sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Seminário

Achou Salles da Fonseca que os textos que seguem, resultado do Seminário de Literatura Portuguesa efectuado em Coimbra em 1975, como referi anteriormente, mereciam ser divulgados, talvez pela pertinência de conceito, talvez porque traduzem realidades vividas nos tempos do P.R.E.C., talvez porque aclaram, mau grado os possíveis erros da subjectividade, características de nível social e literário. Por isso me dispus a transcrevê-los, mau grado o incómodo que possa com isso gerar naqueles leitores renitentes a esclarecimentos, mais afeitos às histórias melodramáticas do nosso ultra-romantismo, como meu pai contava, por graça, sintetizando-as na expressão “chor’á mãe trabeculosa junt’à filha qu’agoniza”. A esses leitores da sardinha a meias e das longas caminhadas esfomeadas e de solas rotas para a escola da sua formação, poder-se-á sugerir que passem ao largo. As leituras não podem ser impostas, o Sr. Casimiro Rodrigues, liberal no acolhimento das escritas, não poderia ser ditador no capítulo das leituras. Ninguém pode. Nem os papás hoje em dia. Menos ainda os professores. O 25 de Abril trouxe também a liberalização do esforço mental, além do bem-estar material segundo o ponto de vista de um dos leitores de preferências literárias renitentes a esclarecimentos de semeadura seminarista.
Cada aluno frequentador do Seminário sobre a Literatura da Resistência, além de desenvolver um estudo sobre um autor, teria que responder a um questionário de cinco perguntas, das quais as três primeiras eram dadas pela professora, e as duas finais da responsabilidade de cada aluno. Ao questionário foi dado o título “Alguns aspectos da Literatura de Resistência, de 1926-1974”.
O cansaço da guerrilha em que diariamente se digladiam as forças dinamizadoras da nossa política nacional, me fez mergulhar nestes textos, que opiniões alheias me forçaram a reler. E assim, os trancrevo, em introdução a este novo ano de 2010 que desejaria mais responsável:

«1ª Pergunta: Dada a relação entre o aparecimento em Portugal de uma Literatura da Resistência e o contexto sócio-político, e tendo-se modificado esse contexto, quais serão as probabilidades de sobrevivência dessa literatura?

Começamos por pôr em dúvida a questão da modificação do contexto sócio-político, pela simples observação de que não existirá tal modificação. Ter-se-á dado apenas uma alternância de valores, uma sucessão de oportunismos, numa jangada desconjuntada onde o “salve-se quem puder” é a pedra de toque. A um regime ditatorial sucederá outro regime ditatorial, no qual é inútil uma convicção de liberdade ou uma convicção de bem-estar social. Os que clamavam pela libertação do povo e agora se servem desse “abre-te Sésamo” como processo de resolução dos seus problemas pessoais de sobrevivência, na realidade, ressalvando os bem intencionados – que os há sempre em todos os processos revolucionários – bem pouco se preocupam com o povo e as suas misérias – ou deixaram de se preocupar a partir do momento em que se libertaram das deles. Realmente, assiste-se a um momento histórico de grande dispêndio de energias dialécticas, com muito menos retórica, é certo, do que no regime anterior, mas com infinitas possibilidades mais no campo da mímica, além de um alargamento linguístico do ponto de vista familiar e popular, que nos conduzem à grata sensação de que recursos jamais nos faltarão em qualquer regime. Em nome do povo que se quer amoravelmente proteger contra os exploradores anteriores, permite-se a exploração actual sem lei nem controlo. Em nome do povo, sem liberdade de voto anteriormente, permite-se presentemente uma generosa – com pequenas incongruências – liberdade de voto, para em seguida lhe demonstrar que tal generosidade não passou de mistificação e que o voto do povo não conta para nada porque vai contra o voto dos amigos incongruentes do povo. Em nome do povo, expulsam-se os capitalistas, extraem-se-lhes os capitais, mas o povo nada colhe da extracção – a não ser desemprego, inflação, paralisação de energias, miséria, um futuro sombrio em perspectiva e, único produto válido, a institucionalização do roubo, através da justificação das extorsões feita nos órgãos informativos, que defendem a arte de roubar, de assaltar, de ser desonesto às claras, como direitos inerentes do bom povo português que de resto jamais se coibiu de os usar, conquanto mais a ocultas. Ressalva-se também o aumento de ordenados do operariado, o que o não contenta, todavia, exigindo sempre mais e mais, enquanto produz cada vez menos, mau grado a palavra de ordem dos amigos do povo de que a nossa sobrevivência resulta desse trabalho. Não vemos, com efeito, no povo explorado e humilhado, qualidades para se erguer do naufrágio. Os humilhados de outrora serão – se lhes derem acesso – os opressores do momento, e tratarão de iniciar a sua actuação no palco da política – se forem políticos – ou no da chefia – se forem chefes – clamando por vingança, em vez de tratarem de se erguer pela acção e o trabalho, aproximando-se assim, não dos povos ocidentais, mais ricos sob todos os pontos de vista, mas dos do terceiro mundo, primários e de instintos, com quem nos saberá bem equipararmo-nos por via de uma simplificação de tarefas e de responsabilidades.
Equacionado deste modo o problema, dentro de um cepticismo não elegante mas tristemente desiludido, resta-nos encarar a hipótese das probabilidades de sobrevivência da literatura neo-realista, a haver a tal mudança no contexto sócio-político.
Quando lemos a literatura épica de um Steinbeck, ou a de um Caldwell onde os lances dramáticos são realçados por um espírito mordaz e incisivo, ou a prosa poeticamente e risonhamente observadora de um Jorge Amado, ou a odisseica de um Gorki, sentimo-nos transportados a mundos extraordinariamente vivos, onde realidade e ficção se dão mãos para a criação de dramáticas ou caricatas figuras imortais.
Triste se torna a confrontação com os nossos valores novelescos ou líricos neo-realistas. É neles demasiado evidente a intencionalidade crítica, a busca ansiosa dos temas a criticar, o moralismo subentendido e, deste modo, o desrevestimento psicológico das personagens, para que possamos esperar uma sobrevivência de longo alcance, não no tablado universal – onde nem sequer penetram, apesar das traduções estrangeiras de que se possam gabar (o que não é, de modo algum, sintomático de real valia) – mas no próprio tablado nacional, onde deixarão de influir apenas passada a euforia de uma aparente vitória.
O neo-realismo ficará na nossa literatura como um movimento simpático a favor dos desprotegidos, espécie de capa misericordiosa e consciencializante, denúncia de toda uma sociedade viciada, apelo necessário ao sentimento de responsabilidade das classes dirigentes, das coniventes ou puramente ignorantes. Literatura documental, da qual emergirão apenas os de valor autêntico, os que possuem verdadeira originalidade.
Justificamos tais afirmações, parafraseando José Régio no artigo “Literatura Viva”, publicado em 10/3/1927 na Revista “Presença” (citado por Fernando Guimarães em “A poesia da Presença e o aparecimento do neo-realismo”, pág. 13):
“Em Arte é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é, pois, ter uma personalidade e obedecer-lhe.”
É certo que os verdadeiros valores, os capazes de singrar por si, puderam libertar-se e enveredar pelos caminhos próprios, como é o caso de um Aquilino, Torga, um Redol, Namora, Ferreira de Castro, Gedeão e os próprios Manuel da Fonseca, Marmelo e Silva ou mesmo um Vergílio Ferreira, embora nos pareça que este último, se se liberta de um conceito estético é para recair noutro, em romance de tipo existencial, onde é evidente o influxo estrangeiro existencialista ou do “nouveau roman”, sem, pois, o cunho individualista que os outros autores citados souberam imprimir às suas obras: Aquilino, na criação de figuras e situações pujantes de actualidade, Torga, numa íntima adesão ao povo de que saiu, numa superior expressão feita de humor, real interesse e conhecimento humano, dom de arrancar à vida autênticas figuras vigorosas, que se definem em diálogos e situações cheios de sabor e imprevisto; a par disso, o sentimento de revolta e frustração, expresso de uma forma concisa e lapidar onde transborda uma sensibilidade requintada, na qual imagens e ritmos constituirão, na parte poética, e mesmo na prosística, de que talvez “Bichos” sejam a obra mais expressiva, verdadeira magia verbal e de conceito. Redol, ao libertar-se da fase neo-realista, nos romances “Barranco dos Cegos” e “Cavalo Espantado”, criador de uma poderosa ficção, onde a densidade dos caracteres se casa com um estilo natural mas elegante. Namora, na criação de figuras ou de uma temática de introvertido, num estilo escalpelizador e incisivo, de uma expressão cuidada, embora sem a aparência de rebuscada, facilmente apreensível. Ferreira de Castro, sobretudo no romance “A Curva da Estrada”, pelo modo quase inédito entre nós com que expõe, de uma maneira serena e lúcida, a crise de consciência de um socialista espanhol, chegado a uma encruzilhada de frustrações, rancores e desejos de adoptar o partido nacionalista, subrepticiamente a isso impelido por interesses menos justificáveis, envolvido, de resto, por uma atmosfera aparentemente cordial, cujos artifícios ele sabe desvendar. António Gedeão, pela originalidade de expressão e de conceito, simpatia humana e melodia rítmica. Manuel da Fonseca, primando na arte do conto sóbrio e objectivo, a que não falta um certo sentido de humor picaresco e satírico e o conhecimento do meio alentejano e dos “bas-fonds” citadinos. Igualmente José Marmelo e Silva, pela sua concisão, subtil ironia, poder forjador de caracteres, em acção tensa e original. »

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