sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Fabulário inextinguível

Transcrevo um texto de Alberto Gonçalves, sociólogo, publicado no DN de 17/1:

«País Alegre, triste país »

«Manuel Alegre quer ajudar-nos a “mudar a vida”. Naturalmente, este modesto desígnio apenas se atinge se elegermos um presidente com “capacidade de invenção” e “poder de inspiração”, isto é, ele próprio. Além disso, Alegre considera-se um “patriota e um cidadão” que, o que pode dar jeito, “se identifica com as raízes profundas da nossa história e da nossa cultura”. Por acrescida sorte, a profundidade não o impede de ser “um cosmopolita”, ansioso por “um Portugal que valha a pena”. E conclui: “É esse Portugal que nos interpela. É esse combate que chama por nós.”
De cada vez que abre a boca, Manuel Alegre produz um compêndio do humor inadvertido, e o primeiro instinto é divertirmo-nos à respectiva custa. O segundo instinto é constatarmos que tamanho monumento à vacuidade não só se leva a sério, como é levado a sério pela quantidade de portugueses suficiente para tornar a sua candidatura às “presidenciais” possível e a sua vitória no mínimo plausível. Aí, passa a vontade de rir da figura e apetece chorar a espécie de país que a concebeu, um país sem noção do ridículo que nos interpele, nem combate ao embaraço que nos chame. Também eu gostaria de um Portugal que valesse a pena. Alegre é uma prova de que não vale.»

Este texto de um sociólogo
Por sinal também psicólogo
Mais uma vez me levou
A uma fábula procurar
Que o pudesse ilustrar.
Duas achei,
Mas mais talvez ainda achasse
Se quisesse. Que La Fontaine contém
Exemplos a par e passo
Das nossas vacuidades,
E das falsidades
Das aparências,
Das pesporrências,
Das salências,
Dos discursos de palavrório
Para pacóvio engolir
Sem pensar em descobrir
Que está a ser levado
Por quem o sabe enganar ,
E não só por esse,
Mas por quem o vai apoiar,
Desinteressado
Em bem governar
E só ocupado
Com a sua própria pessoa...
Vejamos então a fábula primeira ,
Tão conhecida e antiga,

«A montanha parideira »
«Uma montanha em trabalho de parto
Lançava um clamor tão infeliz
Que cada qual, acorrendo,
À gritaria lancinante
Foi imaginando
Que uma cidade maior do que Paris
Ia sair do seu pranto.
Pariu um rato.
Quando penso nesta fábula
De enredo tão sem tento
Imagino um autor que diz:
“Eu cantarei a guerra pelos Titãs feita
Ao Senhor dos Trovões”.
É muito prometer.
Mas que sai muitas vezes de tanto prometer?
Vento».

Eis a segunda fábula
Que serve para nos avisar,
Se nisso quisermos cuidar,
Que o parecer
As mais das vezes se distingue do ser,
Que o que parece mau ou demasiado importante
Muitas vezes não passa de coisa insignificante:

«O camelo e os paus flutuantes»
«O primeiro homem que um camelo avistou,
De tal criatura, assustado, se pisgou,
O segundo, dele se foi aproximando.
O terceiro já ousou,
Para o Dromedário, fazer uma arreata,
Desse modo esperando
Dar aprazível passeata.
Assim, ao que parecia terrível
O costume o tornou domesticável.
E já que estamos nesta temática
Vejamos outro exemplo da nossa prática:
Uns fulanos foram postados em emboscada
À beira-mar, e vendo, ao longe, na bruma
Uma certa aventesma pela distância transformada,
E pela espuma,
Não puderam deixar de referir
Que se tratava de um poderoso navio,
Para pouco depois lhes parecer
Um navio incendiário simplesmente;
Seguidamente,
A bote passou e mais adiante
Era apenas um fardo flutuante,
Paus dispersos nas ondas, finalmente.
Conheço pelo mundo muita gente
A quem isto se aplica facilmente:
De longe, são coisa importante,
De perto, coisa nenhuma ou pau flutuante.”

E é desta forma que o “País Alegre
Não passa dum “triste país
Se se deixar levar pelo que Alegre diz,
Ou pelo que de Alegre dizem
Os que em Alegre votam
E os olhos e ouvidos fecham
À banalidade e ao vento
Dos discursos de Alegre bento.

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