Mais um texto de Clara Ferreira Alves que apetece
reter, na sua contenção expressiva, paralela com ilustração informativa que lhe
dá a experiência de viageira das “Sete Partidas”, em proveito dessa
muita ilustração, como acontecera com o príncipe regente D. Pedro, da “Virtuosa
Benfeitoria”, em tempos de outras memórias, afinal também grandemente
revolucionárias num mundo que tão «Ínclita Geração» ajudou a abrir-se, como a
“Ínclita Geração” de agora ajuda a percepcionar.
“A pobreza como adereço da moda”, uma
frase síntese dos absurdos de um tempo
em que a riqueza, mais deslumbrante do que nunca, parece ser desvirtuada por
ideologias de aparente fraternidade e conforto aos deserdados, como esses jeans
com rasgões, de moda transgressora, mas afinal de um extremo snobismo na sua
rebeldia provocatória artificial.
E esses países que foram pátrias revolucionárias das
ideologias comunistas dos igualitarismos sociais - (com chefes, em todo o caso,
bem demarcados desses posicionamentos comunitários envilecedores) - contra as
sociedades da moderação ou da conquista capitalista mais ou menos bem sucedida,
revelaram-se, afinal, tão admiradores e reconfortados como os outros, com os
espectáculos do mundo da moda e do luxo próprios de qualquer burguesia que se
preze, mesmo sob a capa da solidariedade e da virtude. Clara Ferreira Alves os
cita, exemplificando com os países em que a esses assistiu, que puseram fim,
com tais espectáculos mundanos de contraste, apercebidos de longe por um povo
mal alimentado, à era do comunismo dedicado, com chefes igualmente apetecendo os
prazeres reluzentes do requinte e da elegância. O título irónico da crónica o
denuncia, o sarcasmo do discurso o corrobora.
Eu só diria: Mas ainda bem que as “passerelles”
continuam, que os contrastes existem, que a variedade é múltipla nesta “Terra
que pelo espaço vai, leve como uma andorinha”… E tão leve que deveríamos,
talvez, relativizar. De resto, é o que faz Clara Ferreira Alves, na sua
preferência pela ditadura da moda.
COMUNISMO CHANEL
Clara Ferreira Alves
E, 7/5/16
Já
vi isto antes. Quando o primeiro McDonalds abriu em Moscovo durante a
perestroika, vi formarem-se filas de quilómetros. Os russos guardavam as caixas
gordurentas dos hamburgers como recordação. Levavam-nas para casa. Vi
Gorbatchov a fazer um anúncio da Pizza Hut. E quando o comunismo tinha sido
substituído pelo putinismo, vi Gorbatchov fazer um anúncio para as malas Louis
Vuitton. Chegou a vez de Cuba. Karl
Lagerfeld, o imperador, Kaiser Karl, desembarcou em Havana e fez do
Paseo del Prado a passerelle do seu show de cruzeiro (para ser usado em
cruzeiros, supõe-se) da Chanel. Inspirado pela “riqueza cultural e a abertura
de Cuba”, a colecção foi apresentada na Grande Avenida Colonial de Havana,
restaurada, pintada e fechada para o efeito aos cubanos. Aberta exclusivamente
para o Kaiser e a sua corte de convidados, fashionistas, celebridades,
estrelinhas, modelos e aspirantes a modelos. Por lá andavam Gisele Bundchen,
Vin Diesel, Tilda Swinton, Vanessa Paradis e demais has beens. Não é a tropa
habitual dos shows Chanel da China ou do Golfo Pérsico. Talvez alguém tenha sentido
um certo pudor.
Nas
lojas Chanel não se compra nada por menos de mil euros, a não ser um
porta-chaves. Uma malinha Chanel, topo de carreira para socialites e
rapariguinhas ambiciosas, custa no mínimo 2500 euros. A do tamanho de um cartão
de crédito. Um casaquinho custa dez mil euros. A meia dúzia de metros do Paseo
del Prado, os cubanos que ganham 10 a 25 dólares por mês e mal têm que comer
foram obrigados a dar uma espreitadela de longe, do esconso das favelas,
convenientemente removidos por barreiras policiadas para impedir o povo de
estragar a festa da opulência. Os velhos Cadillacs cor-de-rosa de Havana,
restos mortais dos anos 50, foram lustrados e usados como carro de passeio para
as meninas e meninos Chanel, armados de leques para afugentar o calor tropical.
Foi, parece, divertido. Comovente. A “Vogue” aprova estas manobras e foi a sua
directora, Anna Wintour, a Kaiserin, a primeira a usar a pobreza como
adereço de moda. Um fashion shot na África subsariana, com modelos
esguios ao lado de crianças de barriga inchada. Ou no subcontinente indiano com
mulheres a carregar água na cabeça ao lado de meninas com 30 quilos de peso
total.
O
show de cruzeiro da Chanel foi um êxito total. Os únicos cubanos
autorizados a vê-lo de perto foram os proprietários das casas com varandas no
Paseo del Prado, irremovíveis, e os amigos dos Castros. O neto de Fidel,
António Castro, é um desses aspirantes a modelo internacional. O avô não
apareceu.
A
Chanel é a segunda maior companhia de luxo do mundo, a seguir à Louis Vuitton. A
Louis Vuitton também gosta de usar paisagens de países pobres da Ásia ou da
África nas suas campanhas, esteticamente compostas e fotografadas, filtradas
por uma luz amável. A fotografia com a Angelina Jolie a abraçar uma mala era
muito bonita. Melhor do que a de Gorbatchov. Neste caso, o interesse do Kaiser
por Havana não deve ter a ver com o mercado local. Ao contrário dos sultões
do petróleo e dos chineses milionários, Havana só deve ter como putativos
compradores Chanel a descendência dos comunistas da nomenclatura. E a esses,
bem entendido, a marca deve ter oferecido qualquer coisinha. Uma atenção. Io capitalismo
é muito mais inteligente do que o comunismo.
As
contas Instagram, os blogues e os Facebooks dos convidados da Chanel
encheram-se de selfies maravilhosas, com gente saudável, maquilhagem
impecável e cabelo maleável, gente bem alimentada. Ao fundo, adereços da coisa,
uns escolhidos nativos, com menos bom aspecto e muita cor local. Muita autenticidade.
Cuba está na moda, realmente.
E
assim falece o comunismo. Este é o seu epitáfio. A caixinha de cartão do
McDonalds na estante do apartamento, ao lado dos Irmãos Karamazov. Que diria o
García Marquez ao seu amigo Fidel Castro deste show de cruzeiro? Ditadura por
ditadura, antes a da moda.
Se
a pornografia faz parte do nosso meio ambiente e tece a nossa indiferença,
entre a pornografia do bombardeamento do hospital em Alepo, que assassinou o
último pediatra da cidade e a pornografia da ditadura Chanel em Havana, escolho
a segunda. É inofensiva. E dá mais nas vistas que a primeira, de que ninguém
quer verdadeiramente saber.
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