quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Afinal havia outra

Tratou-se de uma tecla mais, que não existia dantes, nos pagamentos do seu TMN. A minha amiga tentou em várias caixas e não conseguiu carregar o seu telemóvel. Felizmente eu apareci e com a minha serenidade, não ofuscada por partis pris pouco galantes, notei que faltava carregar ainda numa tecla, para o pagamento se efectuar, e que a minha amiga afirmou nunca ter usado.
E logo ela:
- Afinal havia outra. O simplex complicou tudo. Nós éramos muito complicadinhos da Silva, mas ele, Sócrates, quis simplificar, e tudo se complicou ainda mais. Não telefone, vá. Ou fale pela Internet, talvez. Ainda há pouco ouvi o Marques Mendes e as suas dez sugestões para melhorar o país. Toda a gente concorda. Agora, vá lá pôr em prática! Reformas na Justiça, na Saúde, no Ensino… Ainda ontem comprei batatas de França…
- E eu um melão da Espanha. Intragável.
- E nós o que temos para exportar? Um bocado de cortiça, vinho do Porto… E os pastéis de Belém, vá lá…
- Mas são sobretudo para gasto interno, gulosos que somos…
- E a parada das presidenciais…
- E as discussões sobre as economias que estão na ordem do dia…
- E a corrupção, que já perdeu acuidade anterior…
- Já. É a desistência, após o reconhecimento da sua cada vez maior proliferação.
- Sim. Que agora fala-se mais em bondade no combate à crise.
- E a generosidade e espírito de solidariedade dos que se referem aos que sofrem…
- De velhice, de desemprego, de abandono, de miséria…
- Dispostos a pagar mais, porque podem pagar mais…
-“Mandado de despejo aos mandarins da Europa”…
- Releia-se o “Ultimato de Álvaro de Campos”…
- Rodopio inútil de raivas e frustrações inúteis…

Que a minha amiga entre com o pé direito no ano 2011.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ano Novo, vida velha

Se Esopo nos serviu,
Como se viu,
Para anunciar o Natal,
La Fontaine também nos servirá,
Julgo eu,
Bem ou mal,
Para findarmos o velho ano
E festejarmos o ano novo
Com o habitual tralalá,
Embora ele se não apresente
Em perspectiva clemente.
Mas isso são factos consumados
A que já estamos habituados,
Valha-nos Nossa Senhora
Que, por ser tão sapiente,
É a nossa Mãe protectora,
Sem melhorar que preste,
Embora,
O nosso ambiente inclemente.
A fábula que se segue,
De La Fontaine,
De grande tamanho,
Por desgraça minha
E de quem a ler,
Que poderá sempre
Deixar de o fazer,
É sobre a bolota e a abóbora
E o ponto de vista crítico de um aldeão
Sobre os defeituosos desígnios do Senhor,
E que mudou de opinião
Assim que a experiência lhe mostrou
A sem-razão da sua observação.
Mas La Fontaine di-lo-á
Melhor do que eu
Como se verá,
Na sua fábula bem conhecida:
“A bolota e a abóbora:”
“Deus faz bem tudo o que faz,
É a minha conclusão.
Sem a prova procurar
No universo inteiro,
Às abóboras me vou restringir
Como prova suficiente
Da minha justificação:
Um aldeão, considerando
Quanto este fruto é grosso
Sendo o seu caule
Mais fino do que um osso:
“- Em que pensava - disse ele -
O autor de tudo isto?
Ele colocou esta abóbora bem mal!
Na realidade, mais valera
Pendurá-la, como eu o teria feito,
A um dos carvalhos deste carvalhal;
Teria outro jeito
A proporção
Entre um fruto tão tamanhão
E a árvore de forte porte.
É pena, Garô, que tu não tenhas pertencido
Ao conselho d’ Aquele pelo teu cura pregado:
Tudo seria muito melhor
De facto;
Porque será que a bolota, não maior
Que o meu dedo mindinho
Não cresce neste lugar mais enfezadinho?
Deus, bem que se enganou.”
Quanto mais contempla os frutos assim trocados
Mais parece a Garô
Que Deus fez um quiproquó.”
Esta reflexão o nosso homem embaraçou,
Que continuou:
“Não se consegue dormir, realmente,
Com tanto espírito da nossa mente.”
Mas logo, à sombra de um carvalho se deitou
E adormeceu
Triunfalmente.
Uma bolota caiu,
O seu nariz sofreu,
Ele acordou. E levando ao rosto a mão
A bolota encontrou
Presa aos pêlos do queixo.
O nariz achacado
Fê-lo mudar de linguagem:
“- Oh! Oh! – disse ele – estou a sangrar!
E como seria se uma massa mais pesada
Tivesse caído da árvore?
Deus não o permitiu; sem dúvida teve razão.
A causa, reconheço-a agora,
Por esta minha ensanguentada imagem.”
E louvando Deus por tudo o que Ele fez,
Garô voltou para a habitação.”

É por isso que eu também penso
Que devemos considerar,
Antes de contestar
Os desígnios superiores
Quando ditados pelos nossos maiores,
Mesmo que nos pareçam inferiores,
Pois existe sempre a possibilidade
De que uma abóbora nos caia no nariz
Com grande crueldade,
Em vez da bolota caída habitualmente
Sobre a nossa cerviz
Impotente.
Por isso, a bolota devemos aceitar
Não venha a abóbora esborrachar
Definitivamente
Isto que já foi país
No tempo dos nossos pais,
E se prepara para deixar
De o ser, cada vez mais.
Pois dia virá
Que a abóbora se imporá,
Volumosa, pesada, gloriosa
Lançada por mão voluntariosa
E caprichosa
Que sempre se olhará
Como um novo Deus que achará
Que tudo o que faz bem feito está.
E que não se importará
De as nossas cabeças esmagar
Com abóboras fenomenais,
Em vez das bolotas habituais,
É certo que cada vez mais
Brutais
Em atropelo e tamanho.
Bolotas do tamanho de abóboras
São as perspectivas
Do Ano Novo,
Delas cheio que nem ovo.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Uma história de Natal

E digo de Natal
Porque é sentimental.
Dá bons conselhos
A novos e velhos.
Diz-nos que, se há os que comem mais,
É porque a isso foram destinados,
Pelos bons fados,
E porque são leais
Aos mais pequenos,
Os que comem menos.
Assim disse Esopo
Na sua fábula singela

“O burro e a mula”:
«Um burro ia
De companhia
Com uma mula.
Constatando que o fardo dela,
Por injustiça do céu
Era igual ao seu,
Queixou-se o burro de que a mula,
Por receber dupla ração,
Não fosse contemplada,
Com justa razão,
Com uma carga mais pesada
Do que a sua, no longo estirão.
Mas tendo percorrido
Um extenso caminho,
Achando o almocreve
Que o burro ia
Quase esvaído,
Dele pena teve
E passou
Parte da sua carga
Para o dorso da mula farta.
Mais adiante, verificou
O esgotamento
Do burro lazarento
E mais o libertou
Da onerosa carga,
Que colocou
No dorso resistente
Da mula competente.
Até que finalmente
Tudo lançou
Para cima dela
Inclusivamente

O próprio burro quase inerte.
A mula imediatamente
Perguntou:
“- Não achas então
Que eu tenho todo o direito
A uma dupla ração?”
Nós igualmente
Não devemos julgar
Das prerrogativas de cada um
Como princípio, mas sim
Segundo o seu fim.»

É o que nos diz Esopo
Temos que o admirar.
Porque a sua história serve
Para aconselhar
Os que entre nós costumamos
Invejar
E atacar
Os que ganham mais e comem mais
Do que nós, pobres comensais.
Se eles o fazem é porque têm
A obrigação
De nos levar no dorso, com precaução.
Desejosos sempre
De bem conduzir
A sua nação
Assim,
Até ao fim.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O estilista manda

Tratou-se de mulheres. Das nossas mulheres. Falei no programa último da Paula Moura Pinheiro, sobre um maestro de um belíssimo grupo coral de Lisboa, admirei as vozes, a harmonia, o maestro, as entrevistas, a entrevistadora, Paula de Moura Pinheiro. Apesar dos seus sorrisos, em trejeitos maviosos, não tão precisos assim. Porque se pode ser competente e bonito sem precisar de tanto brilho sedutor. A competência não requer palco, requer seriedade. Mesmo numa mulher bonita.
Mas a minha amiga não ligou à qualidade intelectual da Paula, porque atalhou imediatamente:
- Elas rebolam-se, como numa arena os toureiros, nas suas faenas. Mesmo a Moura Pinheiro é uma vaidozona. A maior parte esmifra-se para atrair os olhares. Não são capazes de ser naturais. A Júlia Pinheiro é a única natural.
- A Tânia é naturalmente simpática, acho.
- Mas o que vale é que elas têm uns maridos fabulosos. Num programa da Catarina Furtado os homens só deviam estar atentos à perna da Catarina sobressaindo na racha lateral enorme, do vestido. Eu pensei assim: Tens um marido fabuloso. É preciso aquilo! Minha nossa! Ela é giríssima. Mas para quê aquilo? Porque o marido deixa. O estilista é que manda. Eu só penso que aquelas têm uma sorte danada com os maridos.
A minha amiga hoje está decididamente com os azeites. Atribuo isso aos tempos difíceis que atravessamos. Mas ela conclui, mais calma:
- Outros dirão: Vocês têm é dor de cotovelo, por não serem assim jeitosas.
E eu concordei. Mas a minha amiga ainda acrescentou:
- Agora a Bárbara toda extrovertida na apresentação da festa do Natal… E o marido aceita bem, que é democrata.
Mas falou de outras mulheres nossas:
- Se há mulheres que estão dentro da política, que se juntem aos homens. Talvez governem com mais acerto. Eu vi há dias a Maria de Belém e a Teresa Caeiro a falarem sobre o Ali Babá e os quarenta ladrões.
- Tão poucos?
– Espantei-me.
- A Teresa Caeiro é tesa, a dizer que não se pode deixar que o Governo vá contribuir com mais dinheiro, para o BPN. É um escândalo.
- Pois é. Mas temos também as mulheres das cantigas que a minha mãe canta, em versos que nunca lhe tinha ouvido. Ora veja, segundo a canção “Margarida vai à fonte” de João Vasconcelos e Sá:
Ó Margarida moleira
(bis)
Dá-me da tua farinha,
Que eu vou-te picar as mós
(bis)
Se prometeres ser minha.

