segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Seminário (cont. 2)

Falámos do texto de ontem e logo perguntei à minha amiga se me dava uma dica para o de hoje, mas fechou-se em copas, com o seu costumeiro “Nem pensar!”, de falsa modéstia, para logo a seguir, irrequieta como sempre e sempre inquieta, sobretudo agora, lançar:
- Ainda há bocado estive a ler, no “Correio da Manhã”, na coluna de António Ribeiro Ferreira, “Estado do Sítio”, o artigo “Desesperados”. É de cavar! A nós, trata-nos de indígenas. Quando fala do Sócrates é “o presidente relativo do Governo”. A gente fica assustada com o panorama que nos espera. Diz que o Sócrates, para disfarçar as suas impotências governativas, ataca o Cavaco, que é homem sério, ou trata de questões menores, como a regionalização e os casamentos gay. O Sócrates até é um rapazinho apresentável, homem ainda novo. Ele lá fora faz figura. Parece que foi o que melhor se relacionou com os outros. E faz figura, sim senhor.
Admirou-me o enternecimento da minha amiga, mas apoiei:
- Pois! E também cá dentro é muito humano e muito visto e ouvido. Parece que vai visitar a Lourinhã que sofreu estragos com as borrascas, questão para o ministro da Agricultura, que já lá foi, resolver. Mas assim, indo ele, mostra-se preocupado e pode dar algum alento, bem parecido como é.
Contei ainda à minha amiga da estranha reacção do Sr. Casimiro Rodrigues, aparentemente atingido com as nossas graças acerca das riquezas brasileiras do Pereira Coutinho e outros portugueses que por lá ergueram “casaronas”. Desconhecia a fortuna do Sr. Casimiro Rodrigues em terras do Brasil, parecia-me que fora bem sucedido, a poder do seu trabalho, e só pode orgulhar todos os portugueses quando um compatriota nosso se sai bem no estrangeiro ou mesmo aqui, graças ao seu esforço e competência produtiva, não das formas tortuosas que ultimamente têm vindo a lume cá.
Mas não passámos disto, falámos dos nossos desalentos, por isso, viro-me para a continuação do meu “Seminário” das quintas-feiras à tarde, em 75, como forma de rever os tempos da minha segunda passagem pela velha Coimbra, os cinco filhos entregues aos meus Pais, em cuja casa da Parede nessa altura do retorno, nos acolhíamos, apanhando eu o comboio em Santa Apolónia, que me levava, de manhãzinha, e trazia pela noitinha:

3ª Pergunta do “Seminário”: “Como se processa a relação forma-conteúdo nas obras ditas neo-realistas?”

