segunda-feira, 27 de junho de 2016

«Quando a cabeça não tem juízo»



Um país de um estardalhaço pequenino, que se iniciou há quarenta e dois anos e picos num estardalhaço grande, que o soterrou em penúrias de várias dimensões, mas avançando sempre, na diversidade dos pareceres, diversidade comezinha, desinteressante, sem arrebatamentos, a não ser para os que procediam às escuras, em conciliábulos de trapaça que ajudaram à sua destruição e que fazem erguer as vontades de agora, de os castigar. É certo que essas vontades se erguem presentemente, afundado o país em que elas prestimosamente colaboraram, gradualmente se aproveitando do miserabilismo que Alberto Gonçalves tão bem acentua, de redução planturosa e progressiva da pequenez espiritual acompanhando a pequenez física, e se erguem agora para se impor, mulherzinhas tão ambiciosas como os que elas condenam, cariátides sustentando o templo, apoiadas por um povo que as reverencia e nelas crê e provavelmente as vai escolher para governarem este «templo» absurdo, de governantes presentes que se divertem macaqueando gestos de pretensa afectividade ou de pretensa competência governativa, e uma população e respectivos exemplares literários ou auditivos de divulgação, a extasiar-se alvarmente, como já dantes faziam e agora ainda mais, que mete governantes  em torno da farsa futebolística para esconder a tragédia que nos está sobranceira.
O artigo de Alberto Gonçalves, de horário diurno explicitando facetas da nossa parolice, fez-me ir escutar as “Doce” – “Uma da manhã ei!” – de horário de diversão nocturna, bastante original e graciosa e bem menos depressiva. E  acabei em António Variações -“Quando a cabeça não tem juízo” – a pensar que, apesar de tão míseros, nos surgiram, por várias vezes, génios como esse, fogos fátuos a riscarem o céu da nossa pequenez.  E escutei outras canções originais, sobre glórias antigas que julgara mortas, como “Já fui um conquistador” – que na altura nos ajudou a elevar o moral e agora reescutamos como unguento deste sentimento de humilhação provocado  por tanta parlapatice irrisória e que inutilmente a indignação de Alberto Gonçalves  nos traz dominicalmente ao espírito. Para que mudemos. Mas somos assim.  Com “Variações” de mistura, é certo, ou Albertos Gonçalves, génios de uma sátira desaproveitada, pontinhos a brilhar no nosso horizonte de desesperança.

