Respigo num Público
já antigo mais um artigo sobre o sacramental AO da nossa impotência “apátrida”,
que é como sinto que são tratados todos os que sentem quanto os “barões
assinalados” com as “armas” que venceram Neptuno e Marte,
figuras de retórica para embelezamento de um Canto clássico, deram lugar
preferencial a um Mercúrio finório, deus mensageiro e ardiloso, do comércio e
dos ladrões e outras trapaças que nunca chegaram a passar de moda, ainda que para
isso, cá entre nós, que somos toscos, fosse necessário deturpar arbitrariamente
a própria língua, coisa que não lembraria ao diabo, mas que lembrou aos nossos
mercúrios de trazer por casa.
Não aquenta nem arrefenta, o
artigo de Guilherme Valente, que os nossos mercúrios de trazer por casa são
pecos no compreender, ao contrário do outro, que era vivo e ágil. Mas fica registado
no meu blog, como de mais um “barão assinalado” pela sua coragem. E
inteligência, naturalmente, embora apátrida na sua impotência transformadora da pequice.
A negligência na língua e na
escrita é princípio da decadência dum país
Guilherme Valente
Público, 13/05/2016
A escrita não é uma
arbitrariedade. Tem uma lógica, uma história, uma função, valor e importância
inestimáveis.
"É
sempre um défice de pátria que atiça o nacionalismo, nunca um excesso"
Pascal Bruckner
Pascal Bruckner
1. A escrita não é “uma mera
representação do idioma” (1). Nem é uma arbitrariedade. Tem uma
lógica, uma história, uma função, valor e importância inestimáveis.
A
gramática, a sua nomenclatura e terminologia também não podem ser o tricot com
que os nossos linguistas alteraram recorrentemente os programas de Português.
Talvez para fazerem passar por avanços de ciência o que na realidade não o
é.
Mas
a gramática e a sua nomenclatura têm também uma lógica e uma história.
Do
mesmo modo que os Jerónimos ou a Batalha também não são a construção de lego
com que uma criança possa brincar, ou mamarrachos que se possam alterar ou
destruir à vontade. Nem a obra Os Maias pode ser trocada por uma versão facilitista,
idiota dela. De facilitismo em facilitismo, de simplificação em simplificação,
é inteligência que se atrofia e que matam.
A
língua, organismo vivo, enriquecível pela interacção inevitável das culturas,
não deixa de ser por isso a herança matricial que é, que tem de ser cuidada,
ensinada e amada - escola é, sempre, a palavra-chave.
Por
isso, a escrita, que reflecte essa natureza da língua, pode e deve ser
actualizada. Mas no seu tempo e com critério, tocando-se nela com
precisão cirúrgica, Porque tal sem ferir a sua lógica, sem quebrar o fio
agregador da sua origem e da sua história. Como todos os outros elementos
que referi, tal como a História, é constitutiva e constituinte duma identidade
humana, que é, na sua universalidade, singular. Porque tudo o que somos,
pensamos ou fazemos é resultado duma cultura, isto é, "duma compreensão do
mundo historicamente adquirida". Que devemos assumir e de nos devemos
orgulhar.
2. Se tivermos presentes os inúmeros
exemplos da aberração, mais do que documentada, do Acordo Ortográfico, estas
rápidas considerações que fiz deviam bastar para se ter consciência da
monstruosidade que foi fabricada, decidida e tão célere e surdamente imposta.
Tão
célere e surdamente que se impõe a pergunta metódica que deve ser colocada
quando, entre nós, algo é decidido e imposto tão célere e surdamente: que
interesses beneficiou este AO?
Devo
declarar que muito boa gente lutou por este AO por muito boas razões, sobretudo
de política cultural e mesmo económica, designadamente as relações, de vária
natureza, com o Brasil, e a valorização da língua portuguesa na comunidade
internacional. Na minha opinião, contudo, que os factos confirmam, não
era correcta a avaliação que fizeram. E essas bem-intencionadas razões não
deviam ter ignorado o desiderato que acima formulei.
