Mas
é Pedro Mexia que a tem, e muita, na sua crónica «Um
temperamento», da E de
28 de Maio, comentário de um artigo de conferência de Michael Oakeshott sobre «conservadorismo político», ou antes, «disposição
conservadora», sendo que, segundo este, “o conservador é sobretudo o
indivíduo que se dispõe a desfrutar do tempo presente, sem nostalgias nem
utopias”.
Deve
estar certo, mas os três primeiros textos que me lembrei de procurar - creio
que não pela primeira vez, já que o conservadorismo se transforma num hábito,
com o passar da idade - para revelar, em
termos comparativos, embora estes mais do foro literário, pois que, na altura,
as pessoas acomodavam-se às políticas reinantes, por ignorância e humildade, (mau
grado os protestos reiterados do nosso épico e até do nosso “homem dum só
parecer dum só rosto, uma só fé, d’antes
quebrar que torcer” e por isso não integrado na corte), revelar, dizia, que os
três tristes trechos exprimem, de facto, uma certa nostalgia: Pêro
Barroso, talvez por se situar nas alturas do medievo, sem leituras de clássicos greco-latinos a amparar, e por isso de expressão simples e familiar, demonstra mesmo, além da nostalgia, profunda agonia com a mudança que nota nos costumes, a ponto de desejar morrer. Já Sá de Miranda segue os trâmites clássicos, em imagens de extrema expressividade e beleza, mostrando não só a dúvida em relação ao homem e às coisas, como certeza, em relação ao renovar da natureza, contrariamente ao que sucede com o homem – o que se torna, aliás, paradoxal na escolha dos termos de comparação - a Natureza, como abstracção, só podendo equiparar-se ao abstracto Humanidade para a conclusão da igualdade na renovação, os seres singulares - Homem, plantas e animais - todos eles perecíveis. Camões, com perícia de génio, acrescenta ao tema da mudança - nos seres, no Tempo, na crença - a própria Mudança, como abstracção personificada, ela própria transformada na sua forma de mudar.
Barroso, talvez por se situar nas alturas do medievo, sem leituras de clássicos greco-latinos a amparar, e por isso de expressão simples e familiar, demonstra mesmo, além da nostalgia, profunda agonia com a mudança que nota nos costumes, a ponto de desejar morrer. Já Sá de Miranda segue os trâmites clássicos, em imagens de extrema expressividade e beleza, mostrando não só a dúvida em relação ao homem e às coisas, como certeza, em relação ao renovar da natureza, contrariamente ao que sucede com o homem – o que se torna, aliás, paradoxal na escolha dos termos de comparação - a Natureza, como abstracção, só podendo equiparar-se ao abstracto Humanidade para a conclusão da igualdade na renovação, os seres singulares - Homem, plantas e animais - todos eles perecíveis. Camões, com perícia de génio, acrescenta ao tema da mudança - nos seres, no Tempo, na crença - a própria Mudança, como abstracção personificada, ela própria transformada na sua forma de mudar.
É
Álvaro de Campos, tão próximo de nós, tão irmão no sentimento, em que pesam saberes
sobre mudanças de nível astronómico, doutrinações e nihilismos de angústias e
cepticismos e certezas do “silêncio” final, e consciências de “inconsciências”
na monotonia dos gestos diários, Esteves tranquilos, sem formulações
doutrinárias de maior, que somos, afinal, felizmente, a maioria, é Álvaro de
Campos, pois, que se aproxima mais dos saberes doutrinários que o tema do
conservadorismo merece, quer a Pedro Mexia, quer a Michael Oakeshott, que
aquele comenta.
É
de bom tom mostrar-nos progressistas, tirante um ou outro que ousa atacar
certas modernidades trazidas pelos avanços do mundo ideológico a acompanhar o
científico e mesmo o tecnológico, que dão lugar aos excessos de desenvoltura. Mas
o meio termo é importante na política, como em tudo o mais, e a crença no retorno parece igualmente conceito a não
desprezar.
Leiamos,
assim, o estudo de Pedro Mexia, que me parece situar-se entre o sério e o
jocoso, os conservadores geralmente identificados com os botas de elástico, (estas,
ao que parece, todavia, de novo em moda, embora mais estilizada). E aceitemos
alegremente o ditado “todos ao molho e fé em Deus” das autodefesas vivaças
dos briosos Esteves. Admiremos as definições intelectuais de Michael Oakeshott,
segundo o estudo de Pedro Mexia, definições capazes de reverter caminhos, com certa
cordura.
Pêro
Gomes Barroso
Do que sabia nulha ren non sei,
polo mundo, que vej’assi andar;
e, quando i cuido, ei log’a cuidar,
per boa fé, o que nunca cuidei,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
polo mundo, que vej’assi andar;
e, quando i cuido, ei log’a cuidar,
per boa fé, o que nunca cuidei,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
Aqueste mundo, par Deus, non é tal
qual eu vi outro, non á gran sazon,
aquel desej’e esto quero mal,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
qual eu vi outro, non á gran sazon,
aquel desej’e esto quero mal,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E non receo mha morte por en,
E, Deus lo sabe, querria morrer,
Ca non vejo de que aja prazer,
Nen sei amigo de que diga ben,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E, Deus lo sabe, querria morrer,
Ca non vejo de que aja prazer,
Nen sei amigo de que diga ben,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E, se me a mim Deus quisess’atender,
per boa fé ûa pouca razon,
eu post’avia no meu coraçon
de nunca já mais neûn ben fazer,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
per boa fé ûa pouca razon,
eu post’avia no meu coraçon
de nunca já mais neûn ben fazer,
ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.
