As questões anteriores, postas pela professora – Andrée Crabbé Rocha – visaram aspectos específicos para uma tomada de consciência sobre a relevância da Literatura da Resistência na eclosão de uma Revolução que à data – 1975 - se processava num cenário farfalhudo, muitas vezes dramático, organizado pelo MFA - no âmbito do COPCON - Comando Operacional do Continente – cujo decreto-lei que o criara fora assinado pelo General Spínola, em 8/7/74, segundo leio na Internet. As questões seguintes foram da responsabilidade de cada aluno.
Desde sempre o tema da libertação da Mulher me seduzira, sob influência, sobretudo, de Simone de Beauvoir, com o seu “Le Deuxième Sexe” e outros livros de memórias da sua própria libertação dos conceitos burgueses familiares. Mas também lembro o escândalo causado pelo “Bonjour Tristesse”, da Françoise Sagan, com os seus dezoito anos desenvoltos, andava eu então por Coimbra. Mais tarde, na “Página da Mulher”, do Notícias de Lourenço Marques, esse tema e outros repassavam, por vezes em casos dramáticos abordados por Irene Gil e outras colaboradoras. Daí, o ter posto a minha primeira questão sobre o tema, que era, aliás, comum na altura, mesmo em escritores portugueses:
4ª Pergunta:
“Dentro da temática desenvolvida na Literatura da Neo-Realista, que papel é reservado à Mulher? Haverá qualquer relação com as escolas literárias anteriores?”
Resposta:
«A mulher desmistificada, a mulher não anjo nem fatal, mas a mulher tal como é e vive na sociedade actual, assim nos é descrita pela literatura neo-realista.
A ingénua donzela das cantigas de amigo vivendo sob o domínio materno, a “senhor” espiritualizada do amor cortês ou até da novela de cavalaria inspirando as acções heróicas dos cavaleiros, quando não seduzindo e deixando-se seduzir com certo “savoir-faire” sensual, a mulher fonte de amor – quando não de graciosa sátira – no lirismo do Cancioneiro Geral, a mulher de variados tipos na sátira vicentina, a mulher divinizada – mau grado as contradições do homem aspirando às paixões sensuais, como no caso específico de Camões que tão identificado estava com elas na Taberna do Mal Cozinhado e quejandas, a mulher receptáculo de hipérboles e metáforas por vezes do mais rebuscado efeito, na poesia cultista, a mulher satélite do homem segundo veredicto de D. Francisco Manuel de Melo, a mulher anjo tutelar e fonte de paixão e de aspirações a uma calma felicidade burguesa, na “Marília de Dirceu” de Gonzaga, reconhecida como igual ao homem na capacidade de compreensão e estudo em Verney, não por ela própria, é certo, mas como medida de utilidade social, para a criação de filhos mais cultos, e preventiva também, para evitar que o marido procure outras companhias femininas mais condizentes com a sua própria capacidade, renegando a mulher por ser ignorante, a mulher em pinceladas do maior sabor e cru realismo na sátira de Nicolau Tolentino, a mulher-anjo, encarnação do Bem, e a mulher fatal, sereia de perdição, da escola romântica, a mulher, enfim, desempenhou sempre na literatura portuguesa, um papel marginal, desligado da vida, que não condizia, certamente, no artificiosismo mais ou menos retórico das descrições líricas, com o seu viver real, de destituída de direitos, escrava do homem numa sociedade machista e marialvesca, como foi sempre e é a sociedade portuguesa.
É Camilo quem, apesar do fatalismo das paixões das suas heroínas, já nos dá uma visão mais real da condição da mulher, quase sempre joguete das ambições e preconceitos masculinos, mas sabendo por seu turno fazer valer certos direitos, libertando-se da tutela masculina, arranjando amantes por sua própria conta, e utilizando ardis para os conservar.
As heroínas de Júlio Dinis, embora espiritualizadas, têm já uma independência económica e de jurisdição caseira em relação ao homem, reveladoras de que o paoel da mulher vai, enfim, iniciar rumos diferentes na literatura portuguesa. Bem assim as figuras populares de Trindade Coelho, tão autênticas através dos seus diálkogos e gestos, e da mesma forma descreve Eça a mulher como ser com personalidade própria, amante, possessiva, autoritária, ideal companheira do homem.
Mas o realismo, se admitiu o adultério e o incesto ou, como no caso de Fialho, a lubricidade sórdida conducente à degradação (“A Ruiva”), em todo o caso mantém, dum modo geral, para com a mulher, uma atitude máscula, superior, de aceitação forçada, de sorridente e distante bonomia. De facto, o realismo não se libertou dos pruridos morais – unilaterais – da sociedade burguesa machista, condenando a mulher pecadora, embora lhe saboreasse de passagem os eflúvios das roupas interiores. Se com Cesário a atitude varia – desde a troça à mulher distante, ao tom chocarreiro da referência realista às amantes, ao bom desejo pacífico de pureza na mulher-mãe e irmã, com Antero regressamos a um conceito de mulher-criança bela e pura e fonte de serenidade para o homem atormentado, e com António Nobre aspiramos a uma “Purinha” ideal que lhe minorará os sofrimentos e contradições de introvertido.