3. Na verdade, depois de tudo o que
recorrentemente foi sendo imposto na Educação, este AO era, e continua a ser na
escola, a bomba atómica que faltava. Que ainda faltava, depois da
mediocrização dos programas de Português, da liquidação da História e dos seus
protagonistas, da ignorância das datas, do desaparecimento da Geografia, da
estigmatização da literatura, da desvalorização do conhecimento substantivo e
da cultura (colocaram a palavra entre aspas e estigmatizaram-na chamando-lhe
"erudita"), depois da dissolução ou relativização de tudo o que nos
torna Portugueses e, sem contradição, cidadãos do mundo.
Cidadãos
do mundo, porque amar a nossa Terra não é incompatível, bem pelo contrário, com
o sonho empolgante de podermos contribuir, com a oferta do que conseguirmos
ser, da nossa diferença, para o progresso de todas as nações,
Argumentou
Henrique Monteiro, no Expresso, que muitos milhares de miúdos já aprenderam as
novas regras. Diz isso porque não tem reparado como escrevem hoje os alunos
e... muitos professores. E está a esquecer os milhões de portugueses que não as
aprenderam e nunca aprenderão. E se muitos miúdos as aprenderam, estão na idade
perfeita para aprenderem o que deve ser ensinado.
Um
dos danos mais profundos e irreversíveis deste AO, tal como acontecera com as
sucessivas alterações absolutamente gratuitas na nomenclatura e na terminologia
da gramática, foi separar os pais dos filhos, foi impedir que os apoiassem no
estudo do Português. Como me aconteceu a mim há trinta e tal anos.
4. Não há Nação sem língua, sem
escrita, sem escola. Sem memória, sem História, sem afectos. Que só o
conhecimento pode gerar. Sem herança imaterial e material, que se ensine e se
aprenda a reconhecer, a compreender, a valorizar criticamente, a continuar. A
amar.
Não
se “nasce” português, ou francês, ou chinês, qualquer um de nós, ser biológico,
poderia ter nascido num lugar qualquer. E seria desse lugar. É-se
verdadeiramente português, mais português, por se querer ser Português.
Wenceslau de Moraes, por exemplo, escolheu ser japonês, e foi tão japonês, mais
japonês, seguramente, do que muitos japoneses. Portugueses de Macau, como eu os
conheci, mesmo sem nunca terem vindo a Portugal, são mais portugueses do que
inúmeros cidadãos portugueses que aqui nasceram, cujos antepassados viveram
desde sempre em Portugal.
Apagamento
da História que foi fazendo com que as gerações que começam hoje a chegar
aos 50 anos vivam, na generalidade, sem dimensão do passado, por isso sem
sentimento do futuro. Num eterno presente em que só o egoísmo pode dominar.
5. Atente-se na língua e na escrita
que cada vez mais frequentemente se ouve e se lê, em que tantas vezes se diz e
se escreve exactamente o contrário do que se queria transmitir, na comunicação
social ou nas universidades.
"A
minha pátria é a língua portuguesa", escreveu Pessoa. Neste sentido parece
estarmos a tornar-nos rapidamente apátridas.
A
negligência e a arbitrariedade com que se trata a língua e a escrita são o
primeiro sinal da decadência de uma cultura e de uma nação.
Mas
tudo depende da inteligência e da vontade dos homens. Por isso estou certo que
Portugal será esse País por tantos de tantas gerações sonhado. Por isso combati
persistentemente contra as ideias e os actos que livre e convictamente
considerei adiarem esse desígnio, bem ao alcance dos Portugueses, não tenho
dúvidas. Para que também nós, Portugueses, participemos de novo no destino de
conhecimento e solidariedade que tem de ser o destino do Homem.
(1)
Henrique Monteiro, Expresso, 7/5/16.
P.S.: Gosto muito de me ver
representado pelo actual PR. O que não impede, naturalmente, que não subscreva
a sua decisão de só intervir na questão do AO se este não obtiver a aprovação
dos países que o não aprovaram.
Editor
da Gradiva
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