E non daria ren por viver i
en este mundo mais do que vivi.
en este mundo mais do que vivi.
Sá de Miranda
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
Também mudando-m’eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
Também mudando-m’eu fiz doutras cores:
E tudo o mais renova, isto é sem cura!
Luís de Camões
Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Álvaro de Campos
(Excerto)
…….. Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e
ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para
comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em
escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. …..
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. …..
Pedro Mexia
E, 28/5/16
Fraco Consolo
Um temperamento
Todo
o mundo é composto de mudança e de resistência à mudança. Faz agora 60 anos que
um cientista político de Cambridge e da London School of Economics, Michael
Oakeshott, proferiu uma importante conferência sobre esse equilíbrio instável.
O texto, depois integrado na colectânea de ensaios “Rationalism in Politics”
(1962), intitula-se “On Being Conservative” e mantém-se ainda hoje como a mais
concisa e astuta definição de conservadorismo: o conservadorismo enquanto
“temperamento” e estratégia.
Oakeshott
considera que não é muito difícil encontrar umas quantas ideias gerais que
caracterizam o «conservadorismo» como doutrina política, mas mostra-se
francamente mais interessado naquilo a que chama “disposição conservadora”.
O ensaio parte de uma recusa da identificação automática do “conservadorismo”
com a lei natural, o pecado original, a fé, o providencialismo, o princípio
monárquico, o organicismo, etc. um conservador pode acreditar em tudo isso, ou
em parte disso, ou em nada disso, escreve Oakeshott; mas o conservador é
sobretudo o indivíduo que se dispõe a desfrutar do tempo presente, sem
nostalgias nem utopias.
O
conservador está agradecido por aquilo que tem agora; não porque isso seja, em
absoluto, melhor do que outras alternativas, mas simplesmente porque é aquilo
que conhece bem. O conceito de “familiaridade” ganha uma espessura filosófica
inusitada: “Ser conservador então, é preferir o familiar ao desconhecido, o já
testado aio que nunca foi tentado, o facto ao mistério, o presente ao possível,
o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante,
o conveniente ao perfeito, o riso de agora à felicidade utópica. É uma
formulação disfórica, sem dúvida, mas justíssima.
Porque
a disposição conservadora é uma arte da perda, manifesta-se com mais
intensidade quando existe um “objecto” valioso e quando esse objecto está em
riscos de desaparecimento. O texto ilustra essa tese com um caso espantoso. Os Masai,
uma etnia do Quénia, foram colocados em reservas territoriais e conceberam
então um estratagema que os ajudou a evitar a vergonha do exílio e o perigo da
extinção: deram aos rios e aos montes os mesmos nomes que usavam na sua terra
de origem. Um conservador protege a sua identidade porque é tudo o que tem de
seu, mas Oakeshott até se demarca das concepções estreitamente “identitárias”,
sublinhando que a identidade, sendo preciosa, é também contingente. Não vale
por ser especial mas por ser uma identidade. Um conservador é alguém que
desconfia da mudança e que tenta sobreviver às mudanças. Quase todas as pessoas
sofrem desgostos que nascem das modificações da vida ou da passagem do tempo. Um
conservador é apenas uma pessoa especialmente melancólica quanto a esse facto.
e por isso age de modo prudente e cauteloso: não troca um bem conhecido por um
bem desconhecido, que pode ser um mal escondido. O conservador adapta-se
à mudança, que é uma inevitabilidade, mas defende mudanças pequenas, graduais,
mudanças que se identifiquem com a consciência colectiva e não que a
modifiquem, mudanças cujo ónus da prova compete a quem defende que se mude.
Uma disposição conservadora é útil “quando a estabilidade é mais proveitosa
do que o melhoramento, quando a certeza é mais valiosa do que a especulação,
quando a familiaridade é mais desejável do que a perfeição, quando o erro comum
é superior à verdade controversa, quando a doença é mais tolerável do que a
cura, quando a satisfação de expectativas é mais importante do que “justiça”
das próprias expectativas , quando qualquer espécie de regra é melhor do que
não ter regra nenhuma (…)”. Há nas sociedades ocidentais um evidente fascínio
pela novidade, uma suposição de que a mudança é benéfica; mas toda a gente
reconhece que nem todas as situações aconselham à mudança. Escreve o ensaísta
que mudamos de talhante se estivermos descontentes, mas não mudamos de amigos
com a mesma facilidade, porque a amizade não é uma relação utilitária ou
fungível. Por outro lado, há algumas mudanças que são aceitáveis mas que dependem de condições
restritivas: por exemplo, podemos mudar as regras de um jogo, mas não durante o
decurso do jogo.
Oakeshott
foi um crítico incansável do “racionalismo” em política, quer dizer,
das concepções voluntaristas, optimistas, totalizantes, salvíficas. O seu
conservadorismo abstractizante entra um pouco em colapso quando tenta demarcar
o campo da acção política concreta, mas ainda assim imagina um Estado discreto,
que se comporte apenas como garante das regras que permitem a coexistência de
diferentes crenças, hábitos, mundivivências. Um Estado moderado e moderador,
que não se dedique à promoção das “indignações favoritas” deste ou daquele
grupo de pessoas. A política não é o domínio da verdade, da virtude, da
perfeição. À política cabe apenas zelar pela convivência pacífica dos membros
das nossas sociedades diversas e agradavelmente caóticas.
Em
determinada passagem de “On Being Conservative”, Oahkeshott considera
Montaigne mais pertinente do que Burke, o que talvez seja inesperado num ensaio
político conservador; mas, de facto, a “disposição conservadora” não é uma
doutrina política, é um temperamento filosófico: um cepticismo tranquilo.
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