quarta-feira, 1 de junho de 2016

Aos oitenta…




Com o antetítulo «Fraco Consolo», a crónica de Pedro Mexia sobre a ficcionista e ensaísta inglesa (filha de emigrantes judeus) Jenny Diski, pretende ser de homenagem sentida – póstuma – a alguém que conheceu através dos seus ensaios que qualifica de “inteligentes, honestos e sarcásticos”. Leio o historial que a Internet apresenta sobre a escritora, “enfant terrible” dos anos sessenta, cujo ensaio “The Sixties  Pedro Mexia analisa de forma magistral. Ensaio sobre essa juventude febril e contestatária dos anos sessenta que revolucionou o mundo do sexo, das liberdades e direitos, das drogas com conceitos orientais disfarçadores, “como tentativa civilizacional de prolongar a vida”, que, aos sessenta anos, se encarou com mais rigor e objectividade, no falhanço dessas ilusões, que em nada mudaram a “bête humaine” de tradições literárias anteriores, talvez mais justiceiras ainda e mais comedidas, no primitivismo dos instintos básicos, do que essas outras do século XX da incontinência, da perversão, da provocação sem pudor, em espalhafatos de afirmação utópica, apesar da justeza de alguns conceitos. (O certo é que, perdidos os valores espirituais que ao longo dos tempos sublinharam os princípios da ética e da razão humanas, assistimos a uma revolução, sim, no sentido de uma desenfreada valorização pessoal na conquista do poder económico, quantas vezes fraudulento, por esses mesmos da contestação e da conquista sem esforço, com o espezinhamento das normas e dos que não têm igual pedalada evolutiva, que engloba tanto os que pretendem vencer por mérito próprio como os que desistiram de acreditar, por formas várias de actuação, que inclui o próprio mergulho na droga). Mas é pessoal, este meu discurso, condenatório na sua revivescência, como já o fora na sua vivência preocupada, em função de um cada vez maior desequilíbrio e insegurança das gerações seguintes, intuitos condenatórios que não figuram na intelectualidade do rigor analítico de Pedro Mexia, que transcrevo com muito prazer:

Os sessenta aos sessenta
Pedro Mexia
E, 21.05.2016                                                                                                
Lia com frequência os ensaios inteligentes, honestos e sarcásticos de Jenny Diski (1947-2016) na “London Review of Books”. Quando soube a notícia da sua morte tirei da estante um livrinho que é a cara dela: “The Sixties” (2009), memórias pessoais de uma década. Tinha a certeza de que não seria um manual de mistificações e nostalgias, nem o “mea culpa” de uma arrependida, mas antes uma análise sincera e desarmante de uma experiência, de um tempo: “Vivi em Londres nessa época, lamentando os Beats, comprando roupa, indo ao cinema, desistindo da escola, lendo, consumindo drogas, passando umas temporadas em hospitais psiquiátricos, manifestando-me, fazendo sexo, dando aulas».
Para Diski, os sixties tornaram-se “uma ideia”, ou sempre foram sobretudo uma ideia. Entendemos as épocas passadas de acordo com os testemunhos, os grandes eventos, uma certa narrativa que empresta coerência ao caos dos factos; mas os factos só contam metade da história. Diski prefere ater-se a uma grande “ideia, a ideia de que a década de sessenta consistiu numa tentativa civilizacional de prolongar indefinidamente a juventude; havia uma espécie de complexo de Peter Pan que conduzia à recusa de tudo o que fosse identificado com a maturidade, o conformismo, a reverência, o bom-senso.
Os jovens da década de sessenta queriam o hedonismo e a liberdade. E por isso defenderam como ponto de partida uma reconfiguração mental da realidade quotidiana através das drogas, as quais, protesta Diski, não eram uma aventura lúdica mas uma investigação filosófica. O guru Timothy Leary explicou: «A causa dos conflitos sociais é geralmente neurológica. A cura é bioquímica.” Segundo a escritora, as drogas representavam uma revolução mental, uma tentativa de abrir as portas da percepção a novas ligações e a novas dimensões, com laivos de espiritualidade oriental ou pseudo-oriental. As drogas funcionavam como uma experiência interior (como em Huxley). E a “expansão da mente” concretizava-se na excelente música que então se fazia, muita da qual “psicadélica”, dos Doors aos Jefferson Airplane e aos Love. Quanto ao sexo, Diski é bem mais céptica. Certamente que os anos sessenta fizeram muito pela autonomia  das mulheres ou pela aceitação da homossexualidade; mas a “libertação, na sua forma sexual, era uma nova forma de moralidade imposta”, escreve a ensaísta, tão estrita e tão repressiva como aquela que nós acusávamos os nossos pais de patrocinar”. O sexo é que era a verdadeira experiência lúdica: a “permissividade” consistia na  absoluta naturalidade do desejo sexual, sem pudores nem entraves, mesmo nos casos em que a vontade não fosse muita. Diski comenta, e isto traduzido não tem tanta graça: «It was difficult not to fuck someone who wanted to fuck you without feeling you were being very rude”.
O aspecto mais interessante do ensaio consiste aliás numa colecção de paradoxos. O paradoxo do colectivo por exemplo. A vivência típica da década atingiu sobretudo as pessoas de um meio burguês e urbano, geralmente com certo desafogo económico, e nesse sentido não foi uma experiência representativa: «Nem toda a gente em França estava a fomentar a revolução em 1789; só uma pequena parte da nova geração dos Anos Vinte pertencia aos “Bright Young Things”, e assim por diante. Nos concertos e nas manifestações, o sentimento colectivo prevalecia, mas as experiências de vida “comunais” falharam quase sempre, porque nunca foram ultrapassadas as noções de propriedade, privacidade, ciúme, sejam essas noções naturais ou não.
O segundo paradoxo é a permissividade. Por um lado, os fundamentos legais da sociedade permissiva foram instituídos por um ministro mainstream de meia idade, o liberal de esquerda  Roy Jenkins, que de 1965 a 1967 mudou diversas leis em matérias de costumes; por outro lado, o culto do indivíduo dos sixties transformou-se, uns anos depois, no individualismo radical do thatcherismo, de longe o legado que Diski considera mais nefasto.
O terceiro paradoxo tem a ver com a glorificação da juventude, quando a juventude é por natureza fugaz: “ser jovem é uma fase por que os velhos passam”. Nos anos 60, lutou-se por uma “civilização de jovens”, mas não se imaginou esses jovens com sessenta anos.

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