Os próprios poetas do “Orpheu”, pouco expansivos, de resto, a respeito do sexo feminino, ou retomam o tom clássico epicurista, embora irónico, do gozo da vida, à maneira de Ricardo Reis, ou o tom chocarreiro ao modo cesariano de Sá Carneiro, ou limitam-se a apontar, na multidão que vêem - além das ceifeiras alegres e inconscientes ou pequenas dos chocolates – as mulheres que andam pelas ruas “com um fim qualquer”, ou, como Almada Negreiros, em “Cena do Ódio”, as criadas de servir, instrumento de luxúria dos patrões vis e lúbricos, também sob a influência de Cesário (“Provincianas”).
Temos, pois, que foi a partir do “Orpheu” que se iniciou uma literatura de ataque à sociedade burguesa, embora, no caso específico da mulher, a sua reduzida condição humana já tenha sido escalpelizada por Raul Brandão e por Fialho de Almeida.
O romance neo-realista, no seu objectivo de denúncia da sociedade exploradora, não poderia mostrar-se alheado dos movimentos reivindicativos feministas dos fins do séc. XIX e do séc. XX. E é dentro desse objectivo que a mulher, no romance neo-realista, é apontada em diversas facetas, entre as quais as de oprimida e explorada ou insignificante numa sociedade onde o homem domina e é livre sob o ponto de vista familiar, já por princípio educativo, que lhe incute, desde pequeno, grande elasticidade de meios de actuação nesse campo, segundo a norma de que a casa é para as raparigas, transformadas, deste modo, desde o princípio dos tempos, em gatas-borralheiras eficientes e procriadoras.
(Continua)
Dada a extensão do texto, fica adiada para amanhã a sua conclusão, não sem antes referir, como lugar-comum, a mudança de relação entre os jovens, nos finais do século XX e no nosso século XXI, pela libertação dos pruridos sociais limitadores do papel da Mulher. Assim, desde cedo, a rapariga constrói a sua vida, em igualdade de oportunidades e de liberdades com o homem, o que, se desde cedo a pode tornar mais responsável, poderá igualmente causar danos profundos numa sensibilidade que se pretendeu amadurecida antes do tempo de uma efectiva maturidade.
Não é demais referir o papel dos media no excesso de desenvoltura que bem depressa afasta os jovens das noções de respeito familiar, o conflito de gerações, tão extraordinariamente representado por James Dean, nos anos 50, cada vez mais agudizado no nosso tempo.
Desde sempre o tema da libertação da Mulher me seduzira, sob influência, sobretudo, de Simone de Beauvoir, com o seu “Le Deuxième Sexe” e outros livros de memórias da sua própria libertação dos conceitos burgueses familiares. Mas também lembro o escândalo causado pelo “Bonjour Tristesse”, da Françoise Sagan, com os seus dezoito anos desenvoltos, andava eu então por Coimbra. Mais tarde, na “Página da Mulher”, do Notícias de Lourenço Marques, esse tema e outros repassavam, por vezes em casos dramáticos abordados por Irene Gil e outras colaboradoras. Daí, o ter posto a minha primeira questão sobre o tema, que era, aliás, comum na altura, mesmo em escritores portugueses:
4ª Pergunta:
“Dentro da temática desenvolvida na Literatura da Neo-Realista, que papel é reservado à Mulher? Haverá qualquer relação com as escolas literárias anteriores?”
Resposta:
«A mulher desmistificada, a mulher não anjo nem fatal, mas a mulher tal como é e vive na sociedade actual, assim nos é descrita pela literatura neo-realista.
A ingénua donzela das cantigas de amigo vivendo sob o domínio materno, a “senhor” espiritualizada do amor cortês ou até da novela de cavalaria inspirando as acções heróicas dos cavaleiros, quando não seduzindo e deixando-se seduzir com certo “savoir-faire” sensual, a mulher fonte de amor – quando não de graciosa sátira – no lirismo do Cancioneiro Geral, a mulher de variados tipos na sátira vicentina, a mulher divinizada – mau grado as contradições do homem aspirando às paixões sensuais, como no caso específico de Camões que tão identificado estava com elas na Taberna do Mal Cozinhado e quejandas, a mulher receptáculo de hipérboles e metáforas por vezes do mais rebuscado efeito, na poesia cultista, a mulher satélite do homem segundo veredicto de D. Francisco Manuel de Melo, a mulher anjo tutelar e fonte de paixão e de aspirações a uma calma felicidade burguesa, na “Marília de Dirceu” de Gonzaga, reconhecida como igual ao homem na capacidade de compreensão e estudo em Verney, não por ela própria, é certo, mas como medida de utilidade social, para a criação de filhos mais cultos, e preventiva também, para evitar que o marido procure outras companhias femininas mais condizentes com a sua própria capacidade, renegando a mulher por ser ignorante, a mulher em pinceladas do maior sabor e cru realismo na sátira de Nicolau Tolentino, a mulher-anjo, encarnação do Bem, e a mulher fatal, sereia de perdição, da escola romântica, a mulher, enfim, desempenhou sempre na literatura portuguesa, um papel marginal, desligado da vida, que não condizia, certamente, no artificiosismo mais ou menos retórico das descrições líricas, com o seu viver real, de destituída de direitos, escrava do homem numa sociedade machista e marialvesca, como foi sempre e é a sociedade portuguesa.
