportagem apresenta ainda ternurentas fotos memorialistas da menina, e uma foto da Isabela adulta.
- Esta fulana Câncio publica isto, tem quase todas as pessoas que lá viveram contra ela – começou a minha amiga. Quanto a esta Isabela, tem que ser uma louca, uma tarada. Pode ter muita raiva ao pai e está a vingar-se.
Com efeito, o livro que publicou, “desfaz, segundo Câncio, o postal da África mitificada, doce, dos fins de tarde rosa, dos vestidos brancos, dos criados negros calados, “naturalmente submissos” (na expressão de Isabela) e agradecidos a quem (na de Câncio) “se tratava muito bem” (Isabela). Não (Câncio). “É terrível falar disto (escreveu Isabela) mas a verdade é que nós vivíamos num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão...”
- Mas isso ainda hoje acontece. Lá como cá. Basta que se prove que a culpa não foi do atropelante. A minha amiga conhece casos.
Continua Câncio: “Sim, Isabela é capaz de ver e dizer isto, esta coisa arrepiante: houve uma espécie de justiça no massacre dos brancos. Mesmo se ela sabe que quando em Setembro de 1974 mataram famílias conhecidas à catanada, espalhando-lhes os restos pelas machambas, animais e pessoas, tudo o que era branco, à mistura, só por sorte inaudita ela e os pais não fizeram parte das contas”. (Isabela): “Quando começaram os tiros escondemo-nos no corredor da casa, deitados no chão... ainda hoje me pergunto se foram os nossos vizinhos negros que nos protegeram.” (Câncio): “Os vizinhos negros com quem ela estava proibida de se dar, como o menino da casa ao lado com quem queria brincar, ele em cima da árvore, ela sobre a garagem, a conversar até a mãe os apanhar em flagrante...” (Isabela): “As minhas memórias de infância estão cheias desses interditos. Nós não podíamos dar-nos com os pretos e tudo o que eu queria era dar-me com eles. Queria usar capulanas, andar descalça, aprender a língua... E tudo isso me era proibido.”
Neste ponto, apontámos a contradição do discurso com a foto da reportagem, das meninas de vestido branco, provavelmente da comunhão solene, onde Isabela está no meio de uma maioria de meninas negras.
Eu ainda considerei gravemente a possibilidade de ela preferir não as meninas pretas, que eram bastantes, pela foto se vê, mas os meninos pretos, por naturais instintos de adolescência em expansão.
E a minha amiga, acrescentou, sempre irada:
- Os meus filhos andaram na escola primária de Quelimane com uma maioria de rapazes negros, brincavam juntos, e um deles lanchava em nossa casa, trazido pelo meu mais velho.
Eu também falei da minha infância de pé muitas vezes descalço, com as meninas goesas e os meninos indianos da nossa rua, em correrias e brincadeiras, subidas às árvores da rua 5 de Outubro, de cujos galhos da época das podas camarárias o meu pai fazia andas para montarmos.
E é do pai que se fala agora, nos discursos de Câncio / Isabela, pai muito amado, mas muito bruto para “os seus muitos pretos” (Isabela), que “agredia com palavras e porrada (Câncio) para as tardes de camarão grelhado e penalties com os outros homens em que aprendeu a linguagem do racismo, para as aldeias onde espancava um empregado faltoso”, (Isabela): “um preto de merda”, “um preto cabrão”, enquanto aconselhava a filha “a ser independente, dona da sua vida”.
Segue-se o discurso evocativo sobre o pai amado, mas que vai incriminar, agora que morreu: “Saldar, a bem ou a mal, a dívida que pensava dever, não se importar de ser uma cabra, pária de sangue e de raça”, escreve" diz Câncio, que prossegue: “A pária que retrata no pai Portugal e a história do colonialismo...” “A “traidora” que caminha na fronteira entre todas as lealdades”, expõe Câncio de Isabela, muito incongruente na sua bondade de defesa das pessoas – embora só as que não foram massacradas – atacando o governo da descolonização, já esquecida do que um pouco atrás afirmara sobre os colonialistas racistas, merecedores de massacre: “É imperdoável que o governo da altura, sabendo o que se tinha passado noutras descolonizações, tenha deixado ali as pessoas. A descolonização foi muito mal feita – e podia não ter sido. As pessoas foram entregues”, conclui penalizada.
De qualquer maneira, safou-se Isabela, entregue pelo pai, preocupado em salvar a filha, aos hospedeiros aéreos, mais o cãozinho da foto. Para contar a história.
A minha amiga mostra repulsa e desprezo:
- E esta Câncio que não percebe nada de África, põe isto no jornal! E a outra! Imagine ela a transmitir estas mentiras aos miúdos! É duma atrasada mental!
- Ou oportunismo literário, para vender o livro.
-Ou isso! Veio aos doze anos para cá! O que sabe ela?
E a minha amiga refere que, nas viagens que fizeram a África, há uns anos, ela e o marido, foram recebidos pelos criados, o porteiro do Polana e outros negros amigos, com verdadeira alegria e desejo de que voltassem, “que os portugueses é que eram humanos”.
- É claro que disse verdades, más educações e prepotências sempre houve, em toda a parte. Mas o livro é uma bojarda.
- Conheço o género. Para safar a pele. Amanhã vou transcrever um texto de “Pedras de Sal”, sobre uma professora acusadora, tal como esta, muito progressista, muito individualista, muito insensata. Julgava que já tinham acabado estas figuras sinistras.
(Continua).
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