sábado, 2 de janeiro de 2010

Seminário (cont. 1)

De interesse achou a minha amiga o questionário sobre a Literatura da Resistência. Assim estimulada, eis-me a caminho, a transcrever a segunda pergunta feita pela professora, apesar de correr o risco de ser incluída no grupo dos pretensiosos com blogs que só eles próprios lêem e, por ansiarem mais projecção, se acolhem sob a asa de um patriótico “Portugalclub”.
O “PortugalClub”, com efeito, permite uma maior visibilidade a quem se proponha passar uma mensagem de defesa da pátria – ou de ataque, os gostos são democráticos - e com isso, naturalmente, apontar os erros dos que a destruíram e as virtudes dos que a poderiam reconstruir, caso tal reconstrução fosse viável ainda. É preciso reduzirmo-nos à condição de pertencentes às maiorias silenciosas dos regimes ditatoriais, para não incomodarmos os acomodados, os que dizem amen por conveniência própria, ou mesmo por convicção de raiz. Mas o que é certo é que há muitas pessoas no “Portugalclub” - e Oliveira Martins é uma delas – que estão na posse de conhecimentos que a sua seriedade e coragem trazem a lume, o que é função de todo o ser racional guiado por um ideal que não se deixe acobardar pelas imposições de uma qualquer Inquisição impondo a negação do heliocentrismo. No andar dos tempos, o “E pur si muove” galileico calará os teóricos das falsas teorias geocêntricas, embora, entre nós, a passividade, actualmente resultante da mordaça do desemprego pelo receio de se ser o despedido a seguir, imponha a inércia contra a prepotência - dos donos das empresas, dos “donos” da nação. Ou, como no caso presente, dos vendedores da sua banha de cobra e outros mais artefactos, como acontecia na aldeia de Maconde dos “Cem Anos de Solidão”, onde o cigano Melquíades ia apregoando as suas maravilhas que arrastavam o lunático José Arcádio Buendia na perda de bens próprios para aquisição daquelas.
Desta forma, apesar do risco, irei em frente na empreitada de esclarecimento, naturalmente limitado, sobre as origens literárias da Revolução dos Cravos:

«2ª Pergunta:
A filiação partidária, a polarização em torno de uma revista literária, o estatuto de franco-atirador, etc, são modalidades possíveis para escritores de combate. Qual delas lhe parece ter alcançado resultados mais fecundos do ponto de vista operacional e do ponto de vista estético?»

Resposta:
«Qualquer das três modalidades nos parece de resultados positivos num processo revolucionário.
A revista literária terá sido, inicialmente, o meio mais eficaz de trazer a nu novas concepções literárias, em oposição às vigentes. Já as revistas “Orpheu”, “Centauro”, “Portugal Futurista” , etc, tinham exercido, nas duas primeiras décadas do século XX, especialmente a primeira, um papel de choque e dinamização que, se inicialmente provocou acerbas críticas e troças, não deixou, com o tempo, de ser apreciada, de tal forma que da primeira se publicou recente edição. Aos vários “ismos” cultivados no “Orpheu” – futurismo, sensacionismo, interseccionismo, paulismo – suceder-se-á, na revista “Presença”, de mais longa duração, abrangendo os anos de 27-40, uma literatura introvertida, psicanalítica, desligada do mundo, porque céptica a respeito das ideias progressistas, mas sabendo pôr em relevo os valores estéticos da revista “Orpheu”.
A crise mundial do subconsumo dos anos 30, de que resultaria a literatura conscientizadora de crítica social norte-americana, russa e brasileira, a guerra civil de Espanha, a situação político-social da nação portuguesa, a segunda guerra mundial, originaram, entre outras causas, o surto neo-realista português, de que “Emigrantes”, “A Selva”, Terra Fria” de Ferreira de Castro constituirão os primeiros valores influentes.
Também, entretanto, várias revistas juvenis como “Gládio”, “Gleba”, “Sol Nascente”, polemizarão em torno do novo realismo, e as próprias “Seara Nova” (surgida em 1921) e “Presença” incluirão literatura neo-realista.
Alguns dissidentes da “Presença”, convictos de que o esteticismo em que viviam, no rasto da “Nouvelle Revue Française”, e à maneira de Gide e de Proust, não era bastante para um artista se realizar plenamente, fundaram a revista “Manifesto”, extinta pela Censura, de cinco números apenas, entre cujos colaboradores se incluem Fernando Lopes Graça, Branquinho da Fonseca, Albano Nogueira, Paulo Quintela, Miguel Torga. Nela se defendia uma literatura não propriamente “engagée”, mas que não fosse só esteticista, narcisista, e revelasse interesse verdadeiro pelas realidades do tempo.
O “Novo Cancioneiro”publicaria os poemas combativos de Álvaro Feijó e os de Mário Dionísio.

