Quando era criancinha tive uma
rica boneca, mas depressa a estraguei, e a minha mãe por vezes referia a minha
resposta a uma interpelação sobre a sua destruição: “Foi por causa de
cangalhou-se”. Eu não achava grande graça à referência, que só mostrava um
desalinhamento bem distanciado dos procedimentos de elegância gestual da minha
irmã. Durante a guerra, vivemos cá, o meu pai cuidadoso com as nossas vidas, a
que os alemães poderiam dar o destino que eu dei à tal boneca, não nos deixando
tão cedo embarcar para o outro lado do mar, onde ele estava e onde a minha irmã
e eu nascêramos. Mas, na aldeia, as bonecas, que nós mesmas fazíamos, eram
feitas de trapos, as panelas de bugalhos, e por aí adiante. E duravam, as
bonecas, mesmo sem pernas nem braços, e apenas com cabeça, lenço e tronco,
frugais mas bem amadas.
Também o presidente Marcelo
parece feliz, menino contente com o brinquedo da sua afeição - o cargo da sua
governação - com o qual pensa, talvez, compor o “cangalhou-se” do boneco pátrio
que tem em mãos. E ei-lo que vai - Fluo, is, ere, fluxi, fluxum – fluindo,
correndo, gingando, viajando, falando, galhofando, qual o rio da marquesa de
Alorna, imagem da vida e da morte – o “cangalhou-se” de todos os fins.
João Miguel Tavares o explica
no seu artigo do Público de 31/5, comparando-o ao outro das “Conversas em
Família”, no seu zelo conselheiro, de uma fluência que a mim não me parece tão
poderosa assim, na familiaridade de uma loquacidade que se dirige a todas as
faixas etárias da população, que parece que deseja seduzir a todo o custo, aqui,
aí, ali, acolá.... A sensação final é de pesadelo, pela puerilidade, lembrando
o retomar da tristeza que a imagem do rio traz a uma “Alcipe” tão cedo apanhada
nas malhas do sofrimento:
Sozinha
no bosque
com meus pensamentos.
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.
Olhei para a Lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.
Naquela torrente
que vai despedida,
encontro, assustada,
a imagem da vida.
Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.
com meus pensamentos.
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.
Olhei para a Lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.
Naquela torrente
que vai despedida,
encontro, assustada,
a imagem da vida.
Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.
A
magistratura da fluência
31/05/2016
Ele está todos os dias na televisão a comentar a actualidade
política, e não há um pingo de hipérbole na expressão “todos os dias” – é mesmo
todos os dias. Marcelo está imparável no papel de comentador de todos os
portugueses. No início, pensou-se que o frenesim derivava da felicidade de se
ver em Belém e da dificuldade em segurar as rédeas do seu próprio entusiasmo,
mas três meses depois não podemos continuar a considerar que a omnipresença
e a omniloquência do presidente da República são uma moda passageira.
Habituemo-nos: vamos ter disto durante dez anos, pelo simples motivo de que não
se trata de um tique, mas de um estilo – Marcelo Rebelo de Sousa trocou
deliberadamente a magistratura de influência pela magistratura da fluência.
Nesse
sentido, Marcelo tem algo de Marcello. As Conversas em Família, que Marcello
Caetano iniciou meses após ter substituído Salazar e que duraram até às
vésperas do 25 de Abril, tinham como objectivo aproximar o regime dos
portugueses, explicando-lhes semanalmente – e professoralmente – as políticas
promovidas pelo Estado Novo e tentando apaziguar os “frequentes queixumes”
(palavras de Marcello) do povo, em particular no que à guerra colonial dizia
respeito. Em tempos de crise, Marcelo não está a fazer muito diferente, com as
suas aparições diárias a comentar a actualidade, embora o faça com superior
destreza mediática. Digamos que, tal como Eva foi criada a partir da
costela de Adão, o Presidente da República foi criado a partir de uma
costela do comentador Marcelo – manteve as principais características em
invólucro mais elegante, e com a intenção muito bíblica de vir a ser a
companhia perfeita para os portugueses.
Os
efeitos da substituição da magistratura de influência pela magistratura da
fluência estão ainda por apurar, mas uma coisa é certa: o papel do
Presidente da República no sistema político português vai mudar
significativamente. Já muitos alertaram para o facto de as funções
constitucionais do Presidente darem azo a múltiplas interpretações – a bem
dizer, a necessidade de garantir a “unidade do Estado” e o “regular
funcionamento das instituições democráticas”, inscrita no artigo 120 da
Constituição, dá para tudo. E se é certo que a forma como os poderes
presidenciais têm sido interpretados pelos sucessivos presidentes é essencialmente
minimalista, nada impede que Marcelo venha a ter uma interpretação
distinta. Aliás, já está a ter: a primeira intenção da magistratura da fluência
não é condicionar o rumo do governo (como acontecia com a magistratura de
influência), mas ensinar aos portugueses o que eles devem pensar. É um
“chega para cá” (do Presidente em relação aos portugueses) para um dia mais
tarde, se der jeito, transformar em “chega para lá” (dos portugueses em relação
ao governo).
Visto
por este prisma, não admira que Marcelo aprecie o actual governo de António
Costa – quanto menos sólido ele for, maior liberdade o Presidente tem. É
isso que Passos Coelho quer dizer quando afirma que Marcelo “irradia
felicidade”. Pudera: a vida dificilmente lhe poderia correr melhor. A sua
popularidade está nos píncaros. Tem como principal responsabilidade pastorear
uma solução governativa fragilizada. E tudo isso lhe dá tempo e espaço para
reformular o papel do Presidente da República no sistema político português.
Preparem-se: ou muito me engano, ou a presidencialização do regime já
começou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário