domingo, 3 de janeiro de 2010

Como se nada fosse...

Falávamos do fim do ano, da alegria geral, dos hotéis e casinos cheios, dos aviões com gente partindo ou chegando, indiferentes todos às agonias em que nos debatemos sem saber para onde vamos...
E logo a minha amiga comentou:
- Como se nada fosse. Fizeram tudo. Na mesma, como dantes. Tudo cheio. E as viagens... Felizmente ainda há muito dinheiro.
Mas a tragédia de Angra dos Reis veio à baila. Ela não teria sido tão significativa se não fosse o fim do ano. O deslizamento das terras apanhou muito mais gente que se divertia por ser o réveillon, disse a minha amiga. E prosseguiu:
- Angra dos Reis é o sítio dos ricos, que vão lá fazer a sua casarona. Li ontem uma notícia com a fotografia do sítio onde está a casarona de um português, um Coutinho, não sei se Pereira. O espaço é tão grande, tão grande, tão grande... Um portuguesinho rico. Até tem a sala de cinema climatizada. E é para ali que vão os amigos dele passar férias. Onde parece que já esteve o nosso portuguesinho amigo dele, o Durão Barroso. Eh pá! Como se pode ser tão rico! Nosso Senhor não se zanga nem um bocadinho com estas farturas! Era normal que a casa maior no Brasil fosse de um brasileiro. Mas o Nosso Senhor não se zanga com ele. Não, não ponha isso aí, senão o Nosso Senhor zanga-se é comigo. Diz: “Estás com inveja!” Eu hei-de dar-lhe a folha do jornal para tirar o que lá está escrito. Ai! Mas é uma coisa impressionante! Por exemplo: Porque é que esses “Coutinhos” que são ricos não salvam Portugal? Se estes portugueses que são tão ricos se juntassem para salvar Portugal... Eu tenho que acreditar que aquilo da casarona é verdade, pois os jornalistas devem saber, devem informar-se. Bom, mas isto é só para a gente ficar contente, por ter um português muita rico, muita rico, muita rico... É relativamente novo. E a mulher é toda janota. Eles às vezes passam férias em Vila Moura, até com o Barroso. Ele também deve ter a sua casarona muito grande no Algarve, embora mais pequenina, que o país não comporta tanto espaço para casa. O Barroso foi censurado porque foi convidado para um cruzeiro pelo Coutinho. Mas é por serem amigos. Agora não custa nada a acreditar que ele já lá tenha estado na casarona brasileira. Tem um batalhão de empregados para tomar conta permanentemente daquela casa. E a história da vida dele deve ser isto: já nasceu rico. Mas pronto, o mundo existe assim.
E com o registo do monólogo da minha amiga eu nem pude defender patrioticamente o nosso Coutinho que, se conquistou tanto espaço no Brasil para a sua casarona – e parece que há mais nobres portugueses donos de amplos espaços lá – mais não fez do que receber a retribuição devida da terra que o nosso Pedro Álvares Cabral atingiu, e a quem, se tanto devemos, pela História fora, também o Brasil dele é credor.
Quanto ao cruzeiro do Barroso, eu não o censuraria. Até porque não é caso único, é nos cruzeiros que se forjam negócios e amores românticos, como o “Barco do Amor” revela a potes, e a Jacqueline e o Onassis exemplificam, em drama trágico da Callas. Às vezes também afundam, é certo, caso do Titanic, mas são casos raros.
Quanto à questão de salvar Portugal, a solução do apoio das grandes fortunas, segundo ela, me fez rir. Porque acho que quem o vai salvar somos nós todos, de quem se diz que vamos ter os vencimentos congelados, a partir de determinado escalão. Não dá para muito, talvez, mas ajuda qualquer coisinha. Sempre é um dinheirito certo. Que o dos paraísos fiscais está bem resguardado, fora do país, livre de impostos e do bedelho alheio, para os que com isso foram contribuindo para a ruína, embora não fossem só esses os contribuintes para ela. Como estão a salvo, não podemos contar com eles para a devolução.
Penso mesmo que os que têm contas nos Bancos cá, das que foram juntando, com maior ou menor capacidade, deviam ser obrigados a entregar parte delas para ajudar a pagar os TGVs da nossa grande dívida externa e interna. O nosso Governo tem poderes para obrigar. Além disso não foram o Buda e o S. Francisco que, sendo ricos, se despojaram das riquezas para atingirem uma perfeição espiritual que os catapultou para a glória eterna, fundando doutrina? Não precisamos de fundar doutrina, ela já está fundada, mas se eles foram felizes na pobreza, porque não o havemos de ser nós na abnegação? Despojemo-nos de parte das nossas contas bancárias, paguemos as nossas dívidas, fundemos outra nação, comecemos tudo de novo. No decoro. Como se nada fosse.

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