O significado das palavras muitos o deram e continuam,
o excesso destas, na sua sonoridade oral, convidando ao silêncio. O próprio
Hamlet o referiu, a sua morte finalizando os conflitos, tudo apagando num
silêncio sem retorno. A bonita canção “Silêncio e tanta gente” de Maria
Guinot traduz esse contraste entre o vazio dos ruídos exteriores ao mundo
íntimo e o mundo íntimo de um ego que se define límpido, avassalador, superior
ao bruaá da turba. O bruaá de «ceux qui pieusement... / Ceux qui copieusement... / Ceux qui
tricolorent / Ceux qui inaugurent / Ceux qui croient / Ceux qui croient croire
/ Ceux qui croa-croa… » do extraordinário poema « Dîner de Têtes »
de Jacques Prévert, e o contraste com,
do mesmo Prévert, o silêncio apático da aceitação sem questionação nem revolta,
perante a injustiça do mundo e a atrocidade da guerra:
Familiale
La mère fait du tricot
Le fils fait la guerre
Elle trouve ça tout naturel la mère
Et le père qu'est-ce qu'il fait le père ?
Il fait des affaires
Sa femme fait du tricot
Son fils la guerre
Lui des affaires
Il trouve ça tout naturel le père
Et le fils et le fils
Qu'est-ce qu'il trouve le fils ?
Il ne trouve rien absolument rien le fils
Le fils sa mère fait du tricot son père fait des affaires lui la guerre
Quand il aura fini la guerre
Il fera des affaires avec son père
La guerre continue la mère continue elle tricote
Le père continue il fait des affaires
Le fils est tué il ne continue plus
Le père et la mère vont au cimetière
Ils trouvent ça naturel le père et la mère
La vie continue la vie avec le tricot la guerre les affaires
Les affaires la guerre le tricot la guerre
Les affaires les affaires et les affaires
La vie avec le cimetière.
Le fils fait la guerre
Elle trouve ça tout naturel la mère
Et le père qu'est-ce qu'il fait le père ?
Il fait des affaires
Sa femme fait du tricot
Son fils la guerre
Lui des affaires
Il trouve ça tout naturel le père
Et le fils et le fils
Qu'est-ce qu'il trouve le fils ?
Il ne trouve rien absolument rien le fils
Le fils sa mère fait du tricot son père fait des affaires lui la guerre
Quand il aura fini la guerre
Il fera des affaires avec son père
La guerre continue la mère continue elle tricote
Le père continue il fait des affaires
Le fils est tué il ne continue plus
Le père et la mère vont au cimetière
Ils trouvent ça naturel le père et la mère
La vie continue la vie avec le tricot la guerre les affaires
Les affaires la guerre le tricot la guerre
Les affaires les affaires et les affaires
La vie avec le cimetière.
J.
PRÉVERT, Paroles, 1946
Mas este quadro de obscenidade, pela mudez passiva, parece não existir
mais no nosso mundo, de ruído impondo-se, no riso desvairado, nas cóleras
revoltadas, nos discursos exaltados, ou moderados do apelo à simpatia, mundo
atrevido, exigente, questionador, sem reflexão que valha, e quanto mais ditador
e indiscreto, mais vitorioso na opinião geral.
Não, não se trata das “palavras” do poema de Eugénio
de Andrade, na sofisticação do discurso poético para o nosso recolhimento espiritual:
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de
memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos, as
águas estremecem.
Desamparadas,
inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram
ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
As palavras a que se refere António Bagão Félix na sua
bela crónica de meditação, são as outras, dos sentimentos grosseiros, manifestas
de tão diversas formas e que começam, a meu ver, nas expressões repenicadas das
mulheres às criancinhas, muitas vezes de berço ainda, a iniciar a sua
compreensão do mundo, e a quem se adula em muitos requebros ruidosos, numa
incontinência verbal, falsamente afectiva, que logo as deseduca em mimalhice em
função de uma impertinência futura.
Mas, na questão do silêncio, Bagão Félix assinala magistralmente:
“É que o silêncio incomoda a mente de quem só vê o seu
contrário como vantajoso, numa abordagem cretinamente utilitarista. O silêncio
não é a moda. O que hoje mais parece contar não é a magnanimidade do silêncio
respeitado, mas antes a sua ostensiva violação, mesmo que através da fronteira
acústica de sons ocos, de interjeições vazias e de palavras perdidas no vazio
de ideias.”
