terça-feira, 21 de junho de 2016

As alavancas do progresso: trabalhar muito, ganhar pouco




Confesso que eu própria me senti atingida com esta magnífica análise de António Barreto, sobre as acusações que nós próprios temos vindo fazendo a todos nós, e eu, que não sou das que alijam as responsabilidades sobre os outros, sem tomar a minha quota parte nas culpas gerais, confesso que muitas vezes me interrogo sobre se não tenho sido mau exemplo para os que me cercam, com esta febre de construção de vida na satisfação imediata dos desejos ou ambições, sem pensar no futuro e nas poupanças para as falhas dele. Daí, o ter feito parte dos que compraram a prestações, quer para satisfazer as ambições próprias quer para favorecer as de algum filho, nos começos da sua independência adulta, e isso significar que vivi acima dos rendimentos, pois cada vencimento era escrupulosamente subtraído das diversas prestações mensais aqui, aí, acolá. E foi assim que nunca fiz parte do grosso dos salvadores da nação, produzindo mais do que gastando, pois sempre gastei mais do que produzi, pelo menos em termos pecuniários, porque trabalho não me faltou na vida, quer oficial quer doméstico. Como eu, inconscientes do porvir, julgo que haverá muitos, atamancando a vida a alienar o seu futuro.
Mas não sei se é disso que se fala quando se analisa a situação económica do país. Porque os que compram a prestações, pagam, julgo que escrupulosamente, mensalmente as suas dívidas, e isso o país deveria ter feito, segundo se comprometeu aquando dos seus empréstimos, mas parece que tal não sucedeu. Houve um governo que deitou mãos à obra, no sentido do resgate dessa dívida, mas isso gerou protestos que acabaram em falcatruas eleitorais, por conveniência de muitos protestantes. As manobras dos novos governantes e seus apoiantes parecem indicar o desastre para breve, mas a arrogância alegre desses condottieri vai neutralizando os protestos, em falsas promessas de solução, e assim chegamos ao artigo seguinte - aliás, anterior – de João César das Neves – que mostra a fragilidade destes tempos que vivemos, na corda bamba dos contorcionismos, tais como os do ministro Centeno nas suas deduções brilhantes, referidas por António Barreto: segundo este, os trabalhadores portugueses, sendo os que mais trabalham e menos recebem, só falta uma boa Banca para os investimentos de novos investidores, baseados na vileza escrava como alavanca do progresso. E esta, hein!? Como exemplo de democracia, não há melhor.

Os culpados
António Barreto
DN,19/6/16
Em quinze anos, desde 2000, o crescimento económico português foi, para o período ou em média anual, zero! Nunca tal se viu, na evolução económica recente. Diante da brutalidade destes números, com a esquerda ou com a direita, as esperanças no desenvolvimento económico e social esfumaram-se. O que se esperava que a modernização tivesse trazido, o que se pensava que a integração europeia tivesse produzido, o que se imaginava que a nova economia e os novos empresários tivessem criado, tudo isso parece ter desaparecido! Aspira-se a um crescimento de 0,5 a 1%, como se fosse o El Dorado! Sonha-se com desemprego a 7% como se do paraíso se tratasse! Com o actual endividamento e o respectivo serviço, décadas serão necessárias para libertar recursos indispensáveis para o investimento. Até lá, vamos procurando culpados.
É normal. Compreende-se. Cada crise tem o seu culpado. Nunca é unânime, há sempre polémica, mas, em cada momento, um culpado sobrepõe-se aos outros. Houve um tempo em que era o fascismo. Pela pobreza, pelo analfabetismo, pela doença e pelo atraso, a culpa era do fascismo, da "ditadura terrorista dos monopólios", segundo a preciosa definição do Dr. A. Cunhal. Também se dizia que os culpados eram cem famílias.
Quando a liberdade parecia despontar, logo surgiram os que a queriam atacar e ficaram responsáveis por todos os desmandos: eram os comunistas, a extrema-esquerda e os militares do MFA. Com a União Soviética à frente. Foram eles os responsáveis pelos desastres da economia, pelo desemprego e pela inflação.
Encerrado esse ciclo, o culpado passou a ser o Estado. A burocracia. Os funcionários. As empresas públicas. E, através do Estado, a maçonaria. Era no Estado que floresciam a corrupção e a promiscuidade. O sector público nada fazia, nada produzia, só gastava.
Esgotada a ladainha do sector público, chegou a vez das elites. Elites económicas e políticas (nunca as artísticas nem as intelectuais, pois claro...) incapazes de dirigir e enriquecer o país. O povo trabalhava, os trabalhadores cumpriam, mas as elites gastavam ou não se interessavam. E não estavam à altura dos desafios e das necessidades.
Não faltou muito para que se encontrasse um novo grande culpado: o país inteiro, o povo, a população que viveu acima dos meios, muito acima das suas possibilidades. Viver a crédito, com dívidas, como se não houvesse filhos nem dia seguinte, foi a razão pela qual o país se afundou. Todos os Portugueses, com excepção de alguns iluminados, tiveram a sua quota-parte de culpa.
O contra-culpado não tardou: a direita! A direita dos ricos e dos banqueiros. A direita dos patrões. A direita do Partido Socialista, por um tempo. A direita do PSD e do CDS, claro. Com a direita vieram, evidentemente, a União Europeia e os alemães, culpados indesmentíveis da nossa pobreza!
Agora, de repente, temos um novo culpado. Disse o ministro das Finanças, Mário Centeno, que a economia não cresce por causa do sistema bancário! Segundo os jornais, ele entende que os trabalhadores portugueses são os que mais trabalham em toda a Europa, como são igualmente, de longe, os que menos ganham. Eis que constitui, diz o ministro, uma força a aproveitar para fomentar o investimento. Para dinamizar esta economia, feita pelos que mais trabalham e menos ganham, é necessária uma banca que funcione. É o que ele promete! Não tínhamos pensado nisso antes. Não nos lembrávamos dos mais de 30 mil milhões de crédito malparado, nem dos trapaceiros que destruiriam o que sobrava de reputação da banca portuguesa.