Margarida a tua vida
(bis)
Não a contes a ninguém.
Se uma amiga tem amigas
(bis)
Outra amiga amigas tem.

O sete-estrelo vai alto
(bis)
Mais alto vai o luar
Mais alta vai a ventura
(bis)
Que Deus tem para nos dar.

Ó estrelinha do Norte
(bis)
Espera por mim que eu já vou!
Que me hás-de alumiar
(bis)
Já que o luar me enganou.

E passámos a referir as proezas – desta vez da memória - de mais uma mulher. Centenária.
Que o seja, por muitos anos mais, são os votos especiais do meu Natal.

Notícias do meu país

Eu bem quis falar na grande surpresa decepcionada que tive há dias ao ouvir o professor José Hermano Saraiva afirmar, num programa dos anos 4 deste século que fora ele, quando era ministro da Educação, (anos 68 a 72 do século derradeiro, segundo informa a wikipédia da rápida consulta), que impusera a substituição da História Universal nos cursos secundários por uma História portuguesa local, abordando as fofocas nacionais para enriquecimento intelectual dos nossos alunos, cada um posto em sossego de pesquisa dos heróis ou das pedras megalíticas e com isso diferenciando os exames finais que, de nacionais e por consequência comuns a todos, se transformariam em regionais, com as especificidades propícias às regionalidades.
Lembro-me desses tempos longínquos causa de furores sagrados de professora que, quando aluna até gostara de aprender as coisas da História e da Geografia universais, mesmo os cabos, como pontas importantes de viragens e avanços, e lamentava que os jovens não pudessem sentir os mesmos prazeres de penetração no mundo que eu sentira ao decorá-los no mapa.
Foi por isso também que me irritei com uma afirmação do Carlos Pinto Coelho, em entrevista recente, na sua casa do Alentejo, condenando a aprendizagem dos rios portugueses e citando-os, a ele, estudante em África. Também eu os aprendera e mais os afluentes, assim como aprendera os rios de Moçambique e das outras terras da conquista portuguesa. Sem revolta. E os nomes esquisitos da mineralogia, sem os pôr em causa. O Dr. Rosa Pinto era o nosso professor de mineralogia/geologia e exigia tudo bem sabidinho. E os prazeres da descoberta da língua grega no seu alfabeto que ainda hoje recupero com saudade e que esquecíamos tão facilmente como aprendíamos! À quoi bon? Pois tudo serviu para nos ir fortalecendo no amor pelas coisas sagradas do saber, embora precário e limitado, mas fonte de alegrias de descoberta gradual do nosso mundo, conhecido através da memória, reconhecido pela experiência de viagens ou outros meios, se a vida o proporcionasse.
Por isso não gostei de ouvir que José Hermano Saraiva, que tanto admiro, na correcção do seu discurso finalizando sempre de modo apoteótico ou moralizador, e no seu profundo amor pelas coisas nacionais e no desassombro das suas críticas ao nosso desmazelo, que tivesse sido ele, quando ministro da Educação, a propor tal mudança estapafúrdia na programação escolar, a História Universal substituída pela regional.
Felizmente não lhe deram atenção, embora eu julgue que, com o 25 de Abril, a História deixou de ter o relevo que tinha, tal como o francês e as coisas da cultura, substituídos pelos trabalhos de projecto, posta a memória em sossego, a juventude colhendo o fruto dos seus anos, nos seus enganos de corpo e alma que a Fortuna não deixa durar muito, todos deviam saber disso.
Mas a minha amiga preferiu as presidenciais, nos discursos vazios a que ninguém liga.
- Mas o Cavaco elogia os compadres. São todos bons. Gosta muito dos quatro. Será assim? Coitados, não têm nada para dizer! O povo não lhes liga a mínima, o Alegre “pondo lixo na ventoinha”, segundo li num artigo.
- Então é porque o vento já lhe respondeu. Deve sentir-se feliz agora.

domingo, 19 de dezembro de 2010

E o mundo deixa

Hoje ouvi um programa sobre os trabalhadores do Dubai, gente das Índias a trabalhar nas condições mais degradantes, que facilmente equiparam o trabalhador a qualquer bicho da selva, com vantagem para este, pelo menos no que concerne os requisitos de higiene pessoal, absolutamente descurados entre aqueles homens de bairros invisíveis, rodeados por tapumes, para não haver devassas sobre um esmagador edifício de riqueza e originalidade arquitectónicas que pusessem um dedo acusador sobre a obscenidade de tal edifício obtido na exploração e no desprezo humano, com a aprovação do mundo embasbacado.
Mas a minha amiga informou que no Dubai foi inaugurada a árvore mais rica do mundo, com jóias, por dentro, e ficámos satisfeitas com os prenúncios de bem-estar que tais prodigalidades deixam transparecer, esquecendo nós a sorte dos miseráveis que ajudam à construção das belezas arquitecturais do Dubai. Lembrámos até o peso em ouro e mais tarde em diamantes que a colónia indiana moçambicana oferecera ao Aga Khan nos nossos tempos de moças, alvitrando que talvez na árvore do Dubai se encontrassem ainda vestígios dessas oferendas, que, segundo os costumes bíblicos, já tinham sido prodigalizadas pela rainha do Sabá ao próprio Rei Salomão, que aliás as merecia por ser tão sábio. E do rei Salomão, desprezando os reis faraónicos, também bastamente exploradores, passámos ao próprio Menino Jesus, ele próprio com reis magos a levar-lhe ricos presentes, de que bem precisava, coitadinho, ali aquecido em palhas.
Não, o melhor mesmo é transcrever mais uns versos, creio que um tanto empanados, a condizer, que a minha Mãe vai desenterrando do seu passado, expressivos das dores do Homem que morreu na cruz, não as alegrias do nascimento que festejamos. Eles são mais de acordo com o sofrimento dos explorados do Dubai, dos explorados do mundo inteiro. Que o mundo inteiro deixa explorar, embora colaborando, submissamente, nos cabazes de Natal:

No dia em que Jesus jazeu
Muita nuvem se descobriu,
Já canta a Humanidade:
Oh! Quantos golpes sofreu!
Muita alma se converteu
Para ganhar a Salvação.
Sexta feira de Endoenças,
Sábado de Aleluia,
Domingo de Ressurreição.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Acontece

A grande novidade hoje foi a morte de Carlos Pinto Coelho.
Ambas lamentámos, como já lamentáramos o desaparecimento do “Acontece”. Às vezes trocávamos impressões sobre uma figura que marcou positivamente os anos em que durou esse seu programa, de entrevistas, leituras, revelações, feito com garra, numa actuação vibrante e apaixonada, a que não faltava, por vezes, a contundência do discurso crítico.
Eu costumava comparar o jeito de Carlos Pinto Coelho ao de Bernard Pivot, jornalista e apresentador de programas culturais franceses, que conheci através do seu “Bouillon de Culture” e dos seus ditados em língua francesa, faseados segundo as várias idades e dirigido não só aos nacionais mas a todos os povos francófonos e amantes da língua francesa, lamentando que aqui se não instaurasse idêntico processo de difundir o amor e o brio pela nossa língua e cultura, embora tal proposta não tivesse hoje mais sentido, é certo.
Mas Carlos Pinto Coelho, que tinha a voz, o empenhamento e mesmo, creio, os conhecimentos necessários para arcar com uma responsabilidade dessas, se a isso se propusesse, nem sequer foi respeitado como protagonista de um programa indispensável para nos acordar do marasmo dos nossos programas de modinhas e de problemas cívicos e governativos da nossa facúndia palreira.
Carlos Pinto Coelho morreu. Na flor da vida. Uma injustiça dos céus, a somar a outras injustiças que por cá sofreu, como sofrem, muitas vezes, os que se distinguem por qualquer atributo de valor, como a história tantas vezes documenta.
Afirmou um dia, Carlos Pinto Coelho, que o seu livro preferido era “Aparição”, de Vergílio Ferreira. Pelos valores humanos que foca, da angustiante busca do eu, e a assumpção da plena responsabilidade dos actos individuais, isentos de um Deus como princípio determinante.
Penso que Carlos Pinto Coelho teve sorte, no seu final breve, em plena euforia de um próximo trabalho. Sem se dar conta. Sem questionação. Sem luta.
Deixando saudade. E pena.
E a engraçada caricatura que dele fez Herman José.
Aconteceu.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

