Falou-se da pasmaceira do panorama nacional, das horas
de futebol que nenhuma de nós via, do repetitivo dos comentários políticos
opondo pareceres partidários, e do cansativo em que se tornaram os programas
televisivos, que nos faziam refugiar-nos às vezes no TV Memória das
recuperações programáticas para distender os nervos. Era assim que eu via
religiosamente “O Santo”, e, agora que vai acabar, rezo para que reponham o “Columbo”
com o seu aspecto enxovalhado e brilhantismo dedutivo. Logo a minha irmã
lembrou uma crónica recente de Clara Ferreira Alves que foi buscar ao carro,
para nos ler, a rir, tal a graça verrinosa que encontrou no texto e nos leu de
seguida.
Eis a crónica, que contrapõe os ventos tempestuosos europeus
às brisas passageiras da nossa inconsciência, indiferente à borrasca,
inconsciência que Clara Ferreira Alves parece já nem desprezar tanto, como nas
suas crónicas do passado sobre a “gentinha” ignara, talvez no cansaço
relativizador da sua muita experiência pelo mundo de danação e crueldade e
desconcerto em que vivemos e que ela conhece “in vivo”. O certo é que o texto é
um modelo de sátira, no grotesco dos opostos, na penúria e banalidade das
nossas referências, no pitoresco do retrato social, na subjectividade da sua
graça endiabrada.
Mal, graças a Deus
Clara Ferreira Alves
E, 4/6/16
França
paralisa com as greves e tem nas ruas fogueiras a arder. Na Itália, vendem
papel higiénico com as caras de Merkel e Hollande. Na Grécia, a polícia
continua nas ruas. Em Espanha, não há Governo e esqueceram-se de Cervantes. Em
Inglaterra, uns querem a Inglaterra e outros querem o Reino Unido na União
Europeia. Na Polónia, vigora uma extrema-direita que deseja (de novo)
extraditar o polaco Polanski. Na Hungria, ouvem-se hinos e discursos da
emissora nacional. Na Noruega, um assassino de socialistas protesta contra o
hotel a que chama prisão. Na Suécia, na Holanda, na Dinamarca e na Áustria
florescem movimentos extremistas e xenófobos. Na Bélgica, continua a caça ao
terrorista. Nas praias europeias, tanques de guerra e soldados armados guardam
monumentos e estátuas, igrejas e catedrais, museus e esplanadas.
E
em Portugal? Bom, em Portugal, se lermos os jornais portugueses e ouvirmos a
conversa de café que é o ruído da internet, tudo corre mal o tempo todo. O povo
está farto, indigna-se nas redes sociais e organiza-se contra o cantor José
Cid. Eu disse José Cid? Exactamente, José Cid. À falta de melhor. A Europa está
a arder, mas no nosso cantinho o que se torna insuportável é a cantoria antiga
do homem e, claro, os escritos políticos do opus canónico de José Rodrigues dos
Santos. Eu disse José Rodrigues dos Santos? Exactamente, o grande teórico do
marxismo e do fascismo. Não custa concluir que andamos com falta de assunto. O
Presidente, que se caracteriza pelo seu optimismo irritante, protesta contra o
optimismo irritante do primeiro ministro. Pessimamente irritados, os
jornalistas, à míngua de assunto e comentário, protestam contra o optimismo
irritante daqueles dois, o Costa e o Marcelo. Imaginem os franceses a chamarem
ao Hollande o François, e ao Valls, o Manel. Ou em Espanha, ao falcão do PP, o
Mariano. Em Portugal somos todos muito próximos e nada nos irrita mais do que a
ausência de um óbvio fracasso. O fracasso é nossa gloríola e se não temos um
fracasso arranjamos um rapidamente. O Schäuble queria sanções e não lhas deram?
A culpa é dos portugueses, que são uns palermas que nem percebem quando devem
fracassar. O Marcelo deu-se bem com a Merkel? Porque é um criado às ordens e
sabe bem que somos um povo de criados da Europa. A Europa quer que sejamos criados dela? Está
na altura de sair da Europa. E por aí fora, um rosário de desgraças anunciadas.
Sem um fracasso não há protesto e sem protesto, indignação e uma mísera dose de
infelicidade, não há Portugal. Embora, citando o Presidente, a nossa sorte seja
termos nascido portugueses. Sorte? Desde D. João II isto foi sempre a descer,
sabemos todos. Se o progenitor do Velasquez não tivesse ido para Espanha teria
sido português e teria sido o azar dele. Tinha tido a mesma sorte dos painéis
de Nuno Gonçalves que ninguém conhece ou venera excepto meia dúzia de malucos,
decerto lunáticos nacionalistas. Entretanto, decerto minguadas de desgraça, as
esquerdas protestam contra a direita católica e retrógrada e as direitas
protestam contra a esquerda perdulária e progressista. Encontram-se todos no
telejornal e por lá dão-se todos muito bem. O centro protesta porque o centro
desapareceu, excepto para protestar contra o desaparecimento do centro. Se não
fossem os professores e os colégios nem assunto para uma “manif” tínhamos. As
do partido comunista e da função pública tornaram-se tão banais que ninguém
lhes liga nenhuma. O povo pergunta-se, quando cortam o trânsito, se será dia de
futebol.
Meus
amigos, porque não metemos a viola no saco e dizemos em coro, não há notícias excitantes?
O Relvas foi-se, o Sócrates foi-se, o Cavaco foi-se, e até o simpático Passos
se foi. Os vistos dourados? Arguidos. Os bancos falidos? Solvidos, mandem a
conta. A Europa? Unida , pelo menos em
países como Portugal. Como dizia o poeta, no meu país não acontece nada e, por
uma vez, ainda bem. Os aviões descarregam turistas e os refugiados sírios fogem
daqui. Eis o que qualquer país europeu carregado de migrantes e desalojados
designaria como paraíso. Eu mesma, à míngua de assunto, resolvi protestar
contra o facto de a Câmara pagar os acabamentos milionários da mesquita da
Mouraria em vez de me arranjar as ruas e o jardim perto de casa. Que querem? O
bairrismo substitui-me o nacionalismo e o internacionalismo estafados. Os
multiculturalistas querem devolver a Mouraria aos mouros porque acham que é
deles e eu quero devolver a relva e uma fonte decente a uma praça da cidade.
Pelo menos, não me indigno com o Cid e o dos Santos. Ou os tuk tuks. Ou
as décimas de défice. Quando esse dia chegar, juntar-me-ei aos fiéis da
autoflagelação que desejam ardentemente a bancarrota portuguesa e o regresso da
austeridade, do sacrifício e do sofrimento. Assim, meio pobretes e alegretes
numa Europa infeliz, não tem graça. Ah, e por uma vez admiro um Prémio Camões,
o Raduan Nassar. Não é irritante?
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