Contada por Rui Tavares, no
Público de 1/6.
Das lembranças que me ficaram
da História Universal, suponho que do 4º ano do liceu, a data que estabelecia o
fim da Idade Média – começo da Idade Moderna – era 1453, assinalando a tomada
de Constantinopla (/ Bizâncio) pelos Turcos, que pôs fim ao Império Romano do
Oriente, o do Ocidente extinto cerca de um milénio antes – 476 – com a tomada
de Roma pelos hérulos, comandados por Odoacro, o primeiro rei da nova Roma. A desagregação
do Império Romano do Ocidente, pelos sucessivos avanços dos povos bárbaros -
visigodos, suevos, alanos, francos… -
originou a formação da Europa, gradualmente espartilhada em vários reinos, os
povos da Ibéria tendo que lutar contra os Mouros, que, a partir de 711, com a
batalha de Guadalete, nela iniciaram a sua ocupação, a batalha de Covadonga, em
722, dando início à reconquista cristã, com Pelágio, e a formação dos
sucessivos reinos, entre os quais o de Portugal, em 1143.
Mas desvio-me do pensamento
primeiro, que era o de estabelecer os limites da Idade Média – as histórias são
como as cerejas, já Cesário Verde o sentia, na sua extraordinária «sinfonia
em quatro andamentos» - “O Sentimento dum Ocidental”, invadido por
um sem número de anotações dispersas:
Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.
Nem sequer me posso aventurar
pela História, mas já li que o descobrimento da América por Cristóvão Colombo
em 1492 era considerado ponto-charneira para a viragem histórica, o que não
deixaria de ser justo, a América constituindo o Mundo Novo que se impunha ao
velho, algo de explosivo, numa Terra rejuvenescida e assim reinventada. O ponto
de vista europeu, todavia, mantém-se para a tal divisória nas etapas
históricas.
Por lembrar isto, e aprender
mais, gostei a valer do artigo de Rui Tavares de crítica a uma Turquia moderna
avassaladora e reaccionária nos seus conceitos sociais, nas políticas do seu
presidente Erdogan, que apelam ao primitivismo de um posicionamento radicalista
nas questões da procriação, segundo o fundamentalismo islâmico, pretexto para
acrescentar mais uns milhares de “terroristas” opositores a tais parâmetros,
aos muitos milhares de “terroristas” curdos independentistas do seu programa de
ataque. E o simulacro lúdico de Putin, sentando-se no trono dos imperadores
bizantinos, em – quem sabe? – desejo de domínio subentendido, inventando um não
mais império romano, mas um hipotético império russo de “mare nostrum”… As
histórias são como as cerejas…
Danada
impaciência
Prontos para mais um pouco de história
tardo-bizantina? Se se lembram da última crónica, o passado domingo não foi apenas o dia em que a
Igreja Ortodoxa celebra a memória de Santa Paciência. Na verdade, essa é apenas
uma consequência de um evento histórico muito mais relevante: a tomada de
Constantinopla pelos otomanos, a 29 de maio de 1453.
A queda da atual Istambul, que era então tida como a
Segunda Roma, e a sua transformação na capital do califado muçulmano que durou
até ao fim do Império Otomano em 1923, é um daqueles acontecimentos que muda o
mundo. Seja como for, parece uma coisa enterrada lá há cinco séculos e meio.
PUB
Exceto, é claro, se formos um dos políticos que se
toma por herdeiro dos imperadores de outras eras, seja Recep Tayip Erdogan da
Turquia, seja Vladimir Putin da Rússia. Nesse caso, os 563 anos da Queda de
Constantinopla — nem sequer uma data redonda — terão de ser forçosamente usados
para marcar o seu simbolismo político presente e excitar a base nacionalista de
cada país.
Chamou a atenção de alguns jornalistas a celebração
massiva que Erdogan promoveu na Turquia no passado domingo, e que contou já com
a presença do seu novo primeiro-ministro, agora que as últimas réstias da
existência de qualquer outro vulto no seu partido foram afastadas. Mais de um
milhão de pessoas saiu às ruas para lembrar a conquista de Constantinopla; os
opositores de Erdogan detetaram rapidamente um claro sabor neo-otomano nos
discursos e na simbólica comemorativa. Erdogan fez um discurso em que atacou a
contraceção e o planeamento familiar e disse claramente que a Turquia iria usar
a natalidade “como o meu Deus quer e o seu amado profeta anunciou” enquanto
ferramenta política para a nova Turquia. No dia seguinte, Erdogan anunciou que
os seus antigos aliados gulenistas (uma corrente meio-sectária-meio-moderada do
islamismo turco) deveriam ser considerados “terroristas”. Juntando esses novos
milhões de “terroristas” turcos aos milhões de já conhecidos “terroristas”
curdos, isto não pode acabar bem.
Pouca gente notou, porém, que Vladimir Putin decidiu
visitar o sagrado Monte Athos na Grécia (uma península de 45 quilómetros em
plena UE onde as mulheres não podem entrar) e nessa viagem decidiu dedicar-se a
um antigo passatempo dos czares: posar como protetor dos ortodoxos na região (sendo
Moscovo a “terceira Roma”, depois de Constantinopla). Para enfatizar bem o
simbolismo, Putin decidiu sentar-se no trono que pertenceu aos imperadores
bizantinos derrotados pelos otomanos.
Isto são certamente brincadeiras de crianças grandes.
Putin é conhecido por lamentar o fim da União Soviética, mas provavelmente
lamenta também algo que o nascimento da URSS impediu: o plano para o fim da Iª
Guerra Mundial, assinado com franceses e ingleses, que daria à Rússia o
predomínio sobre Istambul e a área circundante, incluindo os estreitos entre o
Mar Negro e o Mediterrâneo. Essa era uma velha ambição dos czares (e
parcialmente uma das causas da Grande Guerra).
Durante décadas a Rússia e a Turquia tiveram boas
relações. E mesmo hoje têm poucas razões para as terem más. A não ser, é claro,
que essa seja a forma de disfarçar a incompetência e o autoritarismo dos seus
atuais líderes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário