Com o antetítulo «Fraco
Consolo», a crónica de Pedro Mexia sobre a ficcionista e ensaísta inglesa
(filha de emigrantes judeus) Jenny Diski, pretende ser de homenagem sentida –
póstuma – a alguém que conheceu através dos seus ensaios que qualifica de “inteligentes,
honestos e sarcásticos”. Leio o historial que a Internet apresenta sobre a
escritora, “enfant terrible” dos anos sessenta, cujo ensaio “The Sixties” Pedro Mexia analisa de forma magistral.
Ensaio sobre essa juventude febril e contestatária dos anos sessenta que
revolucionou o mundo do sexo, das liberdades e direitos, das drogas com conceitos
orientais disfarçadores, “como tentativa civilizacional de prolongar a vida”,
que, aos sessenta anos, se encarou com mais rigor e objectividade, no falhanço
dessas ilusões, que em nada mudaram a “bête humaine” de tradições literárias
anteriores, talvez mais justiceiras ainda e mais comedidas, no primitivismo dos
instintos básicos, do que essas outras do século XX da incontinência, da
perversão, da provocação sem pudor, em espalhafatos de afirmação utópica,
apesar da justeza de alguns conceitos. (O certo é que, perdidos os valores espirituais
que ao longo dos tempos sublinharam os princípios da ética e da razão humanas, assistimos
a uma revolução, sim, no sentido de uma desenfreada valorização pessoal na conquista
do poder económico, quantas vezes fraudulento, por esses mesmos da contestação
e da conquista sem esforço, com o espezinhamento das normas e dos que não têm
igual pedalada evolutiva, que engloba tanto os que pretendem vencer por mérito
próprio como os que desistiram de acreditar, por formas várias de actuação, que
inclui o próprio mergulho na droga). Mas é pessoal, este meu discurso, condenatório
na sua revivescência, como já o fora na sua vivência preocupada, em função de
um cada vez maior desequilíbrio e insegurança das gerações seguintes, intuitos
condenatórios que não figuram na intelectualidade do rigor analítico de Pedro
Mexia, que transcrevo com muito prazer:
Os sessenta aos sessenta
Pedro
Mexia
E, 21.05.2016
Lia
com frequência os ensaios inteligentes, honestos e sarcásticos de Jenny Diski
(1947-2016) na “London Review of Books”. Quando soube a notícia da sua morte
tirei da estante um livrinho que é a cara dela: “The Sixties” (2009), memórias
pessoais de uma década. Tinha a certeza de que não seria um manual de
mistificações e nostalgias, nem o “mea culpa” de uma arrependida, mas antes uma
análise sincera e desarmante de uma experiência, de um tempo: “Vivi em
Londres nessa época, lamentando os Beats, comprando roupa, indo ao cinema,
desistindo da escola, lendo, consumindo drogas, passando umas temporadas em
hospitais psiquiátricos, manifestando-me, fazendo sexo, dando aulas».
Para Diski, os sixties tornaram-se “uma ideia”, ou
sempre foram sobretudo uma ideia. Entendemos as épocas passadas de acordo com
os testemunhos, os grandes eventos, uma certa narrativa que empresta coerência
ao caos dos factos; mas os factos só contam metade da história. Diski prefere
ater-se a uma grande “ideia”,
a ideia de que a década de sessenta consistiu numa tentativa civilizacional de
prolongar indefinidamente a juventude; havia uma espécie de complexo de Peter
Pan que conduzia à recusa de tudo o que fosse identificado com a maturidade, o
conformismo, a reverência, o bom-senso.
Os jovens da década de sessenta queriam o hedonismo e
a liberdade. E por isso defenderam como ponto de partida uma reconfiguração
mental da realidade quotidiana através das drogas, as quais, protesta Diski,
não eram uma aventura lúdica mas uma investigação filosófica. O guru Timothy
Leary explicou: «A causa dos conflitos sociais é geralmente neurológica. A
cura é bioquímica.” Segundo a escritora, as drogas representavam uma
revolução mental, uma tentativa de abrir as portas da percepção a novas
ligações e a novas dimensões, com laivos de espiritualidade oriental ou
pseudo-oriental. As drogas funcionavam como uma experiência interior (como em
Huxley). E a “expansão da mente” concretizava-se na excelente música que
então se fazia, muita da qual “psicadélica”, dos Doors aos Jefferson Airplane e
aos Love. Quanto ao sexo, Diski é bem mais céptica. Certamente que os
anos sessenta fizeram muito pela autonomia
das mulheres ou pela aceitação da homossexualidade; mas a “libertação,
na sua forma sexual, era uma nova forma de moralidade imposta”, escreve a
ensaísta, tão estrita e tão repressiva como aquela que nós acusávamos os
nossos pais de patrocinar”. O sexo é que era a verdadeira experiência
lúdica: a “permissividade” consistia na absoluta naturalidade do desejo sexual, sem
pudores nem entraves, mesmo nos casos em que a vontade não fosse muita. Diski comenta, e
isto traduzido não tem tanta graça: «It was difficult not to fuck someone who
wanted to fuck you without feeling you were being very rude”.
O aspecto mais interessante do ensaio consiste aliás
numa colecção de paradoxos. O paradoxo do colectivo por exemplo. A
vivência típica da década atingiu sobretudo as pessoas de um meio burguês e
urbano, geralmente com certo desafogo económico, e nesse sentido não foi uma
experiência representativa: «Nem toda a gente em França estava a fomentar a
revolução em 1789; só uma pequena parte da nova geração dos Anos Vinte pertencia
aos “Bright Young Things”, e assim por diante. Nos concertos e nas
manifestações, o sentimento colectivo prevalecia, mas as experiências de vida “comunais”
falharam quase sempre, porque nunca foram ultrapassadas as noções de
propriedade, privacidade, ciúme, sejam essas noções naturais ou não.
O segundo paradoxo é a permissividade. Por um lado, os fundamentos legais da sociedade
permissiva foram instituídos por um ministro mainstream de meia idade, o
liberal de esquerda Roy Jenkins,
que de 1965 a 1967 mudou diversas leis em matérias de costumes; por outro
lado, o culto do indivíduo dos sixties transformou-se, uns anos depois, no
individualismo radical do thatcherismo, de longe o legado que Diski considera
mais nefasto.
O terceiro paradoxo tem a ver com a glorificação da
juventude, quando a juventude é por natureza fugaz: “ser jovem é uma fase
por que os velhos passam”. Nos anos 60, lutou-se por uma “civilização de
jovens”, mas não se imaginou esses jovens com sessenta anos.
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