Por outro lado, mesmo apesar dos ruídos avassalantes, o que seria de nós se nos
faltasse a voz dos seres que amamos, e mesmo a daqueles que nos trazem
querelas, que seria se a Terra fosse confinada a uma solidão de isolamento sem o colorido das diferenças, no vestuário
ou nos comportamentos?
Mas é sem dúvida uma excelente página esta de Bagão Félix, de homenagem à filha, pelo seu aniversário – no desbravar dos
argumentos e na contenção simultânea das razões nos seus opostos – o silêncio
falando mais expressivamente do que o ruído desordeiro ou exibicionista e oco
das palavras em excesso.
O certo é que a discrição não se impõe, hoje, e o vencedor é o que extravasa o que “lhe vai no âmago”. E é assim que chegamos, no
nosso país sem mistério (fora, é certo, o fabricado na sombra, que é, também, ausência
de luz), chegamos a Tino de Rans, um vencedor pela palavra, ainda que de
balbucio.
17
de Maio de 2016
Silêncio
entre silêncios (e um aniversário)
Frequentemente
acontece guardar-se um minuto de silêncio pela morte de alguém com algum
significado ou representação. Nos recintos desportivos, essa forma de homenagem
exprime-se, em geral, perante muitos espectadores. Sobretudo nos estádios de
futebol, o silêncio é, não raro, substituído pelo ruído de muita gente que se
está nas tintas para o momento de respeito, como também por palmas e palminhas
miméticas para quem 60 segundos de silêncio são quase uma eternidade impossível
de cumprir. Como isto é exasperante diante de quem não é capaz de ter a
sensibilidade e o respeito de guardar silêncio, como se um minuto cronológico
fosse uma “prisão perpétua”!
Ainda
recentemente, assim foi na homenagem a um ex-árbitro internacional falecido,
Paulo Paraty de 53 anos. Num dos estádios – não importa qual, pois o que
aconteceu não é exclusivo deste ou daquele clube – não tivemos silêncio, não
tivemos palmas, mas antes assobios. Tratava-se de um árbitro, logo inimigo
mesmo na morte. Onde chega a ignomínia moral!
Este
é um dos lados mais soezes e indigentes do horror ao silêncio. O horror ao
vácuo do som (mesmo que não o possamos traduzir por silêncio, coisa bem distinta)
vive todos os dias entre nós. É que o silêncio incomoda a mente de quem só vê o
seu contrário como vantajoso, numa abordagem cretinamente utilitarista. O
silêncio não é a moda. O que hoje mais parece contar não é a magnanimidade
do silêncio respeitado, mas antes a sua ostensiva violação, mesmo que através
da fronteira acústica de sons ocos, de interjeições vazias e de palavras
perdidas no vazio de ideias.
O
silêncio não é apenas a ausência do som, como a sombra não se esgota no recato
da luz. O silêncio existe para além da não existência do seu oposto. Não foi o
silêncio que veio perturbar a necessidade do ruído, mas o inverso.
Por isso, este é dependente daquele. E, afinal, o que mais conta: o silêncio
entre palavras ou as palavras entre silêncios? Ou, como escreveu Mia Couto,
será que o silêncio não é a ausência da fala porque é o dizer-se tudo sem
nenhuma palavra?
Não
há apenas o silêncio, há os silêncios. O bom e o mau. O genuíno e o cretino. O
sem medida e o calculista. O de cada um para si e o de cada um para o outro. O
que brota da dignidade e o que espezinha a respeitabilidade. O da alegria e o
da tristeza. O do amor e o do desamor. O da concordância e o da discordância. O
da liberdade e o da opressão. O da eloquência e o da ignorância. O da serenidade
e o do desassossego. O da esperança e o do desespero. O da convicção e o da
responsabilidade. O da verdade e o da mentira. O da persuasão e o da omissão. O
da generosidade e o da indiferença. O da autenticidade e o do fingimento. O da
coragem e o do medo. O da purificação e o da contaminação. O da solidão
procurada e o do abandono perverso. O da paz e o da guerra. O da argumentação e
o da decantação. O da chegada e o da partida. O da presença e o da ausência. O
do alfa e o do ómega.