As cruzes do nosso saber

A e i o u, ai eu ui ia, fui, tia, voar …
E às vogais juntando-se consoantes, formando sílabas, formando palavras com sentido, de uma dificuldade gradualmente acrescida, a inteligência da palavra ou da frase fazendo-se por soletração…
E as crianças faziam cópias, cópias de dificuldade crescente, e ditados, e correcções de erros, repetidamente, trabalhando a memória, trabalhando as mãos, aprendendo a escrever, a ler, a contar, a reproduzir, a manipular os instrumentos da sua escrita … Era assim com a Cartilha Maternal e seus substitutos, assim foi no meu tempo, creio que com mais imagens de apoio, mas respeitando a lógica da aprendizagem do simples para o complexo, por junção de letras em sílabas e palavras.
O método global associou a palavra à imagem e à frase, partindo do complexo para a letra. A criança associa a palavra à imagem e lá vai progredindo, aprendendo as letras dedutivamente. Sempre ouvi dizer que aquilo é que era bom, eu nunca entendi porquê. Partir da frase ou da palavra para o alfabeto, ainda que acompanhadas das imagens, achava um desperdício de tempo, um desrespeito pela lógica, um brinquedo de mau gosto, fantasioso e falso, já que inúmeras palavras não têm o correspondente objecto figurativo, a começar na asneira e a acabar na esperança.
Tais macacadas não resultaram, creio, mas hoje vejo pelos livros do primeiro e do segundo anos que o lúdico se impõe na aprendizagem, que às imagens se associa a leitura melódica, pois que a maioria dos textos é em verso, suponho que para a professora ler e bem assim as propostas de exercícios – rodear as letras, colorir objectos que contenham tais letras, completar palavras com essas letras, procurar palavras pela associação de sílabas, as sílabas de cada palavra pintadas com o mesma figura geométrica, fazer palavras cruzadas a partir dos desenhos… Divertido, sim, sobretudo para quem domine já a leitura. Mas a criança com maior dificuldade de compreensão, sozinha, não vence facilmente tais dificuldades. Porque lhe faltou o progressivo domínio linguístico quer ao nível oral, quer ao nível escrito, pela leitura e cópia exaustivas.
O livro “Pirilampo” do 2º ano, segue idêntica linha de rumo, muito divertido, à base da compreensão dos textos, das imagens, dos jogos, das sopas de letras para encontrar palavras, da organização de não frases em frases… Mas muitos dos textos são em verso, brinquedo que deixa os meninos perplexos, com os desvios retóricos ou lamechas, e não desenvolve grandemente o raciocínio lógico, que se deveria ter como objectivo primacial, na idade da razão que começa pelos sete ou oito anos. O desejo de divertir leva à criação de neologismos idiotas, inspirados em Mia Couto: é o caso de “espantente” seguido da explicação entre parênteses (“espantado e contente ao mesmo tempo”). Com tanta proposta de exercício, para cada texto, não sobra muito tempo para o repisar de leitura e escrita, com cópias, ditados e correcções indispensáveis à manipulação oral e escrita.
O mesmo se dirá da matemática, com apelo ao raciocínio, através de jogos interessantes, mas preterindo o domínio das tabuadas, sem o qual, não há problema ou jogo de decomposição de números que seja compreensível.
Os alunos acompanhados pela família ou o explicador terão mais probabilidade de êxito. Mas penso nas crianças cujas famílias os não acompanham quer por indisponibilidade de tempo ou de conhecimento.
É bom jogar, mas o tempo para interiorizar, adquirir estruturas, é imprescindível.
Infelizmente, até na instrução pretendemos pôr o carro à frente dos bois. Sem aprendermos a bem ler, escrever e contar, dificilmente o aluno interpretará, sozinho, as questões de diversão que requerem inteligência para a sua interpretação.
E as deficiências progredirão ao longo do ensino, nos domínios da construção frásica e da ortografia.
Da matemática.
Mas podemos sempre substituir o pensamento elaborado pelas cruzes das respostas múltiplas. Ou do verdadeiro ou falso.
A solução está nas cruzes.

Uso e abuso

Cavaco Silva anda embrenhado nos clássicos fatalistas. Ouvi-o ontem, mas creio que ele já o tinha dito antes, afirmar que os lugares do Governo são efémeros. Creio que descobriu isso agora para nos convencer a nós de que qualquer dia sairá do seu, e que os cinco anos mais a que vai concorrer passam num ai, não vale a pena os que o não suportam afligirem-se com isso, porque mais dia menos dia ele deixa a pasta, embora não se lhe desse, cuido eu, que o seu efémero se pudesse prolongar até cair da cadeira, mas isso, por enquanto, só o Dr. Jardim é que tem o privilégio de fazer concorrência ao da queda, na sua ilha autónoma, embora o nosso PM possa sempre instaurar uma lei de prolongamento governativo “sine die” para os que se acham imprescindíveis, como ele próprio também, mesmo que seja num trabalho de construção destrutiva, na afirmação rancorosa da minha amiga que só vê as fábricas a fecharem, os despedimentos a entrarem, as frutas a serem importadas, as ourivesarias a serem assaltadas, etc., etc., além de que também se incomodou, a respeito dos “lugares comuns em barda” do PR, ditos de uma forma triste e suave, eu diria mesmo tartufiana, pura megalomania minha, reconheço.
- Diz coisas de que a gente nunca se tinha lembrado. Lugares efémeros! Foi preciso que ele dissesse, que nunca isso nos passara pela cabeça. Mas as coisas que ele diz que a gente não quer acreditar que ele seja presidente deste pedaço! E afinal o esbanjamento começou no tempo dele, como ministro principal.
Aí, discordei:
- Eu acho que o esbanjamento começou antes, logo com a reviravolta abrilina. Mas com a entrada na Europa, os dinheiros de lá escorridos possibilitaram todos os maquiavelismos do deslumbramento para os pobres que éramos, e a trafulhice aliou-se naturalmente aos empreendimentos.
- Um país pobre a viver como um país rico! Lá que um labrego se convença… Mas estes economistas só agora é que deram o braço a torcer, a dizer que o dinheiro não chega e que têm de prestar contas!
- Ai, mas nós vamos prestá-las, pode crer. Nunca deixámos de prestar. Estamos a prestar já. Só não presta quem pode. E só paga quem pode, a isso forçado. Nós, os forçados, podemos. Estamos habituados. E cara alegre, a Marina Mota ensina, na sua versão da “Música no Coração”, que ouvi hoje:
“Gosto de andar
De saia e blusa
Mesmo que digam
Que já não se usa.”
Entre nós o uso é para manter.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

“Já temos um tornado, coisa que a gente não tinha”

- Afinal somos p’rà frentex, somos iguais aos outros - disse a minha amiga, a optimizar perspectivas radiosas para nós, para contrapor ao tom depreciativo das suas expansões habituais. – Já temos um tornado, coisa que a gente não tinha.
Censurei a troça, reivindiquei mesmo, não digo um tornado, mas os nossos ciclones, lembrando um, dos meus tempos de criança, na aldeia onde vivia, que destelhou o telhado da nossa casa e obrigou a minha mãe a pôr vasilhas no chão para não termos que boiar no chão da cozinha. Mas concordei que tornados de fazer andar tudo num virote diabólico, só mesmo lá pelas Américas, por enquanto. Nós estamos ainda no paleolítico, não nos devemos precipitar em paralelos modernistas.
Não, nunca chegaremos aos calcanhares de ninguém, nem mesmo nos tornados.
E contei de um programa francês que ouvi há dias, antes do “Questions pour un Champion”, programa de entrevistas que, nesse dia, coube a um jovem português responder. Talvez fosse seminarista, talvez fosse frade, ouvi-o tarde, não captei a apresentação. Mas fiquei engasgada com a linguagem doce, de jovem que deseja manter a ingenuidade do menino, que não larga a casa dos pais, que fala em bondade e nada mais, que não se afirma como ser responsável, mas se serve de uma linguagem banal, sem objectivos reais, um discurso vazio, repetitivo, de um lirismo torpe, sem uma ideia, sem um conhecimento feito de leitura, de reflexão, de evolução no raciocínio, discurso babado, discurso abjecto. A idiotia sem tréguas, como resultado da educação que tem sido a nossa.
- O quê? Já? – foi o meu comentário agoniado na constatação de uma realidade pegada à nossa pobre crosta nacional.
Mas a minha amiga, confiante nos tornados que já cá temos, insiste em que os nossos Magalhães vão ajudar à reflexão da nossa juventude.
Não posso, pois, precipitar-me nos meus complexos humilhados, no paralelo com outros jovens de outros sóis diferentes. Felizmente ainda temos jovens autênticos, responsáveis. Que não chegam, é bem verdade, para limpar da crosta.
- O autor do programa francês foi muito pouco simpático – concluí com rancor - ao escolher tal exemplar para a imagem da nossa juventude. É por isso que a nossa auto-estima se vai esboroando, mesmo sem tornado que preste.
E ambas largámos os tornados, para desancar, patrioticamente, a vileza xenófoba do autor do programa francês, que sabia bem quanto nos expunha ao ridículo, com aquela figura flácida e alva, largando inépcias, buraco negro do nada.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Mudanças de estado

Esopo dizia claramente
Na fábula de Zeus e da raposa
Que qualquer vilão,
Ainda que mude de condição,
Não muda facilmente
O seu comportamento
Segundo o primeiro talento
Obtido no nascimento.
Serviu-se, julgo eu,
Para a sua demonstração,
Das leis da física -
Embora essa disciplina não existisse ainda
Nas escolas da Grécia Antiga -
Mas que ele devia conhecer
Por experiência
E pelo saber da sua inteligência:
Usou, assim,
O exemplo da água
Que, seja pura ou impura,
Muda de estado, sem qualquer desmazelo,
Conforme a temperatura:
Em ebulição, torna-se vapor
Em solidificação ficando gelo,
Podendo, entretanto, regressar,
Sem nenhuma espécie de tacanhez,
Ao primitivo estado de liquidez.
Basta, para tal, o arrefecimento
Do calor,
Ou o aquecimento
Do gelo,
E tudo desaba em água,
O que pode causar uma certa mágoa
Por conta das secas ou das friagens
Das nossas terrestres derrapagens.
Eis o que Esopo afirmou
Na sua fábula

“Zeus e a raposa”:
«Por tanto admirar
Da raposa a inteligência
E a ondeante subtileza
Da sua esperteza
Zeus dela fez, uma certa vez,
Rei dos animais.
Todavia,
Sem benevolência,
Desejou verificar
Se, ao abandonar
A sua vida primeira,
A raposa matreira
Se despojaria
Da sua sórdida avidez,
Um dos pecados capitais.
Como a raposa passasse em liteira
Zeus um zângão enviou
Sob os olhos dela e viu
Que a raposa não se reprimiu,
Pois enquanto o zângão pulava
E esvoaçava
Em torno da liteira,
À volta dele ela saltava,
Todo o decoro desprezando
Saltando, pulando, regougando
Bem à sua primitiva maneira,
Esquecida a liteira
E o sentido dela

De distinção fagueira.
Indignado contra ela,
Zeus repô-la
Na sua posição primeira
De simples raposa matreira
Sem eira nem beira.
A fábula mostra bem
Que os medíocres
Mesmo que se expandam em riqueza,
Não mudam de natureza.»