Mas dá para comparar sobre a diferença deste nosso inferior “Reino Lusitano”, com uma “nobre Espanha” que soube recuar, quando se apercebeu da parlapatice desses “Podemos” e companhia, os quais não se importariam de desfazer a velha unidade nacional. São bem gente de outra raça, de facto, esses da “nobre Espanha”. Pelo contrário, os do nosso “Podemos” feminino aí está, firme e saliente, desmascarando, finalmente, as suas intenções, no atrevimento vadio de ascensão ao poder, que lhes merece a burrice nacional em que tão bem se integram.
Quarta-Feira de Cinzas
Alberto Gonçalves
DN, 26/6/16
Manhã. Desde cedo - ou, para ser exacto, desde há semanas - que quase todos os canais televisivos estão sequestrados por analistas e repórteres desportivos. Os analistas arriscam teses alusivas à "basculação" e ao "4-4-2". Os repórteres exibem, aqui e em França, populares aos gritos. Pelas minhas contas, cerca de oitocentas mil pessoas já foram chamadas a prever quem vai ganhar logo e quem vai marcar os golos. Que eu visse, ninguém recusou responder.
Hora de almoço. O país discute apaixonadamente o microfone que o futebolista Ronaldo arrancou das mãos de um jornalista e depositou, com inegável mestria, no fundo de um lago.
Início da tarde. O ministro das Finanças dá uma conferência de imprensa para "explicar" (sem explicar nada) a "recapitalização" (o patrocínio à força) do "banco público" (a CGD, empresa de prestação de serviços a amigalhaços). O dr. Centeno diz que ainda é cedo para especificar verbas (cinco mil milhões) e que o investimento (a loucura) será recuperado a curto prazo (nunca). O único facto esclarecedor é o momento da conferência, enterrada sob o entulho futebolístico a fim de a golpada passar despercebida. Passou.
Cinco da tarde. A selecção da bola disputa um jogo. O país, incluindo os deputados na AR, desaparece de modo a seguir os acontecimentos.
Sete da tarde. À frente de logótipos publicitários, o Presidente da República surge nas televisões a comentar a partida: "Sofremos, mas foi bom e passámos frente a uma equipa que jogou pelo resultado, naquele que foi um dos jogos mais emocionantes e com muitos golos no Europeu. Depois, dei um grande abraço a Fernando Santos. Está feito. Os jogadores mostraram muita genica quando o resultado esteve 1-0, 2-1 e 3-2. Tivemos 25 minutos excepcionais e os jogadores conseguiram dar três e voltar o resultado." O PR não garante que possa assistir ao próximo jogo em França, questão que deixa multidões angustiadas. Há uma espécie de consenso tácito que obriga a respeitar a figura presidencial. Por isso, e para manter pelo menos o respeito que a generalidade da opinião publicada dedicou ao prof. Cavaco durante dez anos, limito-me a notar que o prof. Marcelo se presta a inúmeras figuras, e que nenhuma é presidencial.
Entretanto, nas "redes sociais" divulga-se uma fotografia em que o dr. Costa, o dr. César dos Açores e dois pechisbeques que os costumam acompanhar aparecem de mãos estendidas, desta vez não a pedir dinheiro aos contribuintes indígenas ou alemães, mas a indicar o resultado do jogo: 3-3, três dedinhos esticados em cada mão. E um sorriso destrambelhado nos rostos. Por muito que me esforce, sou incapaz de comentar a estranhíssima imagem.
Hora de jantar. Após celebrar um empate e ceder a nova investida dos milhares de repórteres literalmente à solta, o povo recolhe a casa. Amanhã é outro dia, no qual as sumidades que nos tutelam cairão com martelinhos na galhofa do São João do Porto. E, também cansado de sustentar parasitas e rematados malucos, o Reino Unido votará pela saída da União Europeia. Quando, num futuro não demasiado distante, se escrever a história do tempo em que Portugal se afundou numa inimaginável miséria, o 22 de Junho de 2016 não gozará de qualquer referência. Justamente: embora os festejos populares no meio de sucessivos anúncios da desgraça pareçam torná-lo assaz exemplar, é só um dia habitual no desvario colectivo a que descemos.
Noite. A propósito, alguém suspeitava que pudéssemos descer tanto? Alguém antecipou uma corte que se assemelha a um circo? Alguém adivinhou que os pacientes tomariam conta do manicómio? Alguém podia prever os últimos seis meses, em que perante uma Europa segura por pinças e rendida ao terrorismo, uma nação pequenina e débil entregou o seu destino material a partidos comunistas e a sua representação a artistas de variedades que tiram selfies, acorrem a flash interviews, comunicam pelo Twitter, espalham "afectos" e riem imenso? Alguém concebeu uma população que, a um passo certo do abismo, alterna a apatia com o patriotismo em chuteiras?
Não sei se nos fazem de estúpidos. Não sei se somos realmente estúpidos. Não sei se os "estadistas" que nos tocaram em sorte são um enorme azar ou a consequência lógica de uma sociedade irremediavelmente embrutecida. Não sei o que fizemos para merecer isto. Não sei o que não fazemos para merecer melhor. Sei que, se imaginássemos o pior dos cenários, não seria tão terrível como o presente. O presente é mau demais. E do futuro, possivelmente sem os malévolos burocratas de Bruxelas a limitarem os nossos delírios, perdão, a nossa "soberania", nem é bom falar
Se acreditasse em teorias da conspiração, acreditaria sermos cobaias numa experiência de engenharia social, com cientistas de bata branca a avaliar quais os níveis de primitivismo, incompetência, irresponsabilidade, alucinação, arrogância e zombaria que um país suporta? O pior é que, por esse Terceiro Mundo fora, a experiência já se realizou repetidamente. E, para infortúnio das cobaias, a conclusão foi sempre a mesma. Mas insisto: não acredito numa teoria assim. A prática é inacreditável quanto baste.

Nenhum comentário: