«Não há nacionalismo soft”, informa Teresa de Sousa na sua
crónica de domingo passado, distribuindo os seus considerandos por três temas:
o primeiro, sobre o discurso de Mota Soares
no Parlamento, em paralelo de eloquência fútil com o de Paulo Portas; o
segundo, de contestação dos referendos como expressão “sui generis” de
democracia; o terceiro, a constatação de que os extremismos nacionalistas
vinculados à direita são de uma dimensão de violência em nada inferior aos dos
vinculados a outros extremismos onde o radicalismo e o fanatismo imperem.
Penso que os argumentos de
Teresa de Sousa são marcados pelo habitual bom senso, de uma reflexão que ela
pretende isenta de parcialidade ou de sofisma.
E todavia, ao pretender assumir
esse equilíbrio reflexivo, sinto quanto, numa fímbria do seu fato, os mesmos
sinais de dependência ideológica pró-esquerdina o mancham, com idênticos
sentimentos de repulsa que assaca a esses que descreve, sobretudo no 1º e 3º
temas. De facto, embora, como ela, eu condene os floreados vazios de muita da argumentação
peca de políticos, no jogo de acusações recíprocas, não posso deixar de sentir quanta
consciência defensora das normas e dos sentimentos pátrios preside aos discursos da direita, a
começar pelos de Paulo Portas, impecável
de composição binária, rebuscada e
altissonante, de facto, mas indiscutivelmente certeira de conceito ético e político.
O mesmo direi de Lobo Xavier, e alguns mais, mesmo Mota Soares, que me encanta
sempre ouvir, honestos e corajosos e bem educados, coisa inexistente nas
sacudidelas peixeirosas dos e das militantes da esquerda, que assim deseducam o
povo que doridamente defendem, ultimamente defendendo também os vitimados
migrantes, contra os que se assustam com as invasões afro-asiáticas engolindo
uma Europa que todos esses ditames democráticos vão lançando no abismo do
esmagamento previsível, para mais com o Islão implicado.
Quanto ao segundo tema admira
que Teresa de Sousa conteste os referendos, como parte do ideário democrático,
mas é um risco que se deve correr, mesmo que contenha parâmetros de modernidade
que possam ser destruídos por um povo não preparado para os entender, caso da homossexualidade ou dos
casamentos gay. Por isso se dispensaram os referendos, na altura, Teresa de
Sousa, bem o sabe.
Não
há nacionalismo soft
Público, 19/06/2016
1. Um dia destes, num táxi a caminho do jornal,
comecei a ouvir na rádio uma intervenção de Pedro Mota Soares no Parlamento que
me obrigou a pedir ao condutor que aumentasse o volume. O antigo ministro e
dirigente do CDS levou um dicionário consigo para o debate com o ministro da
Economia e estava a ler
os vários significados da palavra “tímido”. Nunca mais se
calava, maravilhado consigo próprio.
O seu objectivo era provar que nem António Costa
gostava de Manuel Caldeira Cabral, ao notar publicamente a sua timidez. Talvez
Mota Soares estivesse apenas a tentar substituir Paulo Portas com as suas
frases destinadas a fazer manchetes, sabendo de antemão que os jornalistas não
resistiriam a glosar longamente a sua “habilidade”, mesmo que numa matéria tão
séria como as medidas destinadas a estimular o tecido empresarial português.
Mota Soares foi longe de mais, mesmo num país onde o
debate político se resume cada vez mais a frases feitas e de efeito fácil na
maioria dos casos sem qualquer significado, alimentadas pelo imediatismo da
comunicação, as redes sociais (com o seu estilo tantas vezes alarve), e as
falsas ideias sobre o que é e como devia funcionar uma democracia liberal. O
mal é geral.
Em Portugal, talvez se sinta mais porque o jornalismo
propriamente dito começa a não ter meios suficientes para resistir ao populismo
e ir um pouco mais longe do que as gracinhas de um deputado. Toda a gente sabe
que as democracias liberais enfrentam hoje o desafio dessa comunicação imediata
e sem limites, que acaba por esgotar qualquer assunto em menos de 24 horas.
Mas, pior ainda do que isso, é a deturpação da própria
ideia de democracia liberal, até agora a melhor que se conseguiu inventar,
reduzindo-a ao alegado valor supremo da “democracia directa” ou
“participativa”, como se chamava antigamente (este mal sempre existiu mas, sem
a internet, nunca se conseguiu afirmar) e da transparência total, transformadas
em verdades absolutas. Um referendo é sempre mais “democrático” do que umas
eleições legislativas. Uma comissão parlamentar de inquérito é o cúmulo da
transparência. E quem disser o contrário, sobretudo se for um político, está a
cometar um atentado à democracia. Mesmo exagerando, este clima que ninguém
contesta, políticos ou jornalistas, com medo de ficarem mal vistos, cria mais
males do que bens e arrisca-se a dar um forte contributo para a vaga de
populismo que hoje varre as democracias europeias, como todos os dias
constatamos. Vá lá que ainda houve vozes ponderadas como a de Ferreira Leite e
Lobo Xavier (outras houve que não ouvi) para explicar que uma comissão de
inquérito à Caixa nesta altura não era propriamente uma boa ideia, como
qualquer plebeu consegue perceber rapidamente. Mas lá virão os defensores da
transparência dizer que são os políticos que querem esconder as suas
manigâncias. Não há clima mais propício ao populismo do que este. Em vez de
haver debate, agarramo-nos a chavões e reagimos em manada.