Resposta:
“Os processos são, naturalmente, variados, de acordo com as tendências estéticas de cada escritor. Mas a par da inevitável idiossincrasia formal, há um certo nivelamento estilístico que provém da identidade de temas buscados e do objectivo de denúncia de uma sociedade capitalista e exploradora. A arte neo-realista é simples, directa, digressiva, denunciante – se em verso, à maneira de Gomes Ferreira, cheia de indignações e apóstrofes, se em prosa, transmite essas indignações através das personagens, como é o caso de “Angústia para o Jantar” de Sttau Monteiro, ou das personagens de Urbano Tavares Rodrigues, que usa um estilo jornalístico, cheio de informações preciosas para se ficar consciente do mundo sub-humano que existe para lá da burguesia.
Ferreira de Castro, nos seus primeiros livros, usara longas descrições para melhor ambientar o leitor sobre a dureza dos condicionalismos humanos em que situa as suas personagens. Também o farão os neo-realistas posteriores, por vezes adoptando o tom suavemente lírico, sugestivo das potencialidades estilísticas dos seus autores, outras vezes fazendo incidir as descrições sobre as inclemências do inverno ou os ardores do verão, quando a estes se alia o esforço humano exaustivo, caso das ceifas do Alentejo nas descrições de Redol ou Manuel da Fonseca ou de Soeiro Pereira Gomes nas dos telhais em “Esteiros”, ou das cheias significativas de luto e miséria, como já Raul Brandão apontara nos seus “Pescadores”.
Nesse esforço de transmissão ao vivo, toma especial relevo a linguagem popular, que todos os escritores utilizam em reverência a um preceito de exactidão já usado por Gil Vicente, Camilo, Trindade Coelho e que Aquilino Ribeiro individualizou através de uma linguagem de tipo regionalístico ou vernáculo com o qual tão bem se identificou que a estendeu paradoxalmente a todas as suas personagens, incluindo as citadinas e a sua própria – tal como Camões, ao vazar em moldes clássicos os discursos das suas personagens, sejam elas marinheiros, pastores ou donzelas desprotegidas.
Outros escritores mostram um nível linguístico em desacordo com o das suas personagens populares, a não ser que utilizem o tipo de linguagem desbocada do meio intelectual – caso de “O Delfim” de Cardoso Pires, e tantos outros – para melhor realçarem um estado de espírito de angústia ou protesto contra a ordem social opressora.
A ironia é, aliás, uma moeda literária bastante em uso, que por vezes descamba em sátira contundente e de menor elegância – caso da alegoria “Dinossauro Excelentíssimo” de Cardoso Pires, e da peça de Natália Correia “O Homúnculo” ambas sobre a mesma figura política: Salazar, vingança “post-mortem” que não tem, naturalmente, o efeito das alfinetadas mais ou menos verrinosas dos que se lhe opunham em vida. A peça alegórica “A Estátua” de Sttau Monteiro focará idêntico tema.
Por vezes as descrições tornam-se demasiado prolixas, mero exercício de observação de tipo primário – como o prefácio de Luísa Dacosta no livro “Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu”, sobre a vida lisboeta, com nítido influxo cesariano.
Outras vezes o estilo é caprichoso e flutuante, sem naturalidade, obrigando o leitor a um alerta permanente, como em “O Delfim” de Cardoso Pires.
À medida, de resto, que o escritor vai perdendo a propensão neo-realista de descobrir mazelas sociais e vai adoptando o estudo analítico dos caracteres, especialmente o seu, em esforço literário de tipo existencial, a descrição do mundo exterior será substituída pela análise voluptuosa do mundo íntimo, não menos pretensiosa do que aquela e mascarando, com ela, uma real indigência imaginativa criadora de caracteres e de acção.
Também a adopção de uma atitude rebarbativa faz perder a um poeta como António Gedeão, o sentido rítmico da melopeia de ritmo popular, em redondilha superiormente tratada por meio de conceitos e imagens originais, e adoptar gradualmente o verso longo e mesmo livre, onde melhor poderá vazar uma mensagem de protesto e de sarcasmo. Resta saber em que medida é que o António Gedeão do verso longo e sarcástico poderia ter-se imposto à aceitação geral, se se não tivesse iniciado anteriormente com os poemas melódicos e conceituosos de tão pronto acolhimento.»

Nos tempos que correm, já ninguém mais se lembra de se debruçar sobre os descritivos literários das cheias e o seu efeito catastrófico sobre o povo mísero, com o intuito de criticar o regime antigo, convertido o descritivo literário em actual imagem televisiva de efeito mais directo e elucidativo, frequentemente em autênticos pormenores de horror. A nível mundial.
Mas a crítica permanece: à incúria e desorganização dos serviços que não reparam nem limpam os escoadoiros no verão e possibilitam as cheias no inverno; ou à falta de medidas de limpeza nos serviços florestais durante inverno e primavera, possibilitando os incêndios impunes no verão e outono; para não citar os outros danos a que estamos sujeitos – da prevaricação, da incompetência, da desatenção, do desrespeito. Do parasitismo. Da megalomania.
Critica-se o governo democrático, com estilo ou sem ele, apesar dos seus muitos apoiantes, dos que fecham os olhos e os ouvidos às desgraças, por conveniência própria. Criticam-se os males das liberdades descontroladas que nos levaram à ruína como nação livre.
Mas um dia iremos p’ra Pasárgada. E ergueremos novamente a cabeça.

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