Todavia,
Eu o mesmo não diria:
Discordo deste conceito
De Esopo fabulista
Porque sigo outra pista
Sobre as mudanças de estado,
Não as físicas da matéria,
Mas as sociais
Comportamentais.
Muito pelo contrário,
Tais mudanças de estado
Trazem tantas vantagens
Ao seu usufrutuário,
Que forçosamente
Quem mudou de estado e de ambiente
Melhorou
Com extrema magnitude
- De cara, de feição, de atitude,
Por vezes até de virtude
Para sempre.
Basta, para tal,
Uma forte sorte
E muito norte,
Sem que tal seja por mal.
A mudança traz constante evolução.
E uma nova posição
Social
Provoca necessariamente
Maior concentração
Por via da obtenção
Não só da geral admiração
Mas da particular autopromoção.
E por isso não há que recear
Uma realeza, escolhida na surpresa
Da repentina afeição
Parcial,
A descambar
Para o primitivo estado de vilão.
Não.
A mudança, em Portugal,
Não corre qualquer risco de baixar,
Tenho a certeza.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

“Agora tem o diploma na mão e continua no balcão”

Mostrei à minha amiga um excerto de um livro antigo – “Os Grandes Processos da História” de Henri Robert (1º volume) – sobre o “Processo de Nicolau Foucquet”, superintendente das finanças do jovem Luís XIV, condenado por peculato numa administração que o tornaria um ricaço feito mecenas numa vida de ostentação, por abuso dos seus poderes de superintendente, durante a menoridade daquele rei.
Num discurso claro e de amplo conceito sobre as molas que regem os comportamentos humanos, Henri Robert vai analisando, com o rigor da investigação histórica e a sensibilidade do intérprete humanista, os labirintos em que se movem as ambições que fizeram despenhar esplendores na perversidade cruel de castigos nem sempre regidos por uma justiça de impecabilidade.
Entretanto, nesse descritivo biográfico sobre Nicolau Foucquet, uns excertos existem que me pareceram do nosso conhecimento, tanto antigo como recente, e por isso os mostrei à minha amiga, com o prazer de uma descoberta, não só de parelelismo de actuação abonatória do nosso tão geralmente acusado antigo Presidente do Conselho de Ministros, como ilibatória dos nossos desmandos governativos de trinta e pico anos a esta parte.
Eis o excerto abonatório, que a minha amiga imediatamente equiparou a quem de direito:
“Estava-se longe dos tempos felizes em que o bom rei Henrique IV e o seu ministro Sully administravam as Finanças da França com tanta sabedoria e economia que, com um orçamento anual de menos de oitenta milhões, achavam ainda meios de fazer anualmente, em média, setecentos mil francos de economia, e de constituir assim um fundo de reserva de mais de cinco milhões.”
Eis o excerto ilibatório da governação dos últimos anos de “gaspillage”, em denominação erudita, e ilibatório porque nos revela antecedentes ilustres das nossas sensaborias esbanjadoras, a que falta o esplendor das gaulesas:
“Havia muito tempo, infelizmente, que esse fundo de reserva fora dissipado.
Já não se vivia senão de expedientes, da mão para a boca, e a desorganização das finanças facilitava todos os abusos.
Mazarino, hábil político, não era, rigorosamente, um ministro económico.
Não se preocupava com questões de dinheiro, mas precisava dele constantemente.
Era um sorvedouro, cujas imperiosas exigências nem toda a actividade do superintendente Foucquet bastava para satisfazer, conquanto este já tivesse tido que lançar mão adiantadamente dos anos vindouros.
Os impostos, naquela época, eram geralmente arrendados, isto é, cobrados por arrendatários que obtinham esse direito em concorrência pública, mediante uma prestação anual que se comprometiam a pagar ao Estado.
Quanto aos empréstimos, não se faziam, como hoje, sob a forma de subscrições públicas; eram, embora às vezes consideráveis, concedidos ao rei ou ao superintendente pelos financistas opulentos da época, por prazo mais ou menos longo, e a taxas de juros em geral bastante elevadas.
O superintendente encarregado das receitas estava, pois, em constante contacto com os capitalistas ….”
Concordámos nas analogias, informei que o processo em que Foucquet esteve implicado, devido à sanha de Luís XIV manobrada subtil e sinistramente pela de Richelieu, durara três anos e acabara com condenação, ao contrário dos nossos processos que são prolongados sine die, sem condenação nos casos mais poderosos, embora, muitas vezes, com meios igualmente ilícitos de os solucionar.
Mas a minha amiga passou aos nossos tempos de agora, no que concerne uma juventude que frequenta cursos superiores e sai com diploma e se emprega no que aparecer, numa escalada de procura de emprego facilitada pelos meios informáticos, é certo, mas perfeitamente anedótica no que estabelece como desvalorização humana e dos próprios cursos superiores ou mesmo intermédios.
- Realmente – concordei – no nosso tempo os cursos superiores eram em menor número mas convincentes, e agora ninguém sabe muito bem com o que contar, traduzindo-se tudo isso numa baralhação de propostas de cursos que pouco terão de verdadeiramente científicos, com estágios pelo meio, talvez úteis, mas proporcionando aos estudantes poucas horas de um estudo autêntico, que um curso superior forçosamente deve implicar. Mas sabia-se, ao concluir um curso superior, que mais cedo ou mais tarde, ele nos catapultaria aos empregos adequados a cada formação e hoje em dia tal não sucede.
E a minha amiga concluiu:
- Mas os próprios jovens já dizem que antes isto, de conseguirem um empregozito reles mais ou menos explorado pelos patrões capitalistas, do que andarem por aí à deriva. Não sei como estes jovens podem encarar isto. Saem das universidades quantidades enormes de jovens formados. Mas mercado de trabalho não existe, não há emprego para ninguém.
E a minha amiga concluiu, na tristeza do dia chuvoso:
- Agora o formado tem o diploma na mão e continua ao balcão.
- Sim, é o resultado das más políticas. Os franceses sempre se ergueram dos descalabros, assim como todos esses povos que apostaram na formação. Mas a nossa formação com as novas oportunidades e quejandos soa muitas vezes, actualmente, a fraude. Não, não podemos “crer em nós”. “Seremos sempre os que tínhamos qualidades, os que esperámos que nos abrissem a porta junto de uma parede sem porta”… “Seremos para sempre os da mansarda...”

sábado, 4 de dezembro de 2010

“O mundo está viradinho do avesso”

Foi a respeito da Cimeira da NATO, já passadas as suas referências corrosivas aos blindados, que, por não terem chegado, mau grado o empenhamento do nosso Governo em defender o Presidente Obama de possíveis agressões dos nossos terroristas, tal facto causou nela um mal-estar de humilhação, sensível como é às desconsiderações externas com base nas nossas penúrias internas. Sendo essa uma característica muito nossa, como já tenho explicado, a de não admitirmos desconsiderações a ninguém, tal o Damasozinho Salcede.
A minha amiga desejou, contudo, ultrapassar o baixo astral - ou astrau se partirmos de um princípio de acordo linguístico brasilófono - concordando com a eficácia das cimeiras, embora num ricto de enfastiada aceitação:
- Mas é claro que são boas as cimeiras. Há um compromisso, mas os compromissos vão todos ao ar. Excepto o do Sócrates do TGV, com o seu amigo Zapatero. Sim, as cimeiras são boas, mas não conseguem travar. Os países têm esses potenciais - explicou a minha amiga à minha dica preocupada sobre o ataque da Coreia do Norte à do Sul, já depois da cimeira. – Um dia servem-se desses potenciais e pronto. Aí vai o mundo pelos ares.
- Ainda bem que tivemos uma Cimeira a impor colaboração dos países atlânticos, com a Rússia alinhada, agora. Nós também mandamos tropas para ensinar as artes bélicas no Afeganistão, a fim de se defenderem melhor quando forem independentes, isto é, libertos do auxílio americano, em 2014, segundo Obama.
- Sim, mas esta cimeira era sobretudo para prevenir. Travar os lançamentos de mísseis. Mas o mundo está viradinho do avesso. E tudo é um escândalo, pelo menos na parte que nos toca. Um país em que a sua Justiça não está de saúde, o que pode acontecer? São os que trabalham lá que o dizem, que falam em compadrios. Mas temos que ser justos. Não são os de agora que têm culpa. Já vem muito detrás.
- Uma revolução injusta só podia fundar-se em propostas injustas. É um ver se te avias de ilegalidades -
insisto, em velhos rancores inesquecidos, largamente apodados de fascistas, naqueles tempos do início.
- O ser humano é mal formado. E sobretudo todos os que têm o poder na mão. E então quem pode fazer leis!
- E o que me diz da promessa do presidente socialista do governo açoriano de cobrir os cortes salariais de uns tantos funcionários públicos? Onde é que ele vai buscar o dinheiro para executar a promessa? Aos funcionários do continente? O meu marido falou em manobras pré-eleitorais…
- Mas quem lhe permite esse poder? Realmente, já não sabemos quem governa. E o que me diz a 22000 restaurantes que fecharam? E às casas de Lisboa a ruir? Vá à Internet e veja o número de casas a precisarem de restauração em Lisboa. É uma vergonha para quem governa aquela área do país que foi escolhida para capital. Aqueles assessores que a Câmara escolheu – tudo aos molhos – ninguém trata? Caiu mais uma e ardeu mais outra e não morreu ninguém. Claro que as pessoas ficam desfalcadas. Mas não morre ninguém. Quem lhes vale é o Santo António. Santo António é de Lisboa, é quem lhes vale, não são os assessores.
Uma conversa variada, a nossa, hoje. Merece que a complemente com uma metáfora botânica da minha mãe, a falar da necessidade de nos alimentarmos, a propósito das dietas que fazem as pessoas que cuidam muito da sua elegância:
- “Olha que o corpo não tem outra raiz”.
Mas a minha mãe não está a par da falta de raízes para os corpos que já tanto se faz sentir por aí. E, encantada com o efeito da sua graça, disse outra a seguir, evocando a malícia do seu pai, em versão profética contemporânea do próprio Rasputine :
- O que é que o meu pai dizia? “Diabos te levem a cabeça, fora os piolhos”.
Será, talvez, o que de nós restará, levada a cabeça pelo diabo.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mesmo sem hino

A minha amiga reproduziu a voz do nosso distinto Engenheiro :
- “Metam isto na cabeça, portugueses. Nós não precisamos de ajuda.” Ai, mas a lata daquele gajo!
Concordei. Porque ouço outros, que aparentam ser versados em Economia, a agoirar a entrada breve do auxílio externo para longo pesadelo interno. Só não concordei com aquela do apelativo “portugueses”, mais escutado num general carismático, como fora o general Eanes. A minha amiga continuou:
- Mas há muitas vergonhas apontadas aqui: Esta do aeroporto de Beja, onde já se gastaram muitos milhões e agora vai parar porque faltam muitos mais… Os milionários que já só são multimilionários e têm tudo nos off shores… Se foi dinheiro roubado, nunca se vai saber, porque ninguém tem poderes para saber da história completa. Porque fica pelo caminho. As leis foram feitas por uma metade séria e a outra que faz as leis a favor deles.
Discordei dos quantitativos, o quantitativo da parte séria nem por sombras chegando aos calcanhares do quantitativo da parte não séria, e apressei-me a justificar as minhas asserções recorrendo a figuras com muito mais calibre histórico do que as nossas, e que assim lançaram vetusto lastro de irregularidades penais, exemplificando com a rainha Isabel I da Inglaterra que lixou Maria Stuart ao criar leis para a poder mandar decapitar dentro das normas legais, ainda que recentes.
E foi aqui que, inocentada a nossa Justiça, por via destes meus oportunos conhecimentos históricos, nos lançámos a evocar o hino da Restauração que aprendemos na nossa instrução primária, de par com a respectiva história, e assim homenagearmos aqueles homens sem os quais hoje não poderíamos evocar as figuras sagradas dos cultivadores da língua nacional e outros de idêntico calibre, que nos fazem ainda manter a chama do amor pátrio.
A minha amiga também se lembrava do hino, e assim o cantámos em surdina, na discrição da esplanada deserta, por via do frio que fez hoje, 1º de Dezembro, logo pela manhã arrefecido com uma queda brusca de saraiva, a fazer recear outras quedas bruscas.
Um hino patriótico, tentando manter a chama da exaltação pátria. Mas conviemos que muitos são hoje os prontos a liquidá-la, à chama, mesmo a coberto de boas intenções, de que, dizem os experientes, o Inferno está cheio:
«Hino da Restauração
Lusitanos, é chegado
O dia da redenção
Caem do pulso as algemas
Ressurge livre a Nação.
O Deus de Afonso em Ourique
Dos livres nos deu a lei;
Nossos braços a sustentem
Pela pátria, pelo Rei.
Às armas, às armas,
O ferro empunhar.
A pátria nos chama
Convida a lidar.
Lá lá lá lá lá lá lá
A lidar.»
É urgente uma restauração. Mesmo sem hino.

Escândalos (Continuação inconclusa)

- Mas isto dos blindados é uma ofensa à população. Como se aqui houvesse gente do género dos do morro! – continuou a minha amiga verdadeiramente indignada.
- Há umas tentativas de aproximação, não somos menos que os outros! Temos espalhados alguns redutos na criação e fabrico de drogas com algum alcance, ora essa! E até com armas, à maneira! Mesmo sem morros que se vejam.
- Mas enfim, só chegou um blindado, que é o que foi para o futebol, para ser usado nos futebóis, lugar de eleição para as nossas batalhas campais.
- Esquece as parlamentares. Verbais.
Mas estou condenada a falar para os botões. Próprios, não os alheios. Continuou, sem dar atenção, plena de recursos cognitivos:
- Nos bairros onde há problema cá, blindado não passa. A menos que reduzam a largura do blindado, ou aumentem a das vielas.
- Então que sirva para os futebóis, para encher de brios na marcação dos golos, como disse que um jornalista escreveu.
Falámos de outros escândalos:
O Cavaco que chora para ficar, numa auto-avaliação toda positiva, sobre a verdade da sua honradez e da sua competência e experiência apelativas do voto da plebe, quando a plebe está mais que farta dos seus ares simultaneamente tristes e tranquilizadores sobre um futuro financeiro que diz não ser tão mau assim, o que se vai provando ser fastidiosamente falso, de tal maneira que não há estômago que lhe aguente os dizeres, mas que lhe dá o voto, por saber que os dizeres e os fazeres dos outros concorrentes também não valem a pena, triste país que somos, sem rei nem lei e sem cheta, genericamente falando. Particularmente, ainda há bastantes com.
O caso do hospital novo de Cascais, que levou anos a construir-se e que já não chega para as encomendas, aonde falta tudo, e as camas e os carrinhos e as visitas se amontoam nos corredores, fazendo lembrar “uma feira de Marrocos” na expressão desesperada da minha amiga, mandando-se os doentes muito graves para casa, com um subentendido “vai morrer longe” aterrador. Porque o quarto deles está a ser preciso para os do corredor.
E a minha amiga conhecia casos. Uma senhora sua amiga a quem iam dar alta, porque já não havia nada a fazer. Falámos disso anteontem. Não havia clínicas na linha que a recebessem. Felizmente morreu ontem.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Felizmente não temos morro

Falámos em escândalo, como cenas do nosso genérico ambiental:
- O que é que não é escândalo? Veja! As cenas miseráveis no Rio de Janeiro! Eles mostraram a fortaleza de criminosos e traficantes. Vivem como milionários. Têm tudo dentro do morro, os tais bandidos! Apanharam vinte e eles são seiscentos.
- Só? –
pergunto, mansamente.
- O governo está a gastar milhões, a prometer acabar depressa. Espera aí que aquela guerra vai mesmo acabar! São ladrões, são assassinos, olha a força daquela raça…
- Autênticos “bin ladens”
, consegui articular, mas a minha amiga prosseguiu:
- E a nossa anedota dos blindados na cimeira da Nato?! Não fazem falta nenhuma, porque felizmente não temos morro. Mas alguém estava à espera que os terroristas viessem aí? Bastou o treino dos polícias para o caso do Obama ser molestado, não eram precisos blindados.
- Pois! Além disso o Obama trouxe os seus guardas, teve sempre as costas quentes.
- Ai meu Deus! Não há vergonha!
- Pois não! Não havia dinheiro à vista para pagar os blindados das nossas megalomanias. Foi humilhante. Mas dá para um fado, ao jeito do Frederico de Freitas, mesmo sem a voz da Amália:

Blindado! Torturado!
Tão magoado!
Quem te fez, blindado?
Não sei quem foi!
Só sei
Que não vieste e chorei
Mas que por ti esperarei
Para defenderes quem cá vem.
Só sei
Que é um sonho bem risonho
Que um dia hás-de chegar
E eu vivo e sonho a esperar.

- Ora! Para quê? Não temos morro!
- Sim, mas há sempre por aqui uns esconderijos, uns bairros esquisitos, que andamos a tentar destruir, mas que renascem das cinzas, como a Fénix. E vive gente nesses antros, com bons carros à porta, como nos morros. Nunca se sabe onde se pode chegar, mesmo sem morro.
- Mesmo assim, acho que os nossos escândalos são outros.

A minha amiga está pelos cabelos.
(Continua)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Disco rachado

Já o tenho dito. A um terço do caminho para os 104, a minha Mãe causa-me espanto crescente, quer na recuperação dos seus dados biográficos, quer na evocação de versos ou histórias que antes não lhe ouvira, quer na expressividade das suas modulações de voz e dos gestos amplos com que acompanha por vezes a sua oratória, que me lembra os jeitos do meu Pai em situações festivas dos discursos ternos em família, que tanto admirava nele, na minha incapacidade oral de bicho introvertido.
Saiu-se ontem com a seguinte história:
«O Vale da Porca é uma quinta que vem de Cercoza para o Carregal. Pertencia a um Gaudêncio ricaço e avarento e era dirigida pelos caseiros do Ral, que muita fominha passavam. E a lenda espalhou-se até lá pelo Carregal. Era entre um cão, um galo e um moinho.
O cão ladrava: “Fom’! Fom’! Fom’!”
O galo cantava: “Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu!”
E o moinho, que andava debalde, sem grão debaixo da mó: “Sempre assim foi! Sempre assim foi! Sempre assim foi!”»
E a minha Mãe acentuava cada uma das frases com força e prolongamento de explosão. E ria. E recontava a história, muito feliz.
E eu a reconto, a propósito do nosso Orçamento debatido e aprovado em ficção já muito gasta, de uma antiga situação neste nosso Vale da Porca, com donos da quinta avaros e incompetentes, caseiros da quinta queixosos e resignados ou soltando as vozes do seu descontentamento:
“Fom’! Fom’! Fom’!
Sempre assim foi! Sempre assim foi! Sempre assim foi!
Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu!”
Como música ininterruptamente monocórdica de um disco antigo, rachado. E esquecido.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Homo sum?

A seguinte fábula de La Fontaine
Tem muito de universal,
Como é o próprio das fábulas
Que se colaram a nós,
Como rótulo imortal,
De forma paradoxal,
Pois ninguém pensa
Em sua perfeita razão
Que qualquer animal,
Ou uma pura abstracção
- Como a Fortuna do caso presente -
Sejam o nosso retrato magoado
Natural.
Poderão ser antes espelho
Velho e relho
Criado pelos fabulistas
Inteligentes
E às vezes mesmo imprudentes
Nas suas alegorias ,
Por conta dos brios
Dos mais salientes -
Dirigentes
Economistas
Patrões de bancos
Saltimbancos,
Artistas
Especialistas em conquistas,
Geralmente
Gente previdente,
Pelo menos particularmente:

"A Fortuna e o menino da escola
À beira de um fundo poço
Dormia, a todo o comprido,
Um menino, de escola aluno.
Tudo lhes serve,
Aos alunos,
De cama e colchão,
Sem qualquer ralação.
Em caso parecido,
Um qualquer homem honrado
Um salto de vinte braças teria dado
Para passar adiante.
Perto dali, felizmente,
A Fortuna passou e docemente
O menino acordou,
E logo discursou
Impaciente:
“Eu te salvo a vida,
Meu rapaz,
Mas peço-te
Que sejas mais cordato
E desperto
Da próxima vez.
Tivesses tu caído
E logo me teriam acusado,
Embora o erro
Tivesse sido
Só teu e teu e nunca meu.
Só te pergunto
Sinceramente,
Se esta tua imprudência
Se pode imputar
À minha competência.”
Tendo assim falado
Mais para ralhar,
Embora sem resultado
Que se visse,
Ela pôs-se a andar.
Quanto a mim,
Concordo com a sua argumentação.
Nada no mundo acontece,
Que a Fortuna não seja acusada,
Duma penada,
Pela sua participação
Na acção.
Ela é o garante
De todas as aventuras.
Quer se seja tolo,
Ou distraído,
Nunca temos a responsabilidade
Do acontecido.
Julgamo-nos quites
Com a nossa consciência,
Se acusarmos a Sorte.
Em suma,
É a Fortuna que tem sempre a culpa.”

Também nós por aqui
Parecemos meninos
À beira do poço
Dormindo, dormindo,
À espera do osso
Sem darmos o salto
Da passagem
Para a outra margem.
E mentindo, e iludindo,
E sempre pedindo,
- Alguns pagando -
Vamos construindo
- Melhor, destruindo –
O que já foi nosso,
Ao Fado imputando
A nossa má sorte,
- Que o Fado é
O nosso Forte
A nossa Morte
A nossa Sorte -
Sem responsabilidade,
Mas com habilidade,
Característica fatal
Do nosso mal,
Para perpetuidade
Da bandeira nacional,
O que é um bem, afinal.

domingo, 21 de novembro de 2010

Já podem usar

- Então não tenho? – Respondeu a minha amiga à pergunta sobre se não tinha novidades hoje, já que ontem constatou que estávamos na Cimeira, despejávamos Cimeira, nada mais havia a não ser Cimeira e eu nem percebi por que motivo não quis falar disso, já que, só o ouvir falar na aprovação do “conceito Lisboa”, por conta do novo conceito estratégico da Aliança Atlântica, como aliança cooperativa entre os povos aliados, com a Rússia amiguinha e dialogante, falar de um escudo anti-míssil europeu, para prevenir contra as ameaças do Médio Oriente, falar do entregar o Afeganistão ao povo afegão em 2014, com a participação portuguesa no fenómeno da instrução militar do dito, nos devia encher as medidas, além da referência do simpático Presidente americano ao seu cãozinho português, e à boa recepção feita por nós cá aos da Cimeira da NATO. Que ele agora nem sabia se a sua próxima Cimeira teria o brilho da nossa, e isso foi uma afirmação de modéstia que nos transmitiu confiança em nós mesmos, sempre extremamente tímidos…
Tudo isso e muito mais foi, pois, não só positivo para o mundo, mas prestigiante para nós, que já tínhamos um tratado de Lisboa e passámos a ter mais um conceito estratégico de Lisboa, como marco histórico, não sei, portanto, porque é que a minha amiga não colaborou no meu entusiasmo patriótico, que sei bem que fomos plantadores de muitos outros marcos históricos no mundo havido.
Acho que ela anda com os humores transviados, alinhou mais com os que protestam contra a guerra, e que cuidam que este novo conceito de NATO vai levar mais gente à guerra, não sei se por acharem, os pacifistas, que a guerra dos terroristas é coisa sagrada, sem direito a devolução. Quanto a mim, todos estes conceitos apresentam rasgões e fragilidades, como qualquer teoria, afinal, e até fico muito grata aos que não se importam de ir para esses sítios de combate, embora não seja já por amor pátrio mas por outra sorte de altruísmo. Ou mesmo de egoísmo. Porque agora a tropa não é mais obrigatória, pelo menos entre nós, lusitanos, e só vai à guerra quem não se importa, quer para glória pessoal, quer na mira de um ganho mais eficaz, quer para conhecer o mundo...
Por isso, a minha amiga hoje, domingo sagrado, tinha notícias de outro modo importantes:
- Então não tenho? O Santo Papa autorizou o preservativo. Agradeçam aos espanhóis. Aquela recepção em Barcelona dos tipos a beijarem-se escancaradamente foi muito influente. Já podem usar o preservativo. Bento XVI merece aplauso!
- Sim!
– Alinhei docilmente.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A nossa cortiça vai brilhar

A minha amiga mostrou-se eufórica:
- Ai! Respirei!
- Então está melhor?
Ontem estava meio constipada, e tinha-lhe levado o meu tubo de comprimidos efervescentes de acetilcisteína receitados pelo médico à minha mãe e que uso para mim em caso de emergência.
- Não é isso, foram as notícias que ouvi. Disseram ontem que as despesas da cimeira da NATO não somos nós que pagamos. E uma rica notícia é que os hotéis de cinco estrelas estão superlotados. Ontem a rapariguinha da televisão respondeu-me – que eu tenho muitas vezes posto a pergunta – que esta despesa é suportada por todos os países. Não fica contente? Eu fiquei muito aliviada.
Claro que me aliei ao alívio da minha amiga e disse mais, como os Dupondt, que sim, que ficava contente. Mas a minha amiga não estava à espera de resposta:
- Também gostava de saber quanto é que vai custar isso tudo. Devem dizer.
- Ora, nem pense! Eles lá não costumam dizer das despesas que fazem, só exigem que paguemos, ora essa!
Mas a minha amiga estava muito positiva, muito rigorosa nos seus dados, pouco lhe importavam as minhas respostas provenientes de ignorância dos telejornais, que são à hora do Dr. José Hermano Saraiva e do “Quem sai aos seus”, seguidos de queda nos braços poderosos do atrevido Morfeu.
- O Obama também vem. O cão dele, que é da raça algarvia, vai receber uma coleira de cortiça. Todos os da cimeira vão receber uma prenda, mas o Obama recebe duas – uma para o cão de água algarvio. As senhoras têm direito a uma carteira de cortiça. Os homens a uma gravata de cortiça. A nossa cortiça vai brilhar na cimeira. Uma promoção da cortiça portuguesa muito bem feita.
- Então e o vinho do Porto?
Desdenhou dos meus conhecimentos.
- O Obama merece duas prendas. Escreveu um livro para crianças. Todo o dinheiro reverte a favor das criancinhas.
- O nosso Obama também tem o Magalhães, que ofereceu a muitas criancinhas.
Mas a minha amiga desdenhou Sócrates e uma vez mais, exaltou Obama, sempre rendida ao seu charme e bondade:
- Aquele tem tudo para ser um Chefe de Estado. Os que andam à procura de defeitos nele não passam de uns sacaninhas. É o único homem que está ali para servir o povo deles. Pôs os pobres a ter assistência médica, pois até isso pagam. Não vivem numa torre de marfim, de vez em quando enchem os jardins da Casa Branca com crianças. Eles adoram o cão, que vai ter uma bela coleira nossa, de cortiça.
A minha amiga, quando admira, é muito sectária. Mas também quando embirra. E não há cortiça que lhe ponha travão. Digo, rolha.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Não tem ponta

A minha amiga comentou sobre os titulares – ou seja, os compradores dos nossos títulos de dívida – especialmente em referência ao presidente de Timor-Leste:
- Realmente, quando se vê o seu país tão pobrezinho, e ele a dizer que vai ajudar o seu amigo Sócrates, faz impressão. Como é possível ajudar um país riquito, sendo eles tão pobrezinhos?
Duvidei, como pessoa consciente da crise que vai a caminho do seu clímax, com o avanço do FMI, embora o anúncio do avanço das obras públicas de grande envergadura já no próximo ano, nos deixe a esperança de que afinal não estamos assim tão destituídos de posses:
- Riquito?
- Claro! Nós somos o país com mais carros, com mais telemóveis, com reformas milionárias maiores que as da América…
Uso a severidade:
- Realmente, temos carros em barda, mas de fabricação estrangeira, não criámos marcas. As fábricas cá são de junção de peças, que vêm de fora. Mas as marcas são francesas, italianas, alemãs, americanas, japonesas… E o Volvo, que é sueco.
A minha amiga interrompeu-me as amargas lucubrações provenientes das minhas meditações sobre as nossas transacções, de extremo décalage entre importações e exportações:
- Eu peço já a canonização do Ramos Horta.
- Também não exagere nos pedidos. Para a aura basta-lhe ter sido Nobel da Paz. Ele está a pagar a nossa colaboração aquando dos ardis da Indonésia, que até cantámos uma canção muito bonita, com que os ajudámos a ganhar a independência: “É Timor”, além dos peditórios para os trocos. Como falhou a sua proposta para que Durão Barroso fosse Nobel da Paz, no ano seguinte ao prémio dele e do D. Ximenes, que estas coisas de prémios dão logo direito a primos, estendeu agora a mão protectora a Sócrates, que anda nas suas águas a pedir reforços, não sei se por conta do petróleo que parece que têm… Coitado do Sócrates! Ter que pedir reforços tão a leste! Será que Sócrates anda a cobrar, por conta dos nossos peditórios de há uns anos para a independência timorense?
- Não, é mesmo por amor à navegação, que nos está na massa do sangue. Navegação e maquinação. Mas olha lá o outro que me deixou espantadinha, o seu amigo bem vestido, o dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado… O que é que lhe deu? Sentiu vergonha lá fora e achou-se perdido? Um governo de salvação! Isso foi o mesmo que dizer que isto não tem ponta por onde se pegue
!
A minha amiga às vezes excede-se. Que ao nosso Primeiro não faltam nunca recursos, só vergonha. Sempre.

