sábado, 4 de junho de 2016

Uma seca a vida, sem passerelles




Mais um texto de Clara Ferreira Alves que apetece reter, na sua contenção expressiva, paralela com ilustração informativa que lhe dá a experiência de viageira das “Sete Partidas”, em proveito dessa muita ilustração, como acontecera com o príncipe regente D. Pedro, da “Virtuosa Benfeitoria”, em tempos de outras memórias, afinal também grandemente revolucionárias num mundo que tão «Ínclita Geração» ajudou a abrir-se, como a “Ínclita Geração” de agora ajuda a percepcionar.
A pobreza como adereço da moda”, uma frase  síntese dos absurdos de um tempo em que a riqueza, mais deslumbrante do que nunca, parece ser desvirtuada por ideologias de aparente fraternidade e conforto aos deserdados, como esses jeans com rasgões, de moda transgressora, mas afinal de um extremo snobismo na sua rebeldia provocatória artificial.
E esses países que foram pátrias revolucionárias das ideologias comunistas dos igualitarismos sociais - (com chefes, em todo o caso, bem demarcados desses posicionamentos comunitários envilecedores) - contra as sociedades da moderação ou da conquista capitalista mais ou menos bem sucedida, revelaram-se, afinal, tão admiradores e reconfortados como os outros, com os espectáculos do mundo da moda e do luxo próprios de qualquer burguesia que se preze, mesmo sob a capa da solidariedade e da virtude. Clara Ferreira Alves os cita, exemplificando com os países em que a esses assistiu, que puseram fim, com tais espectáculos mundanos de contraste, apercebidos de longe por um povo mal alimentado, à era do comunismo dedicado, com chefes igualmente apetecendo os prazeres reluzentes do requinte e da elegância. O título irónico da crónica o denuncia, o sarcasmo do discurso o corrobora.
Eu só diria: Mas ainda bem que as “passerelles” continuam, que os contrastes existem, que a variedade é múltipla nesta “Terra que pelo espaço vai, leve como uma andorinha”… E tão leve que deveríamos, talvez, relativizar. De resto, é o que faz Clara Ferreira Alves, na sua preferência pela ditadura da moda.

COMUNISMO CHANEL
Clara Ferreira Alves
E, 7/5/16
Já vi isto antes. Quando o primeiro McDonalds abriu em Moscovo durante a perestroika, vi formarem-se filas de quilómetros. Os russos guardavam as caixas gordurentas dos hamburgers como recordação. Levavam-nas para casa. Vi Gorbatchov a fazer um anúncio da Pizza Hut. E quando o comunismo tinha sido substituído pelo putinismo, vi Gorbatchov fazer um anúncio para as malas Louis Vuitton. Chegou a vez de Cuba. Karl  Lagerfeld, o imperador, Kaiser Karl, desembarcou em Havana e fez do Paseo del Prado a passerelle do seu show de cruzeiro (para ser usado em cruzeiros, supõe-se) da Chanel. Inspirado pela “riqueza cultural e a abertura de Cuba”, a colecção foi apresentada na Grande Avenida Colonial de Havana, restaurada, pintada e fechada para o efeito aos cubanos. Aberta exclusivamente para o Kaiser e a sua corte de convidados, fashionistas, celebridades, estrelinhas, modelos e aspirantes a modelos. Por lá andavam Gisele Bundchen, Vin Diesel, Tilda Swinton, Vanessa Paradis e demais has beens. Não é a tropa habitual dos shows Chanel da China ou do Golfo Pérsico. Talvez alguém tenha sentido um certo pudor.
Nas lojas Chanel não se compra nada por menos de mil euros, a não ser um porta-chaves. Uma malinha Chanel, topo de carreira para socialites e rapariguinhas ambiciosas, custa no mínimo 2500 euros. A do tamanho de um cartão de crédito. Um casaquinho custa dez mil euros. A meia dúzia de metros do Paseo del Prado, os cubanos que ganham 10 a 25 dólares por mês e mal têm que comer foram obrigados a dar uma espreitadela de longe, do esconso das favelas, convenientemente removidos por barreiras policiadas para impedir o povo de estragar a festa da opulência. Os velhos Cadillacs cor-de-rosa de Havana, restos mortais dos anos 50, foram lustrados e usados como carro de passeio para as meninas e meninos Chanel, armados de leques para afugentar o calor tropical. Foi, parece, divertido. Comovente. A “Vogue” aprova estas manobras e foi a sua directora, Anna Wintour, a Kaiserin, a primeira a usar a pobreza como adereço de moda. Um fashion shot na África subsariana, com modelos esguios ao lado de crianças de barriga inchada. Ou no subcontinente indiano com mulheres a carregar água na cabeça ao lado de meninas com 30 quilos de peso total.
O show de cruzeiro da Chanel foi um êxito total. Os únicos cubanos autorizados a vê-lo de perto foram os proprietários das casas com varandas no Paseo del Prado, irremovíveis, e os amigos dos Castros. O neto de Fidel, António Castro, é um desses aspirantes a modelo internacional. O avô não apareceu.
A Chanel é a segunda maior companhia de luxo do mundo, a seguir à Louis Vuitton. A Louis Vuitton também gosta de usar paisagens de países pobres da Ásia ou da África nas suas campanhas, esteticamente compostas e fotografadas, filtradas por uma luz amável. A fotografia com a Angelina Jolie a abraçar uma mala era muito bonita. Melhor do que a de Gorbatchov. Neste caso, o interesse do Kaiser por Havana não deve ter a ver com o mercado local. Ao contrário dos sultões do petróleo e dos chineses milionários, Havana só deve ter como putativos compradores Chanel a descendência dos comunistas da nomenclatura. E a esses, bem entendido, a marca deve ter oferecido qualquer coisinha. Uma atenção. Io capitalismo é muito mais inteligente do que o comunismo.
As contas Instagram, os blogues e os Facebooks dos convidados da Chanel encheram-se de selfies maravilhosas, com gente saudável, maquilhagem impecável e cabelo maleável, gente bem alimentada. Ao fundo, adereços da coisa, uns escolhidos nativos, com menos bom aspecto e muita cor local. Muita autenticidade. Cuba está na moda, realmente.
E assim falece o comunismo. Este é o seu epitáfio. A caixinha de cartão do McDonalds na estante do apartamento, ao lado dos Irmãos Karamazov. Que diria o García Marquez ao seu amigo Fidel Castro deste show de cruzeiro? Ditadura por ditadura, antes a da moda.
Se a pornografia faz parte do nosso meio ambiente e tece a nossa indiferença, entre a pornografia do bombardeamento do hospital em Alepo, que assassinou o último pediatra da cidade e a pornografia da ditadura Chanel em Havana, escolho a segunda. É inofensiva. E dá mais nas vistas que a primeira, de que ninguém quer verdadeiramente saber.

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