quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Seminário (Cont. 3 – 4ª Pergunta):

“Papel da Mulher, na literatura da Resistência (Conclusão)”

“E assim, mesmo os escritores de vanguarda, que aparentemente apoiam uma igualdade de direitos da mulher, não deixam, sempre que vem a talhe de foice, de a pôr a ridículo nas suas pretensões, como é o caso de Vergílio Ferreira, em “Cântico Final”, ao apontar os exageros da mulher em parecer culta, esquecido de que o seu “Cântico Final” é todo ele uma resenha de questões da ordem do dia, numa ânsia de mostrar erudição e actualização de conhecimentos que em nada fica a dever, possivelmente, à boa Cidália – a “nova-rica” intelectual em causa.
Quanto a Urbano Tavares Rodrigues, ele nos vai dizendo o seu parecer, por vezes através das personagens femininas estrangeiras, como no caso de “Imitação de Felicidade”, onde duas francesas criticam a servidão das portuguesas em relação aos seus homens, mas se aproveitam escancaradamente da liberdade machista nacional para sua recreação pessoal. De resto, a atitude aparentemente livre e compreensiva quer de um quer de outro escritor, não convence ninguém, o primeiro demasiado egotista para que lhe interessem os problemas femininos, o segundo demasiado luxurioso para que – apesar das referências tão em moda, sempre de bom efeito patentear – na mulher lhe não interesse mais do que um corpo que se espose sinuosamente com o seu. Mesmo quando analisa a independência sexual da mulher – “Ave Esventrada” parece que só esse campo lhe merece predilecção, dentre os tão variados das reivindicações femininas, o que faz pressupor que só esse o favorece no seu campo de acção. Muito portuguesmente exigirá, sem dúvida, que em casa a mulher ou a criada o sirvam – tudo o mais é literatura... e sexo.
Também Sttau Monteiro em “Angústia para o Jantar” coloca uma personagem indignada – Gonçalo, retrato do cidadão rico e “blasé” dos nossos dias – a participar numa conversa familiar de porteiros, onde o único bife será, à boa maneira portuguesa, para o homem – só porque é macho – o qual passara a manhã de domingo a ler o jornal, enquanto a mulher se afadigara a varrer, esfregar, cozinhar, olhar pelos filhos – mas a mesma personagem indignada (retrato provável do autor), sustentará amantes e desdenhará da mulher – desta vez com reciprocidade “raffinée” – também à boa maneira marialvesca portuguesa, que beija a luva às senhoras e em casa é intratável, ou é cortesão dentro e fora de casa, mas indiferente e distante, sob o ponto de vista conjugal.
A “Curva da Estrada” de Ferreira de Castro foca o caso da rapariga (espanhola) abandonada pelo noivo, e de cuja pureza se rosnaram intrigas. Ela própria se autoflagelará em novenas e devoções de arrependimento, bem integrada na mesma sociedade condenatória das fraquezas femininas, desde que não sejam autenticadas pelo selo da autoridade judicial ou eclesiástica. E se o irmão – socialista liberal - a quer benevolamente fazer confessar, indiferente a tais selos, ela própria se encerra no seu mutismo envergonhado, sobre o qual pesam tradições de séculos.
Ainda dentro da temática das prepotências masculinas, a literatura neo-realista, seguindo a lição de Cesário, focará o caso das mulheres trabalhadoras entregues à libidinosa cobiça dos patrões prepotentes – “Gaibéus”, “Fanga” de Redol – o das criadas de servir – “Escada de Serviço” de Afonso Ribeiro – o das “mulheres a dias” – “Maria vai, Maria vem, romance da mulher a dias” de Luísa Dacosta - o da prostituta enfim, a quem a primeira experiência sexual é o primeiro passo na escala da degradação. Este último tema é vastamente analisado, e se “Aves da Madrugada” de Tavares Rodrigues traduz, à maneira de Sartre, o humanitarismo – em situação bem mais grotesca, em todo o caso – dessas mulheres, “Angústia para o Jantar revela a irritabilidade das mesmas e má vontade em relação às mulheres casadas, a quem os maridos são fiéis aos fins de semana, por ética convencional. O próprio “Domingo à Tarde” de Fernando Namora descreve uma destas figuras, um pouco irreal, despida de preconceitos, já por natureza própria, já por saber que o nada em breve sobre ela desceria. Se, pois, Dumas Filho se atrevera, um século antes, a focar o tema escandaloso das Damas das Camélias, neste nosso século humanitarista e desenvolto, o tema sofre larga e voluptuosa aceitação, sendo constantes as referências na literatura portuguesa contemporânea.
Outras facetas sob que se nos apresenta a mulher na novelística neo-realista são a dureza do seu trabalho (“Gaibéus”), a miséria da sua condição (“O Trigo e o Joio”), a irritabilidade resultante da vida de miséria (“Vagão J”), a doença (“Esteiros”), a vida animal que conduz ao próprio incesto (“O Ser e o Ter” de Marmelo e Silva), o tema das mulheres invertidas (Nita Clímaco), o das incapazes de, com receio de perderem no conceito do mundo, se libertarem de um casamento frustrado, onde o marido faz uma vida livre e sem preconceitos... em relação a si próprio (“Burguesia” de Luísa Dacosta).
Mas, se o escritor aparentemente se indigna quando foca de um ponto de vista superior e paternalista os seres femininos inferiores ou necessitados de protecção – como sejam a mulher do povo explorada e oprimida – numa igualdade de posições já adoptará a ironia distante de quem se não convence de que tal igualdade é possível. E a mulher para o escritor português do século XX ainda é, à boa maneira aquiliniana e portuguesa de todo o sempre, a descontarem-se as hipocrisias literárias, simples objecto de luxúria, interesse ou perversões do homem, pois das intelectuais o escritor troçará, como Vergílio Ferreira, com Tolentino por mestre, e assim das burguesas, como Rodrigues Miguéis, também com o mesmo mestre na origem.
Porque o escritor português, como bom português, não abdica facilmente dos seus direitos – e entre eles conta-se, evidentemente, os da não ingerência nos serviços inferiores da barca familiar, destinados à mulher e imprescindíveis, é certo, para a boa manutenção do físico, mas inibitórios de um viver mais livre e independente destinado ao homem, mais feito para os superiores prazeres do espírito... e os do corpo também, sempre que venha a talhe de foice e fora do zelo doméstico.»