domingo, 14 de novembro de 2010

Os títulos

Lembrei-me de uma fábula de Esopo
A propósito da discussão
Com a minha amiga sobre
A promessa de Ramos Horta
Ouvida na televisão,
De nos comprar títulos
Como parece que já fizera
O presidente chinês,
Ou talvez apenas a sua esposa
Melindrosa,
Que até foi presenteada
Com um bule para o seu chá
Como já não há.
Digo, o bule, não o chá,
Que ainda há cá
Embora, talvez,
Por pouco tempo já,
Que até o chá passará
À história,
Pois de tudo o que fomos
Ou tivemos
Com maior ou menor
Glória
Apenas nos restará
Escória.
Isto diz a minha amiga
Com muita desconsideração,
E daí a discussão
Bem ou mal atamancada.
Mas vejamos a fábula grega
Se tem ou não aplicação
Ao caso da nossa aflição
De povo que até adrega
Ser bem brincalhão:

“O cão, o galo e a raposa”
«Ligados por uma bela amizade
Um galo e um cão viajavam de companhia.
Pelo crepúsculo, o galo empoleirar-se-ia
Numa árvore, enquanto o cão se escondia
Entre as raízes da mesma árvore,
Que assim os protegia
Com generosidade.
Mas o galo cantor
Useiro e vezeiro em cantoria,
Durante a noite cantou
Com galhardia.
A raposa acorreu,
Por baixo da árvore se postou,
E suplicou
Ao galo que descesse,
Para que ela o beijasse,
Pois tão bela voz como a sua
Merecia
Que o galardoasse

Com beijos de cortesia.
O galo concordou mas pediu
Que primeiro acordasse o porteiro.
A raposa, a quem todos chamam matreira,
Desta vez, causou-nos perplexidade,
Ao cair na esparrela
Com tanta ingenuidade.
Chamou o porteiro
Que dela
Fez bons pedaços,
Os quais, bem cozinhados
E condimentados,
Serviram o jantar de ambos
Os amigalhaços.
A fábula mostra, na perfeição,
Que o homem de sensatez
- Ou de esperteza infinda -
Afasta o seu inimigo figurão
Desviando o ataque deste
Sobre alguém mais forte ainda.”


É por isso que eu admiro
O nosso Primeiro
Ministro.
Digam-me lá
Se ele não se parece
Com o galo empoleirado,
Que desviou, com determinação,
Para o cão,
A sua defesa
Contra a raposa manhosa,
Isto é, a defesa
Da dívida indecorosa?
O presidente chinês,
O timorense,
E outros mais
Que virão por aí,
Mais fortes do que nós,
Livrar-nos-ão,
Como o cão,
Dos efeitos perniciosos
Das dívidas sem explicação
Decente,
Adquirindo títulos
Ao que se diz
De uma dívida
De forte raiz.
E da nossa história,
Futuramente,
Restar-nos-á
Somente escória…
E o tal sol, que pecou
Porque, em vez de criar, secou.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

“Ditosa Pátria Minha Amada”

Um dia, a apresentadora de televisão, Marie-Ange Nardi, que comecei a admirar no programa “Pyramide”, pelos anos noventa, veio a Portugal, tendo sido acompanhada nas suas visitas turísticas por um cicerone português que a fez percorrer bairros típicos de Lisboa, onde se entretiveram a troçar da roupa estendida nos estendais dos prédios, sintoma da paroleira que nos define no nosso atraso milenarmente imutável.
Senti vergonha, senti revolta, senti asco. Vergonha desse atraso, revolta contra nós próprios, povo irremediavelmente incapacitado, asco contra a pessoa intelectualmente superior, de um país milenarmente superior, que, paradoxalmente, em tempos, permitira a existência dos famosos bidonvilles, para tectos de gente sem casta, usada nos trabalhos da dureza e dos estrumes domiciliários franceses, tectos próprios para uma imigração intelectualmente destituída. Inteligente como sempre a reconheci, Marie-Ange Nardi não tinha o direito de se mostrar tão desprezativa, tão desprezível, na sua arrogância e imodéstia superiores, incompatíveis com o “quod nihil scitur” da reflexão humanista.
Muito antes dela, Simone de Beauvoir, no seu livro “Les Mandarins”, põe igualmente duas personagens do romance a visitar Portugal, país que vivera placidamente, liberto e inocente - os milhares de ricos nos seus arrotos, os milhões de pobres nas suas miseráveis choupanas - os horrores da guerra que outros povos sofreram directamente, na sua atrocidade. Sinto como um ferrete a lição, já não de troça mas duramente crítica, que tinha o mesmo objectivo que o dos nossos escritores neo-realistas de pôr em causa o regime prepotente de Salazar e, simultaneamente, o país de grande pobreza espiritual: “la tyrannie politique, l’exploitation économique, la terreur policière, l’abêtissement systématique des masses, la honteuse complicité du clergé…”
Também Voltaire, no seu “Candide” chamara a atenção para os horrores dos autos-de-fé em Lisboa, após o terramoto de 1755, dentro do mesmo espírito de independência crítica, como ataque à injustiça, obscurantismo e fanatismo que nos foram marginalizando no conjunto dos povos europeus, todos estes prezando a formação cultural, como bagagem distintiva do ser humano.
Ninguém melhor do que Eça para desmontar as idiotias da nossa “mesmice” e da nossa pobreza espiritual e material.
Sempre a crítica foi forma de alertar para o erro, de convidar à virtude.
Nestes nossos tempos de pseudoconstrução cívica, que nos tornam joguetes da arbitrariedade, da má fé, do egoísmo e da incapacidade governativas, muitas críticas se vão lendo como alerta e previsão de catástrofe, na mesma sociedade imatura, que se tem vindo progressivamente a destituir dos valores da disciplina mental e moral, a acrescentar à perda material escoando-se pelas comportas destruídas dos sorvedouros económicos.
Ela, a catástrofe, já é presente, no fantasma de uma dívida que cresce incontidamente, nas soluções para a inverter, de cariz tsunâmico, que mergulham o futuro pátrio em trágica incógnita sobre a nossa continuidade como nação.
Pretender que tais críticas negativas revelam menos amor pátrio, a isso apor exemplos de êxitos pátrios, é um falso argumento chauvinista, que não implica a anulação da via errática do nosso pesadelo político. Não há nelas altivez de troça, mas uma tristeza fatalista na expectativa do fim. Ou da mesma continuidade sem nobreza.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

«O que vai ficar são os “acórdos”»

Mostrei a minha indignação a respeito dos “acórdos” de que falou imoderadamente o nosso PM, opinei sobre a visível satisfação que nele provocaram os seus “acórdes” musicais de sintonia com os do PR da China e respectiva esposa – do Presidente, não da China – a quem o povo português de uma localidadezinha lusa onde se vai fabricar mais um “acordo” de o fechado, ofereceu um bule para o chá, que me pareceu piroso – o bule, não o chá - mas não tive tempo de o averiguar, distraída com o ar fechado da madame e do respectivo esposo orientais, talvez apreensivos, talvez arrogantemente depreciativos, mais uma vez falei doutoralmente em metafonia, que faz abrir certos ós plurais, como o de “fógos”, enquanto se mantêm fechados outros, como os de “acôrdos”, lembrei que a moda do “o” aberto em “acordos” pegou mesmo, pois muitos são os ilustríssimos – alguns até advogados da nossa banca ou políticos e jornalistas da nossa praça – que o proferem, sem terem o cuidado de consultar uma gramática que os esclareceria, embora isso não me admire tanto no nosso PM, que, se despreza a sua língua e a sua nação, com provas irrefutáveis, muito mais desprezará a gramática dessa língua, de preferência acedendo ao dicionário, para nele se ilustrar a respeito da deturpação capciosa do pensamento, para uma acção política caprichosamente mistificatória.
Logo a minha amiga, tristemente, concluiu:
- O que vai ficar são os “acórdos”.
Mas continuou, profusamente, sobre os novos habitantes:
- Estes vinte mil que cá estão já fecharam lojas portuguesas aos molhinhos. E não dão trabalho a ninguém. Nós sabemos muito bem como são os chineses. Ficaremos de gatas e de olhos em bico. Os gajos estão em Angola a construir sem empregados angolanos. Não compram uma pá. Tudo os acompanha. Eles trazem tudo, todo o material lá da China. Não é que o chinês não seja um povo trabalhador!
- Isso é
- consegui meter a minha colherada – mas nunca tive confiança no “made in China”, ao contrário do “made in England”, de qualidade sólida.
- As coisas mudaram muito, com a fabricação em série. Mas a louça e as mobílias trabalhadas eram de grande valor e perfeição.
- Nunca gostei. Gosto mais do liso das nossas porcelanas e mobílias. E não confio nas comidas.
Mas a minha amiga não concordou, embora lamente os nossos comerciantes:
- O comércio mais pequeno está nas mãos deles. Cascais está cheio deles.
- Estamos perdidos. Mas será que entre os “acórdos” se conta o reverdecimento dos nossos campos, mesmo com as alfaias vindas da China?
- Não acredito. Eles lá trabalham nos campos, mas cá é no seu comércio.
-De quinquilharia, digo, agoniada.
Mas de facto também já lá comprei, que é mais barato e tem de tudo, desde roupas aos esfregões da louça, de papel de carta aos cortinados e aos chapéus de chuva… Estamos perdidos.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

“ Eu venho comprar o vosso rectângulo”

