quinta-feira, 16 de junho de 2016

Boneca de trapos



Quando era criancinha tive uma rica boneca, mas depressa a estraguei, e a minha mãe por vezes referia a minha resposta a uma interpelação sobre a sua destruição: “Foi por causa de cangalhou-se”. Eu não achava grande graça à referência, que só mostrava um desalinhamento bem distanciado dos procedimentos de elegância gestual da minha irmã. Durante a guerra, vivemos cá, o meu pai cuidadoso com as nossas vidas, a que os alemães poderiam dar o destino que eu dei à tal boneca, não nos deixando tão cedo embarcar para o outro lado do mar, onde ele estava e onde a minha irmã e eu nascêramos. Mas, na aldeia, as bonecas, que nós mesmas fazíamos, eram feitas de trapos, as panelas de bugalhos, e por aí adiante. E duravam, as bonecas, mesmo sem pernas nem braços, e apenas com cabeça, lenço e tronco, frugais mas bem amadas.
Também o presidente Marcelo parece feliz, menino contente com o brinquedo da sua afeição - o cargo da sua governação - com o qual pensa, talvez, compor o “cangalhou-se” do boneco pátrio que tem em mãos. E ei-lo que vai - Fluo, is, ere, fluxi, fluxum – fluindo, correndo, gingando, viajando, falando, galhofando, qual o rio da marquesa de Alorna, imagem da vida e da morte – o “cangalhou-se” de todos os fins.
João Miguel Tavares o explica no seu artigo do Público de 31/5, comparando-o ao outro das “Conversas em Família”, no seu zelo conselheiro, de uma fluência que a mim não me parece tão poderosa assim, na familiaridade de uma loquacidade que se dirige a todas as faixas etárias da população, que parece que deseja seduzir a todo o custo, aqui, aí, ali, acolá.... A sensação final é de pesadelo, pela puerilidade, lembrando o retomar da tristeza que a imagem do rio traz a uma “Alcipe” tão cedo apanhada nas malhas do sofrimento:
Sozinha no bosque
com meus pensamentos.
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.

Olhei para a Lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida,
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.

A magistratura da fluência
31/05/2016
Ele está todos os dias na televisão a comentar a actualidade política, e não há um pingo de hipérbole na expressão “todos os dias” – é mesmo todos os dias. Marcelo está imparável no papel de comentador de todos os portugueses. No início, pensou-se que o frenesim derivava da felicidade de se ver em Belém e da dificuldade em segurar as rédeas do seu próprio entusiasmo, mas três meses depois não podemos continuar a considerar que a omnipresença e a omniloquência do presidente da República são uma moda passageira. Habituemo-nos: vamos ter disto durante dez anos, pelo simples motivo de que não se trata de um tique, mas de um estilo – Marcelo Rebelo de Sousa trocou deliberadamente a magistratura de influência pela magistratura da fluência.
Nesse sentido, Marcelo tem algo de Marcello. As Conversas em Família, que Marcello Caetano iniciou meses após ter substituído Salazar e que duraram até às vésperas do 25 de Abril, tinham como objectivo aproximar o regime dos portugueses, explicando-lhes semanalmente – e professoralmente – as políticas promovidas pelo Estado Novo e tentando apaziguar os “frequentes queixumes” (palavras de Marcello) do povo, em particular no que à guerra colonial dizia respeito. Em tempos de crise, Marcelo não está a fazer muito diferente, com as suas aparições diárias a comentar a actualidade, embora o faça com superior destreza mediática. Digamos que, tal como Eva foi criada a partir da costela de Adão, o Presidente da República foi criado a partir de uma costela do comentador Marcelo – manteve as principais características em invólucro mais elegante, e com a intenção muito bíblica de vir a ser a companhia perfeita para os portugueses.
Os efeitos da substituição da magistratura de influência pela magistratura da fluência estão ainda por apurar, mas uma coisa é certa: o papel do Presidente da República no sistema político português vai mudar significativamente. Já muitos alertaram para o facto de as funções constitucionais do Presidente darem azo a múltiplas interpretações – a bem dizer, a necessidade de garantir a “unidade do Estado” e o “regular funcionamento das instituições democráticas”, inscrita no artigo 120 da Constituição, dá para tudo. E se é certo que a forma como os poderes presidenciais têm sido interpretados pelos sucessivos presidentes é essencialmente minimalista, nada impede que Marcelo venha a ter uma interpretação distinta. Aliás, já está a ter: a primeira intenção da magistratura da fluência não é condicionar o rumo do governo (como acontecia com a magistratura de influência), mas ensinar aos portugueses o que eles devem pensar. É um “chega para cá” (do Presidente em relação aos portugueses) para um dia mais tarde, se der jeito, transformar em “chega para lá” (dos portugueses em relação ao governo).
Visto por este prisma, não admira que Marcelo aprecie o actual governo de António Costa – quanto menos sólido ele for, maior liberdade o Presidente tem. É isso que Passos Coelho quer dizer quando afirma que Marcelo “irradia felicidade”. Pudera: a vida dificilmente lhe poderia correr melhor. A sua popularidade está nos píncaros. Tem como principal responsabilidade pastorear uma solução governativa fragilizada. E tudo isso lhe dá tempo e espaço para reformular o papel do Presidente da República no sistema político português. Preparem-se: ou muito me engano, ou a presidencialização do regime já começou.

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