domingo, 19 de junho de 2016

História turca universal



Contada por Rui Tavares, no Público de 1/6.
Das lembranças que me ficaram da História Universal, suponho que do 4º ano do liceu, a data que estabelecia o fim da Idade Média – começo da Idade Moderna – era 1453, assinalando a tomada de Constantinopla (/ Bizâncio) pelos Turcos, que pôs fim ao Império Romano do Oriente, o do Ocidente extinto cerca de um milénio antes – 476 – com a tomada de Roma pelos hérulos, comandados por Odoacro, o primeiro rei da nova Roma. A desagregação do Império Romano do Ocidente, pelos sucessivos avanços dos povos bárbaros - visigodos, suevos, alanos, francos…  - originou a formação da Europa, gradualmente espartilhada em vários reinos, os povos da Ibéria tendo que lutar contra os Mouros, que, a partir de 711, com a batalha de Guadalete, nela iniciaram a sua ocupação, a batalha de Covadonga, em 722, dando início à reconquista cristã, com Pelágio, e a formação dos sucessivos reinos, entre os quais o de Portugal, em 1143.
Mas desvio-me do pensamento primeiro, que era o de estabelecer os limites da Idade Média – as histórias são como as cerejas, já Cesário Verde o sentia, na sua extraordinária «sinfonia em quatro andamentos» - “O Sentimento dum Ocidental”, invadido por um sem número de anotações dispersas:
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Nem sequer me posso aventurar pela História, mas já li que o descobrimento da América por Cristóvão Colombo em 1492 era considerado ponto-charneira para a viragem histórica, o que não deixaria de ser justo, a América constituindo o Mundo Novo que se impunha ao velho, algo de explosivo, numa Terra rejuvenescida e assim reinventada. O ponto de vista europeu, todavia, mantém-se para a tal divisória nas etapas históricas.
Por lembrar isto, e aprender mais, gostei a valer do artigo de Rui Tavares de crítica a uma Turquia moderna avassaladora e reaccionária nos seus conceitos sociais, nas políticas do seu presidente Erdogan, que apelam ao primitivismo de um posicionamento radicalista nas questões da procriação, segundo o fundamentalismo islâmico, pretexto para acrescentar mais uns milhares de “terroristas” opositores a tais parâmetros, aos muitos milhares de “terroristas” curdos independentistas do seu programa de ataque. E o simulacro lúdico de Putin, sentando-se no trono dos imperadores bizantinos, em – quem sabe? – desejo de domínio subentendido, inventando um não mais império romano, mas um hipotético império russo de “mare nostrum”… As histórias são como as cerejas…

Danada impaciência
Público, 1/06/2016
Prontos para mais um pouco de história tardo-bizantina? Se se lembram da última crónica, o passado domingo não foi apenas o dia em que a Igreja Ortodoxa celebra a memória de Santa Paciência. Na verdade, essa é apenas uma consequência de um evento histórico muito mais relevante: a tomada de Constantinopla pelos otomanos, a 29 de maio de 1453.
A queda da atual Istambul, que era então tida como a Segunda Roma, e a sua transformação na capital do califado muçulmano que durou até ao fim do Império Otomano em 1923, é um daqueles acontecimentos que muda o mundo. Seja como for, parece uma coisa enterrada lá há cinco séculos e meio.
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Exceto, é claro, se formos um dos políticos que se toma por herdeiro dos imperadores de outras eras, seja Recep Tayip Erdogan da Turquia, seja Vladimir Putin da Rússia. Nesse caso, os 563 anos da Queda de Constantinopla — nem sequer uma data redonda — terão de ser forçosamente usados para marcar o seu simbolismo político presente e excitar a base nacionalista de cada país.
Chamou a atenção de alguns jornalistas a celebração massiva que Erdogan promoveu na Turquia no passado domingo, e que contou já com a presença do seu novo primeiro-ministro, agora que as últimas réstias da existência de qualquer outro vulto no seu partido foram afastadas. Mais de um milhão de pessoas saiu às ruas para lembrar a conquista de Constantinopla; os opositores de Erdogan detetaram rapidamente um claro sabor neo-otomano nos discursos e na simbólica comemorativa. Erdogan fez um discurso em que atacou a contraceção e o planeamento familiar e disse claramente que a Turquia iria usar a natalidade “como o meu Deus quer e o seu amado profeta anunciou” enquanto ferramenta política para a nova Turquia. No dia seguinte, Erdogan anunciou que os seus antigos aliados gulenistas (uma corrente meio-sectária-meio-moderada do islamismo turco) deveriam ser considerados “terroristas”. Juntando esses novos milhões de “terroristas” turcos aos milhões de já conhecidos “terroristas” curdos, isto não pode acabar bem.
Pouca gente notou, porém, que Vladimir Putin decidiu visitar o sagrado Monte Athos na Grécia (uma península de 45 quilómetros em plena UE onde as mulheres não podem entrar) e nessa viagem decidiu dedicar-se a um antigo passatempo dos czares: posar como protetor dos ortodoxos na região (sendo Moscovo a “terceira Roma”, depois de Constantinopla). Para enfatizar bem o simbolismo, Putin decidiu sentar-se no trono que pertenceu aos imperadores bizantinos derrotados pelos otomanos.
Isto são certamente brincadeiras de crianças grandes. Putin é conhecido por lamentar o fim da União Soviética, mas provavelmente lamenta também algo que o nascimento da URSS impediu: o plano para o fim da Iª Guerra Mundial, assinado com franceses e ingleses, que daria à Rússia o predomínio sobre Istambul e a área circundante, incluindo os estreitos entre o Mar Negro e o Mediterrâneo. Essa era uma velha ambição dos czares (e parcialmente uma das causas da Grande Guerra).
Durante décadas a Rússia e a Turquia tiveram boas relações. E mesmo hoje têm poucas razões para as terem más. A não ser, é claro, que essa seja a forma de disfarçar a incompetência e o autoritarismo dos seus atuais líderes.

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