Era em Lourenço Marques, nos tempos de Salazar, havia
uma espécie de casa-templo quase à frente da nossa casa, onde muitas vezes - mas
sobretudo por alturas do Ramadão – os muçulmanos iam rezar ao seu Alá,
ajoelhados, várias vezes curvados, as cabeças a tocar no solo à frente, os pés
visivelmente descalços atrás, os braços movendo-se a compasso das suas rezas
entoadas em algaraviada que não entendíamos. Não me questionava sobre a
religião, nós seguíamos a dos meus pais, centrada no respeito da tradição, sem
aliás, grande empenhamento, sem missas aos domingos, embora conhecendo-lhes a
eficácia casamenteira, de que estávamos longe de sentir a necessidade, numa
adolescência de correrias e jogos por detrás do quintal da nossa casa, a par da
prática dos deveres do nosso empenhamento de estudantes e de colaboradoras nas
práticas domésticas de limpar o pó e fazer a cama aos domingos, enquanto
cantávamos as canções da moda, alto e bom som, tal como a ceifeira pessoana,
mas verdadeiramente felizes ao contrário do que pensava Pessoa a respeito daquela,
mais, de resto, por simpatia de intelectual necessariamente pessimista, para
nos ajudar a ponderar.
Com tudo isto, já me desviei do assunto que tinha em
mente, o texto de João Miguel Tavares
sobre a construção da Mesquita na Mouraria, que talvez nos traga riqueza e
progresso, na aceitação de culturas, religiões e diferentes templos, que não
farão desabar o Carmo e a Trindade, e até favorecem o nosso cosmopolitismo,
tais como os restaurantes estrangeiros apoiantes da nossa gula e da nossa
intelectualidade.
Não, julgo que uma mesquita na Mouraria – lugar reconhecidamente
de privilégio do nosso fado – não vai contribuir para que um qualquer édito
faça um dia substituir a religião cristã por essa outra islamita de que tanto
se fala agora, por muito que esteja assente em hábitos de degola chocantes. Se o
1º ministro quer uma mesquita, dê-se-lhe a mesquita. É mais imposto, menos
imposto. E poderemos ver assim os pés ao Islão.
Uma mesquita na Mouraria
JOÃO MIGUEL TAVARES , por detrás do quintal
Público 26/05/2016 - 07:49
A laicidade não diz respeito apenas ao
catolicismo, pois não?
A primeira notícia que li sobre o assunto
saiu no PÚBLICO do passado dia 18, mas a desatenção é minha: em Outubro de 2015
já vários jornais haviam dado conta da intenção da Câmara de Lisboa em
construir uma nova mesquita na Mouraria. Deixem-me sublinhar logo à cabeça, que
é para não pensarem que receio a infiltração do Daesh na Baixa de Lisboa, que
nada me move contra mesquitas. Aliás, se há sítio onde faz sentido construí-las
é na Mouraria, como o próprio nome indica. A minha questão é muito mais comezinha,
e não tem nada a ver com o papão do terrorismo islâmico. Ela resume-se a duas
breves palavras e um ponto de interrogação: quem paga?
A notícia do PÚBLICO centrava-se em
António Barroso, proprietário de dois edifícios que a câmara decidiu expropriar
e demolir para a construção da mesquita e requalificação da Praça da Mouraria.
António Barroso quer mais dinheiro pelos imóveis – a câmara oferece 530 mil
euros, ele pede dois milhões. Se valem isso ou não, não faço ideia, mas consigo
identificar-me com parte das suas queixas. Argumenta o senhor Barroso que
quando avançou com a recuperação dos prédios, em 2006 e em 2009, foi obrigado a
cumprir uma longa lista de exigências e restrições para respeitar os traços
arquitectónicos originais. Agora, que é para deitar abaixo, a câmara argumenta
que os edifícios “não apresentam especial interesse arquitectónico”. Eis, em
todo o seu esplendor, o típico duplo critério da burocracia pública nacional.
Mas por muito injusta que seja a situação
do senhor Barroso, a questão fundamental para o erário público não é quanto
dinheiro vai ele receber, mas quem é que lho vai pagar. Todo o artigo está
escrito no pressuposto de que é a própria câmara, até porque foi ela que
assinou a “declaração de utilidade pública de expropriação com carácter de
urgência”. Ora, vão desculpar-me: eu percebo com muita dificuldade que o mesmo
Partido Socialista que no país é tão lesto na defesa da laicidade – como
ainda recentemente se viu a propósito dos contratos de associação com escolas
católicas –, seja tão lento na defesa da laicidade em Lisboa quando se trata de
construir uma mesquita.
Eu sei que dá certa panache percorrer a
Mouraria de tuk tuk enquanto se escuta o muezim no alto do minarete. É um
espectáculo bonito, sim senhor, e até poderia ser patrocinado pela Associação
Turismo de Lisboa. Mas a laicidade não diz respeito apenas ao catolicismo, pois
não? É que às vezes parece. Quando se fala em católicos, a esquerda é toda
laica – e quer a Igreja longe dos dinheiros públicos. Quando se fala em muçulmanos,
a esquerda é multicultural – e chega-se à frente com o cheque. Alguém me
consegue explicar a lógica disto, se faz favor? Ou é uma situação habitual, e a
câmara também patrocina igrejas, sinagogas e templos de Shiva?
Infelizmente, a câmara não esclareceu o
PÚBLICO sobre o tema. E também não esclareceu a Lusa: “As questões têm de ser
analisadas por diferentes serviços, tendo em conta a complexidade do assunto.”
Contudo, em Outubro, o vereador Manuel Salgado esclareceu, ao menos, os
números: 2,9 milhões de euros para expropriar, requalificar o espaço e
construir a mesquita. A cargo da comunidade muçulmana ficariam apenas “os
acabamentos”. O presidente da Câmara celebrou o facto como uma “marca de
abertura e de que todos são bem-vindos”. Eu, claro, também acho óptimo que
todos sejam bem-vindos. Só acho péssimo que sejam os meus impostos a subsidiar
o culto de Alá.
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