É um facto que a sociedade mudou, marido e mulher trabalham, os filhos começam cedo a sua senda de “desintegração” do meio familiar, colocados em infantários, numa roda-viva dos pais que precisam de se interapoiar, o homem extirpando os resquícios da convenção machista que lhes sobrou de outrora - teoricamente o pai como representante do “fornecedor do alimento”, a mãe, a boa “fada-do-lar”, activa e atenta. Já não foi assim no meu tempo de trabalhadora, muito menos o é hoje. Mas a mulher acumula funções de peso com a casa, o trabalho, a família, o homem deve mesmo participar, no ritmo febril dos novos tempos.
E bem é quando há trabalho. Porque o pesadelo actualmente é a falta dele, as gerações que estudam, numa sociedade desintegrada, sem perspectiva de uma colocação, os serviços fechando, a robotização substituindo a intervenção humana, o descalabro social com o espectro do desemprego... Para não falar dos outros óbices sociais, de filhos entregues a si, sujeitos ao aventureirismo das pragas actuais, de expansão da droga, do rapto, da pedofilia, das falsas pedagogias que apoiam a indisciplina, numa incompreensão do valor da liberdade...
O papel dos pais deve ser mais interventivo do que nunca, em paridade. Já não se trata da libertação da mulher, mas da consciência da sua acção na engrenagem da vida.

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