“ATÉ AGORA, TUDO BEM"
João César das Neves
DN, 9/6/16
Vivemos hoje em Portugal uma das situações mais terríveis e perturbadoras da humanidade: a lenta gestação de uma catástrofe. No futuro, quando olharem para o nosso tempo, as pessoas terão muita dificuldade em entender a apatia nacional que conduziu ao colapso de 2017-2018. Nessa altura muitos perguntarão como foi possível tal cegueira, ignorando os verdadeiros problemas, até se cair na ruína? Nós temos a resposta a este terrível enigma em directo e ao vivo.
Os sinais de crescente desequilíbrio são gritantes há muito: banca e economia descapitalizadas, crescimento empatado, orçamento deficitário. Se hoje tomássemos a situação a sério, a cura ainda seria longa, dolorosa e incerta. Em vez de tentar, o governo prefere fingir que está tudo bem, garantindo que a austeridade acabou. Enquanto houver quem acredite, os desequilíbrios crescentes podem ir passando ao lado das preocupações ministeriais. Aquilo que ocupa as atenções mediáticas são projectos espúrios, polémicas tolas, planos mirabolantes, enquanto a tragédia cresce. Como em tantas calamidades antigas, a ilusão irresponsável das autoridades é boa parte da desgraça. No meio desta situação sumamente delicada e dramaticamente decisiva apenas um dos partidos que apoia o governo parece saber aquilo que quer, e isso pouco tem que ver com o interesse nacional.
O Partido Socialista, que já foi um dos pilares centrais da democracia, transformou-se no catavento do regime. Já esteve no poder com o CDS em 1978, com o PSD em 1983-85 e agora é apoiado pelo PCP, BE, PEV e PAN. A única orientação que mantinha, ser um partido democrático e europeísta sem relações com forças anticapitalistas e anticomunitárias, foi precisamente aquilo que António Costa desprezou para chegar a primeiro-ministro. Agora é evidente que o partido está disposto a tudo para conseguir sugar as delícias do poder. Devido a esta toxicodependência encontra-se na abjecta posição de pagador de promessas e feitor do caderno de encargos que a esquerda lhe impôs.
O Bloco de Esquerda, na boa tradição do newspeak do Big Brother orwelliano, onde as palavras invertem o sentido, é precisamente o oposto de um bloco. Amálgama de orientações diferentes, ainda consegue ser mais desorientada que o PS. Todas essas linhas só se unem na aversão, quando se trata de criticar, condenar e ridicularizar. Não admira que tenham dificuldade em dar contributos positivos.
Desde Novembro, tendo influência no poder, não conseguem apresentar ideias relevantes. Para lá das questões do baixo-ventre, onde gostam de se especializar, destacaram-se apenas na proposta de mudar o nome do "cartão de cidadão" para "cartão de cidadania", o que certamente evitaria graves melindres.
O PCP é um fenómeno político especial, o único partido estalinista ocidental com alguma relevância. Este sucesso deve-se a uma linha muito simples, seguida com rigor e persistência. O partido conseguiu resistir à derrocada soviética e a todas as impressionantes mudanças sociais das últimas décadas porque se transformou numa força corporativa.
Através da Intersindical, o PCP serve para proteger os interesses de funcionários e serviços públicos. Ironia do destino, os comunistas viraram salazaristas. Mas assim são os únicos que nesta conjuntura sabem aquilo que querem, sendo quem está por detrás das únicas medidas marcantes do governo, da recompra da TAP às 35 horas do funcionalismo, passando pelo encerramento dos colégios privados. O PCP é o único claro vencedor da conjuntura.
Com cada uma das forças governamentais perdida no seu labirinto, a sociedade portuguesa está ao abandono, com os desequilíbrios a inchar. Tal como no governo de José Sócrates, a ilusão vai manter-se até ao colapso final. Só então vão cair os mitos e se tomarão as medidas desesperadas. Nessa altura as culpas da situação serão atribuídas à crise mundial, Europa, austeridade, exploração capitalista; a todos menos aos governantes que, quando ainda havia alguma coisa a fazer, ignoraram as dificuldades, envolvidos que estavam nas suas intrigas e projectos.
A 15 de Maio de 2006, escrevi neste jornal: «Portugal está como o homem que caiu do arranha-céus e quando, a meio da descida, um amigo da janela lhe pergunta como está, ele responde: "Até agora, tudo bem!"». Nestes dez anos o país já bateu no fundo, já se levantou e está de novo a cair. No Congresso do Partido Socialista, a mensagem de António Costa foi: "Até agora, tudo bem". Só que desta vez a queda será mais curta pois o fundo está mais perto.

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