O estatuto de franco-atirador, isto é, o processo solitário de combater a exploração e a opressão, através da poesia, drama ou romance, também nos parece de grande efeito, embora, é certo, ela não atinja as camadas populares maioritárias que se propõe defender, por incultura e impreparação dessas mesmas camadas.
Vimos já como Ferreira de Castro iniciou a literatura de crítica social. Também Soeiro Pereira Gomes se tornaria apreciado com o único livro publicado em vida, “Esteiros”, a que se seguiria a publicação póstuma de outros, entre os quais “Engrenagem”.
Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Alves Redol, Urbano Tavares Rodrigues, José Rodrigues Miguéis, Sttau Monteiro, Bernardo de Santareno, José Gomes Ferreira, Irene Lisboa, Luísa Dacosta, e tantos outros escritores, em breve ganhariam um público mais ou menos interessado, mas eles próprios reconheceram que lhes não bastavam os esquemas demasiado limitados do romance de crítica social, e quase todos eles pouco a pouco se libertaram, em tentativas mais concordantes com a personalidade estética de cada um.
Sob o ponto de vista estético, pela peculiaridade que cada um imprime ao seu estilo, parece-nos, pois, o estatuto de franco-atirador o de maior impasse e mais larga ressonância.

Quanto à filiação num partido, afigura-se-nos, sem querer minimizar com isso o papel das revistas literárias nem o dos escritores “engagés”, talvez o processo de mais largo alcance sob o ponto de vista operacional, porque mais acessível a todas as camadas, para se familiarizarem com as doutrinas marxistas e se consciencializarem sobre a exploração e opressão a que estava sujeito o povo. Tal filiação tornar-se-ia um veículo de difusão tanto mais eficiente quanto maior a repressão do regime então vigente. Uma Catarina Eufêmia é prova da expansibilidade partidária, ao nível popular. As revoltas e reivindicações estudantis sê-lo-ão ao nível discente,
Por outro lado, a luta no Ultramar ajuda ao seu progresso, não só pelo sentido de revolta contra uma luta não entendida em territórios não sentidos como nacionais, mas porque todas as formas de colonialismo e imperialismo são condenadas pelas doutrinas marxistas, desde que essas formas se façam sentir “ailleurs” que não na extensa pátria de adopção de tão humanas doutrinas. Desse modo, todos os que saíam para o estrangeiro, em fuga da tropa e da guerra – e esses, geralmente, os das camadas estudantis burguesas ou francamente capitalistas – tornavam-se, se não o eram já, adeptos ferventes dessas doutrinas que lhes justificavam as atitudes fugidias embora contrariassem as fortunas paternas, e do estrangeiro manifestavam-se com acirrada e intransigente má vontade e ideias de demolição pátria e do regime opressor que nela vigorava.
Também as canções de José Afonso e prosélitos, pelo seu significado e a sua melodia se tornariam gentil veículo – e mais ainda por natural movimento de piedade e simpatia pela juventude algemada, se delas resultasse a prisão dos cantores – tornar-se-ia, pois, um gentil veículo de transmissão de ideias de revolta e conscientização, mesmo que tais revolta e conscientização fossem apenas puro lirismo, expresso, não ao som da lira, ao modo grego, mas ao som da guitarra e da viola, à maneira romântica portuguesa.»

Por me parecer que poderia ter utilizado o “etc” da pergunta, na minha resposta feita em 1975, apontando outros elementos de contributo valioso para a obtenção dos bons resultados na transformação política e social, embora sem o afã literário que nela se pede, acrescento hoje, em resultado da experiência vivida, quanto foi valiosa a nossa massa humana, formada no oportunismo, no laxismo, na incultura, na ambição, no desejo de vingança, e na indiferença pelo sentimento pátrio, que facilmente puderam operar tal reviravolta libertadora das garras dos bons princípios cívicos.
E sempre na crença do milagre, potenciador do Bem. Sem esforço.

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