A
Natureza gosta do silêncio sem adereços. Porque o silêncio é a forma serena de
se adormecer e o modo suave de se acordar. A neve cai no silêncio. A alvura é o
silêncio majestoso das cores na sua plena união. O nascer e o pôr-do-sol
convidam à serenidade do silêncio. O silêncio é o dia cedo, como contraponto da
noite tarde.
O
olhar pode ser muito mais do que o silêncio de uma palavra não dita. O silêncio
da oração pode ser dito por palavras. E o silêncio sem palavras repetidas
mecanicamente pode ser a plenitude da oração. O silêncio do reencontro é a
forma perfeita do amplexo fraterno. O silêncio diante da morte diz tudo no
respeito de nada falar.
A
sociedade incomoda-se, cada vez mais, com o silêncio. O silêncio não é um bem
transaccionável que se compre ou venda, não é objecto de transmissões
televisivas que, aliás, o abominam, seria um absurdo na rádio, não substitui as
palavras dos jornais, é um paradoxo no activismo das redes sociais, não se
associa ao sucesso, quase se lega às gerações futuras como um estigma lúgubre. O
silêncio incomoda porque interpela, perturba porque vem de dentro, enfada
porque não rende, afasta porque se crê ser a forma de não comunicar.
Numa
qualquer reunião ficar em silêncio desqualifica, mesmo que nada se tenha para
dizer. Num debate televisivo o perdedor é o que fala menos, mesmo que no
intervalo do seu silêncio, tenha sido o que disse mais. Nos discursos, o que
conta não é o valor do conteúdo mas o tempo em que se agride o silêncio de
ainda não se ter terminado. Na discussão, ganha quem não se cala e perde quem,
às vezes sensatamente, escuta, no silêncio do seu ser, a consciência do
respeito. Cito, contextualizada, a sapiência de Eurípedes: “fala se tens
palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio”.
O
silêncio é agora urbi et orbi quebrado com a autocracia do som, ainda que
musical. Na espera nos telefones onde nos impingem músicas e ritmos
que não pedimos e que nunca ouviríamos, a maior parte das vezes para intervalar
um serviço de atendimento permanentemente entupido ou deficitário de qualidade.
Um pai ou uma mãe que acabam de perder o seu filho amado são agredidos com um
alegre folclore ou música pimba que àquela hora os apanhou num telemóvel. Nos
elevadores, a má-criação de um silêncio de quem não tem a educação mínima de
cumprimentar quem entra ou sai, é envolta numa qualquer musiqueta de pacotilha.
Nos transportes ou nos táxis, o seu utilizador tem de aturar, sem dar
autorização, música rasca ou anúncio aparvalhado. Nos comboios, há momentos em
que as carruagens mais parecem centrais telefónicas, onde o recato é
minoritário.
O
silêncio é, hoje, motivo de chacota e pretexto de crítica. Já lá
vai o tempo em que o silêncio era de ouro. Hoje, na época dos ruídos
metalizados, nem a mais reles lata se associa ao silêncio. Fala-se, sem
rodeios, do silêncio (offshore) da lei, extrema-se a linguagem quando se diz
que há um silêncio sepulcral e achincalha-se um oponente quando se afirma que
se reduziu o fulano ao silêncio.
Mas
volto ao início. Ao silêncio desfrutado, como ao silêncio que transporta
respeito. Pelo outro e por cada um. É necessário reabilitar o silêncio que nos
oferece tempos de expressão lhana, cristalina, límpida de nos exprimirmos e de
nos sentirmos ser. Convida-nos à profilaxia da introspecção, aproxima-nos de nós
mesmos, orienta-nos na selecção do que não é silêncio.
“Nunca
quebres o silêncio se não for para o melhorar”, disse um dia Beethoven. Deixo
estas palavras envoltas no “Silêncio de Beethoven” da autoria do notável
compositor e pianista mexicano Ernesto Cortázar e convido o amável leitor a
ouvi-lo. E assim o silêncio se engrandece e se acaricia através da beleza de
sobre ele compor. Com uma nota intimamente pessoal: hoje a minha filha mais
nova faz 40 anos. Ofereço-lhe o mais paternal e amoroso silêncio.
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