É Camilo quem, apesar do fatalismo das paixões das suas heroínas, já nos dá uma visão mais real da condição da mulher, quase sempre joguete das ambições e preconceitos masculinos, mas sabendo por seu turno fazer valer certos direitos, libertando-se da tutela masculina, arranjando amantes por sua própria conta, e utilizando ardis para os conservar.
As heroínas de Júlio Dinis, embora espiritualizadas, têm já uma independência económica e de jurisdição caseira em relação ao homem, reveladoras de que o paoel da mulher vai, enfim, iniciar rumos diferentes na literatura portuguesa. Bem assim as figuras populares de Trindade Coelho, tão autênticas através dos seus diálkogos e gestos, e da mesma forma descreve Eça a mulher como ser com personalidade própria, amante, possessiva, autoritária, ideal companheira do homem.
Mas o realismo, se admitiu o adultério e o incesto ou, como no caso de Fialho, a lubricidade sórdida conducente à degradação (“A Ruiva”), em todo o caso mantém, dum modo geral, para com a mulher, uma atitude máscula, superior, de aceitação forçada, de sorridente e distante bonomia. De facto, o realismo não se libertou dos pruridos morais – unilaterais – da sociedade burguesa machista, condenando a mulher pecadora, embora lhe saboreasse de passagem os eflúvios das roupas interiores. Se com Cesário a atitude varia – desde a troça à mulher distante, ao tom chocarreiro da referência realista às amantes, ao bom desejo pacífico de pureza na mulher-mãe e irmã, com Antero regressamos a um conceito de mulher-criança bela e pura e fonte de serenidade para o homem atormentado, e com António Nobre aspiramos a uma “Purinha” ideal que lhe minorará os sofrimentos e contradições de introvertido.
Os próprios poetas do “Orpheu”, pouco expansivos, de resto, a respeito do sexo feminino, ou retomam o tom clássico epicurista, embora irónico, do gozo da vida, à maneira de Ricardo Reis, ou o tom chocarreiro ao modo cesariano de Sá Carneiro, ou limitam-se a apontar, na multidão que vêem - além das ceifeiras alegres e inconscientes ou pequenas dos chocolates – as mulheres que andam pelas ruas “com um fim qualquer”, ou, como Almada Negreiros, em “Cena do Ódio”, as criadas de servir, instrumento de luxúria dos patrões vis e lúbricos, também sob a influência de Cesário (“Provincianas”).
Temos, pois, que foi a partir do “Orpheu” que se iniciou uma literatura de ataque à sociedade burguesa, embora, no caso específico da mulher, a sua reduzida condição humana já tenha sido escalpelizada por Raul Brandão e por Fialho de Almeida.
O romance neo-realista, no seu objectivo de denúncia da sociedade exploradora, não poderia mostrar-se alheado dos movimentos reivindicativos feministas dos fins do séc. XIX e do séc. XX. E é dentro desse objectivo que a mulher, no romance neo-realista, é apontada em diversas facetas, entre as quais as de oprimida e explorada ou insignificante numa sociedade onde o homem domina e é livre sob o ponto de vista familiar, já por princípio educativo, que lhe incute, desde pequeno, grande elasticidade de meios de actuação nesse campo, segundo a norma de que a casa é para as raparigas, transformadas, deste modo, desde o princípio dos tempos, em gatas-borralheiras eficientes e procriadoras.
(Continua)
Dada a extensão do texto, fica adiada para amanhã a sua conclusão, não sem antes referir, como lugar-comum, a mudança de relação entre os jovens, nos finais do século XX e no nosso século XXI, pela libertação dos pruridos sociais limitadores do papel da Mulher. Assim, desde cedo, a rapariga constrói a sua vida, em igualdade de oportunidades e de liberdades com o homem, o que, se desde cedo a pode tornar mais responsável, poderá igualmente causar danos profundos numa sensibilidade que se pretendeu amadurecida antes do tempo de uma efectiva maturidade.
Não é demais referir o papel dos media no excesso de desenvoltura que bem depressa afasta os jovens das noções de respeito familiar, o conflito de gerações, tão extraordinariamente representado por James Dean, nos anos 50, cada vez mais agudizado no nosso tempo.
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