Um dia, Hillary Clinton será presidente
dos EU, pela primeira vez uma mulher ocupará esse cargo, tal como um presidente
negro, Obama, o ocupou pela primeira vez. Parece que bem. E o mundo continuou,
e essas datas ficam registadas na História dos Estados Unidos e do Mundo.
Mulheres que governaram – e governam
- os seus países, sempre as houve, Cleópatra foi das primeiras bem conhecidas,
Golda Meir deu que falar, e Margaret Thatcher foi outra que tal, além das muitas
mais que deixaram nome, entre as quais Isabel a Católica, do descobrimento da América e do Tratado de
Tordesilhas, e a nossa Rainha Santa do milagre das rosas, das nossas histórias
de entretenimento que mais ninguém conhece.
E o tempo se escoará, e
Hillary deixará o seu nome ligado ao seu país enorme, país que sempre
protagonizou acções de importância no mundo, por simpatia humanitária, talvez,
por interesse próprio também. Veremos o que fará Hillary, num mundo cada vez
mais de atropelo, em que as monstruosidades se sucedem, exigindo retaliação. Ou
outras alternativas, conforme os pareceres ou as sentenças das muitas cabeças.
Hillary tem o estofo das
mulheres guerreiras, Teresa de Sousa traça dela um precioso retrato, que
coincide com a imagem daquela, nesta como noutras refregas anteriores, em que
sempre revelou força moral e fair play. O
tempo o dirá. E passará… como o rio, já o disse Heraclito e seus seguidores
sobre a tragédia humana.
Entretanto dela ficará a
crónica de Teresa de Sousa, outra mulher com cabeça segura e convicção forte:
Hillary
não pode voltar a chorar
Público, 22/5/16
1.
Há oito anos, quando acabava de vencer por uma margem mínima as primárias de
New Hampshire, Hillary Clinton, então candidata à Casa Branca, deixou cair
algumas lágrimas perante uma pergunta perfeitamente ingénua de uma jornalista.
Como é que consegue manter-se sempre assim, penteada, bem arranjada, serena? O
que é que Hillary poderia dizer? Que era o que as pessoas esperavam dela, pelo
facto de ser uma mulher? Os estrategos da sua campanha ficaram preocupados,
porque não é suposto que um comandante em chefe chore. Talvez nesse momento,
além da sua condição de mulher, lhe tenha passado pela cabeça a história da sua
vida: nada nunca lhe foi oferecido de mão beijada. Nesse dia muito frio
de Janeiro, já tinha intuído que, ao contrário de todas as expectativas, a sua
caminhada em direcção à Convenção Democrata seria afinal um caminho cheio de
obstáculos. O fenómeno Obama, que pouca gente vira chegar, acabava de se
revelar em toda a sua dimensão. Dois meses antes, no caucus de Iowa, um
Estado maioritariamente branco, conservador e gelado, Obama ficou em primeiro
lugar. Hillary apresentava-se como a candidata da transição entre os
desastres de Bush e o regresso à normalidade. Não percebeu que, naquela
altura, os americanos queriam mesmo mudar. Achou que a sua candidatura
seria invencível e que a longa história da parceria “Bill e Hillary” seria
suficiente para um último capítulo de “Hillary e Bill”. Apostou na
“experiência” e na “competência” e no vasto conhecimento do mundo que o seu
lugar de primeira-dama lhe reservara. Jonathan Alter escreveu nessa altura
na Newsweek que as eleições americanas se jogam sempre entre o medo e a
esperança. Ela apostou no medo. Bill tinha apostado na esperança. Tal
como Obama. A história de ambos foi sempre assim. Para Bill tudo parecia
ser fácil. Para ela, tudo tinha de ser conseguido à custa de um enorme esforço.
Quando chegava da escola com uma caderneta só com notas A, ouvia o pai
dizer-lhe que a escola devia ser muito pouco exigente. Abdicou de muita coisa
para levar Bill ao Governo do Arkansas e, depois, à Casa Branca. O antigo
Presidente costumava dizer que os eleitores “compravam dois pelo preço de um”.
Mas não abdicou do seu estatuto de mulher independente numa parceria entre
iguais. Enfrentou com uma serenidade sobre-humana os escândalos do marido.
Alguns verdadeiros e outros falsos, alimentados por uma horda de republicanos
que odiavam a geração que representavam, contra guerra do Vietname, pela
libertação da mulher, pela igualdade entre sexos.
2.
Em 2008, depois dos dois mandatos de Bush que terminaram com uma brutal crise
financeira e com a destruição da imagem da América no mundo, pensou que chegara
finalmente o momento de conseguir aquilo que merecia. Já sabemos o resto da
história. Ninguém conseguiu resistir a Obama. Ela própria foi,
durante o seu primeiro mandato, uma fiel e competente secretária de Estado,
ajudando a moldar uma nova política externa, muito mais assente na cooperação
com os aliados e no conceito que ela própria criou de smart power. Foi
ela que executou a viragem para a Ásia, que reabriu as negociações com Moscovo,
que restaurou as relações de familiaridade com a Europa. Algumas vezes,
as suas posições divergiram das do Presidente, mas isso nunca foi um problema.
Se Obama devolveu à América o seu lado mais luminoso, Hillary completou o
trabalho no terreno. Na China, a sua firmeza foi sempre servida com “elegância
e sem provocações desnecessárias”, diz Michael O’Hanelon, da Brookings.
Contrariou o Presidente talvez pela única vez quando, numa visita a Pequim,
conseguiu vencer uma luta difícil pela libertação de um dissidente cego, que
pretendia levar com ela. “Alguns dos conselheiros do Presidente preocupavam-se
com o facto de estar a destruir a relação com a China. Mas ninguém estava
preparado para ficar responsável por o deixar entregue ao seu destino",
escreve no seu livro de memórias Hard Choices.
3.
Em 2014, decidiu tentar a sua última oportunidade. Quarenta anos de exposição
pública e de actividade política deixaram-lhe profundas cicatrizes, alimentando
a desconfiança de muitos eleitores americanos, que a acham demasiado arrogante
e parte da “realeza política” que domina Washington e da qual estão fartos.
Mesmo os seus apoiantes acusam-na de não conseguir dar emoção e calor à sua
campanha. Não possui o carisma de Obama, nem o de Bill. Quis reconstruir a sua
imagem política com uma campanha de maior proximidade dos eleitores,
oferecendo-lhes o protagonismo. O vídeo de três minutos com que iniciou a
corrida resume o seu programa: “Os heróis são as famílias de todas as cores e
feitio.” A classe média lutadora que ela quer compensar. Mas, mais
uma vez, a história foi-lhe adversa, exigindo-lhe um trabalho insano até chegar
à convenção. Ninguém alguma vez admitiu que Bernie Sanders, que quer fazer
uma “revolução” e ousa declarar-se socialista, chegaria onde chegou, numa
constante guerra de desgaste contra a sua candidatura. Tal como ninguém
conseguiu prever que Donald Trump se preparava para vencer as primárias dos
republicanos. Trump começou por ser um entretenimento, mesmo que desagradável.
Jeb Bush, igualmente da realeza política, seria o candidato moderado, com
algumas cedências ao Tea Party, como se o movimento populista não dominasse já
o partido. Nem ela nem ninguém anteciparam o que aconteceu nos meses
seguintes. Há enormes diferenças entre Sanders e Trump, mas também muito em
comum: o proteccionismo contra a globalização; o desinvestimento na política externa
e nas alianças em que ela assenta, da Ásia à Europa, uma guerra desenfreada ao
sistema de Washington. Esta América sempre existiu, mas nunca foi
suficientemente forte (pelo menos desde a II Guerra) para determinar a sua
relação com o mundo. Hoje, parece ameaçadora. Mesmo que estas sejam as eleições
do medo, o medo pode acabar por ajudar Hillary.
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