2. A
mania dos referendos como expoente máximo das democracias liberais também pode
ter efeitos nefastos, desvirtuando a responsabilidade de quem decide e
colocando as democracias à mercê de emoções muitas vezes irracionais, que
reflectem tudo menos aquilo que está à escolha dos eleitores. Há casos,
certamente poucos, em que o referendo até se pode justificar. Mas é com certeza
por alguma razão que a Constituição alemã os proíbe.
Colocar tratados internacionais (no caso europeu,
constitucionais) à mercê de um plebiscito nunca foi uma boa ideia. Correspondem
a opções de fundo sobre a inserção internacional das democracias que não podem
variar ao sabor do vento. E traduzem um amplo consenso político que lhes dá
legitimidade. O caso português é evidente.
A Europa só muito dificilmente teria sobrevivido se
todos os governos em todas as circunstâncias tivessem sujeitado os sucessivos
tratados a um referendo popular. Mesmo assim, já sobreviveu a muitos, mesmo que
de forma um tanto ou quanto enviesada. António Goucha Soares lembrava num
recente debate sobre o Brexit que, desde a sua fundação, a União já sobrevivera
a 50, sobre as coisas mais diversas mas, sobretudo, sobre os tratados.
Sabemos que a Constituição europeia foi morta e
enterrada num referendo em França (a Holanda rejeitou-a logo a seguir) e que,
de uma forma mais ou menos hipócrita, os líderes
europeus negociaram em seu lugar o Tratado de Lisboa, mais modesto,
pelo menos na forma, para justificar a sua ratificação parlamentar. Desde
Maastricht que a Irlanda e a Dinamarca (que não são a França, como agora está
na moda dizer) fazem sempre referendos aos tratados. E sempre dois: um
referendo para rejeitar e outro para aprovar, depois de negociarem alguma
questão sensível.
O risco é sempre grande até porque, como sabemos,
estes referendos acabam por se deixar aprisionar facilmente por uma qualquer
questão interna que pouco tem a ver com o que está em causa. O exemplo
britânico é apenas o mais recente.
O futuro do Reino Unido e da Europa está hoje refém de
uma única questão: a imigração. As motivações dos defensores do Brexit também
não são sempre as melhores. Boris Johnson, que há bem pouco tempo defendia a
mesma posição de Cameron, mudou de ideias porque encontrou uma oportunidade de
desalojar o actual primeiro-ministro. É difícil ouvi-lo dizer sem nos rirmos
que os pró-europeus estão ao serviço dos interesses da City e das
multinacionais. As
consequências serão tremendas para eles e para nós, caso de verifique uma saída.
Dizer que isto é o cúmulo da democracia é, de facto, uma enorme distorção,
sobretudo num país que se honra de dizer que a sua democracia, a mais velha do
mundo, reside em Westminster para tudo, menos para um referendo destinado a
apaziguar o Partido Conservador e a tentar calar Farage. Como se vê, saiu tudo
ao contrário a David Cameron.
3. Mas
há uma outra reflexão que a tragédia que se abateu sobre o Reino Unido me
trouxe ao espírito. E, essa sim, é verdadeiramente perigosa. Habituámo-nos a
falar dos partidos nacionalistas, populistas e xenófobos como se
estivéssemos em presença de uma versão soft desses três radicalismos que várias
vezes destruíram as sociedades europeias. Ora, se há uma coisa que a tragédia britânica de Jo Cox nos traz
à mente é que há ideologias que matam e que o
nacionalismo, o fanatismo, o racismo, em versão soft ou hard, trazem no seu ADN
o ódio ao outro e a vontade de destrui-lo.
Habituámo-nos a dizer que estes movimentos crescem em
toda a Europa porque, no fundo, vão ao encontro daquilo que as pessoas normais
sentem nas suas vidas e que as elites pura e simplesmente ignoram. Na maioria
dos casos, esses partidos têm tentado adoptar uma versão menos radical, porque
sabem que é a única forma de conseguirem instalar-se no sistema e ascender ao
poder. A interpretação benigna é que acabarão por adaptar-se à democracia. Pode
ser que sim. Mas também não é isso que a História nos conta.
O que vemos hoje é, mais uma vez, a falta de coragem
dos partidos democráticos para denunciar a natureza desse extremismo agressivo
que envenenou a primeira metade do século passado. Pelo contrário, o caminho
que muitos escolhem é a cedência, para não dizer a capitulação, perante os seus
ódios mais perversos. A sua capacidade de emergir do nada, vimo-la nos Balcãs.
O nacionalismo é a guerra, não se cansava de dizer Mitterrand. E a Europa é a única forma segura de garantir a paz, dizia
Kohl. E nós o que dizemos?
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