A minha amiga aproveitou o facto de eu estar de costas, a distribuir os produtos recicláveis pelos respectivos contentores para me assarapantar com um aflautado “Tchong! Tching! Thaung!”, que me fez voltar-me num susto, julgando que estava a ser vítima já do dominador asiático cobrando a dívida. Era ela, de mãos cruzadas e trejeitos de deusa hindu, simultaneamente humilde e grácil, dizendo “bom dia” em chinês, segundo explicou, feliz com a descoberta linguística.
Foi mais tarde, já instaladas à mesa da bica, que ela largou o que lhe ia na alma:
- Eu, quando ouvi a história na televisão pensei logo: Então os portugueses não estavam avisados duma coisa tão importante? Chega ali o presidente muito rico e diz: “Eu venho comprar o vosso rectângulo” e isso cai como uma bomba, pois nos programas de discussão de ideias ninguém jamais se referira a isso, todos à volta da dívida calamitosa à Europa e respectivos juros brutais…
- E das medidas de “austeridade” impostas, que todos acham de bandalheira porque só pendem sobre os menos capazes, pois os mais esforçados, que até contribuíram para a dívida, batem o pé com as exigências da sua indignação despudorada… A escumalha atingida limita-se à grevezita mandatada pelos partidos das greves…
- Como é que se faz uma coisa destas, sem nós sabermos? Eles não disseram nada à gente! Por isso o coiso dizia: “Nós não precisamos da ajuda de ninguém”. Os outros políticos também não deviam saber. Estiveram a falar de tudo, menos disso…
- O coiso sabia do Dom Sebastião, é o que foi. Volta sempre, o Dom Sebastião, e nem precisa de nevoeiro. Quando tudo parece perdido, a gente arranja logo um dispositivo salvador, para maior perdição futura, é certo, a pender sobre as gerações vindouras. Bem dizia, pelos anos posteriores ao do 25 de Abril, o meu amigo Juiz Brites Ribas, quando lhe falava no perigo africano sobre a Europa, ele, dos arcanos do seu muito saber preocupado, ripostava que o perigo grande residia no asiático. Realmente, os chineses têm-se vindo a insinuar. Mas agora foi como uma bomba que se soltou.
- As contrapartidas, vamos sabendo aos poucos. Eles importarão os vinhos e os azeites do costume e instalarão lojas por aqui? Talvez invistam no TGV… O que eu fiquei sabendo é que há já por cá vinte mil chineses. Bons alunos, os da escola portuguesa… Muitos nascidos cá. É a melhor maneira do país não acabar…
Indignei-me um pouco, com a expectativa:
- O meu último netinho, nascido na semana passada, também se chama Sebastião. É para ele que me viro, é nele que deposito a esperança de salvação futura, pequenino ser que não respeitamos hoje. Que Deus o guarde, numa pátria livre.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

“Só se chega mais depressa a Madrid”

- Não vejo ninguém com esperança. Todos preocupadíssimos. O Sócrates está como quer, queria o Acordo assinado e lá o tem, para o T.G.V. arrancar. Tem um compromisso com os espanhóis, não é homem para faltar aos compromissos.
Admirei-me:
-Hum!
Não me deixou ir além da interjeição, na fúria da sua alta velocidade:
- Dá-se muito bem com o Primeiro Ministro espanhol, são muito amigos. Não desarma com o T.G.V. Ele já disse que ia adiar. Mas mantém. Não pode faltar a um compromisso com os espanhóis. O Sousa Tavares e variadíssimos economistas dizem que aquilo não vai dar lucro nenhum. Só se chega mais depressa a Madrid.
Consegui articular:
- É útil! O Museu do Prado vale a despesa.
Não compreendeu o meu arroubo artístico:
- Isso é que me espanta. Como é que o homem prefere não faltar a um compromisso com os espanhóis e vai sacrificar toda a gente! O povo devia ir p’rá rua.
Nisso discordo da minha amiga, velhas manias de obreira zelosa que fui, raramente faltando ao trabalho, julgando-me importante no funcionamento de algumas das rodas que ajudavam o país a mover-se…
- Para quê? Já somos suficientemente calaceiros… O Sócrates e os demais pares, com o Cavaco à mistura, estão-se marimbando para as manifs. Essas passam, e nem importa se o país ficou mais pobre – na moral, na economia, nos costumes. Democráticos. É uma linda palavra.
Continuei:
- O meu marido anda indignado, tal como os mais. Diz ele que está tudo à espera que as pessoas alterem a sua intenção de voto, mas quem tem o poder só apresenta o que convém. Ninguém consegue saber. As pessoas de carácter nunca são ouvidas. Há um Juiz que só agora que se reformou é que escreveu um livro sobre o que são esses acordos – tudo roubo – mas enquanto esteve no activo não podia fazê-lo, todos a ver se lixam o parceiro que se atreva a desmascarar. Tudo gatunagem. Sócrates quer ficar na história como o homem que fez o TGV. E também quer chegar aos dez anos de governação para a maquia da pensão - explicou o meu marido, circunspecto.

Nem vale a pena
Tanto penar.
Mas só mesmo Esopo
Para nos fazer gozar
Um pouco:
«Uma cotovia de poupa
Foi apanhada num laço
- Confesso que um pouco baço -
E a sua sorte deplorava,
Que se desgarrava:
“Ai! Pobre de mim,
Pássaro mísero e mesquinho,
Embora sem ser tão tratante
Assim!
A ninguém roubei
Nem ouro, nem prata,
Nem diamante,
Nada de precioso
De valioso
Ou muito importante!
Apenas um grão
Minúsculo de trigo
P’r’à refeição
Foi causa injusta
De perdição”.
A fábula visa, com certo respeito,
Os que correm riscos sem jeito,
Com magro proveito».

Tudo bem ao contrário
Do nosso fadário,
Nesta fábula da “Cotovia de poupa”
Com que Esopo nos apouca,
Referindo-se aos pobres mortais
Como os Joões Valjães
Que quando roubam pães
Vão p’rás galés, como grandes ladrões,
Ao passo
Que dos que aqui roubam que farte,
Que é mesmo um disparate,
Uns vão trabalhar p’rà Europa
- Embora não seja taxativo
Que seja trabalho activo,
Ou de sujeição
A favor da nação.
Parece mais
De autopromoção
E conta própria.
Outros… os doutores
Tenebrosos,
Deixemo-los com os seus pares
Na pátria de navegadores,
Que nunca mais se erguerá.
Tal como o caldo entornado,
Que não será engolido
Porque ficou bem sumido.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Chá


O estômago e os pés disputavam-se sobre as respectivas forças. A cada passo, os pés informavam serem de tal modo superiores àquele na questão do vigor, que eram eles quem carregava o próprio estômago. Este deu-lhes a seguinte resposta: “- Enfim, Senhores pés, se eu aí não estiver para vos alimentar, vós não podereis transportar seja o que for!” É o que acontece com os exércitos: sem a inteligência dos seus chefes, a superioridade do número não vale nada.”

Eis a fábula do Esopo – “O estômago e os pés” que traduzi para a minha amiga, como intróito ao comentário sobre uma crítica recebida num texto que li na Internet a respeito da falta de compostura na actual designação dos chefes, por bloguistas ou outros comentaristas, embora o autor do texto considerasse que antigamente, na primeira República ainda fora pior o desbragamento da linguagem, do que nos tempos hodiernos.
Nós ambas acusámos o toque, sobretudo a minha amiga que foi quem usou o hipocorístico designativo de “Zezinho” aplicado ao nosso Presidente, coisa que eu também censurei na altura, confesso, já tenho dito que não fui habituada a essas desconsiderações, tal como o Damazinho Salcede, que a ninguém as admitia, e até costumo ser punhos de renda nos meus designativos, para aplicar uma imagem dos preciosismos clássicos, mas deixei-me convencer da justeza da expressão, depois de ponderadas as razões e por isso a postei no texto do meu blogue.
Realmente, ponderámos que chefes não temos de grande valia, mas creio que o erro está na nossa massa demográfica, em todos nós, portanto, que somos de estilo rasteiro, provinciano, como o nosso Presidente, que teve origem modesta, segundo diz, embora tenha cavado a pulso o seu percurso de excelência, gabando-se, apesar da modéstia que afirma ter, de ter contribuído para que a nação – os pés da fábula – não tenha soçobrado ainda, como teria acontecido, não fora ele o Presidente – o estômago da fábula – dos pés que somos.
Admirámos o optimismo do Presidente, no seu discurso de candidatura, revimos os gerais motivos actuais de queixa sobre a inacção do Presidente, e não vimos nenhum motivo para ele embandeirar em arco sobre o que fez para evitar o estado das nossas misérias, achando que, pelo contrário, nada fez a não ser referir bastas vezes a sua preocupação, deixando, pelo contrário, destruir a ortografia portuguesa, a Escola portuguesa, os diferentes ramos da Economia portuguesa, participando no estado da corrupção portuguesa, com os vários vencimentos que se diz que aufere, não dando um passo para limpar a pequena casa do seu país.
Creio que estamos mais que justificadas, a democracia tornou-nos a palavra mais solta, é certo, embora eu me lembre de que na ditadura também ousei ser ousada em minha escrita objectiva. Não condenávamos os chefes, pelo menos frontalmente – houve quem chamasse a um deles “Dinossauro Excelentíssimo”, mas só depois do chefe fora de cena - mas os chefes também tinham diverso carisma. E amavam a Pátria, e tinham outros ideais, que agora achamos prosaicos, porque a prosa dos chefes idealistas de agora se cifra mais nas cifras pessoais e dos amigos funcionais.
Nem vale a pena prosseguir, nestes apertos em que vivemos, e em que vivem, sobretudo, os que foram despedidos dos seus empregos ou os que receiam vir a perdê-los, todos os que se sentem coarctados na acção que julgavam desempenhar como cidadãos do seu país.
Etc., etc., não vale a pena prosseguir, vou antes traduzir a fábula de Esopo, para me divertir um pouco.
E à minha amiga a vou dedicar, para se divertir a seguir:

«O estômago e os pés»
«O estômago com os pés contendia
Porque estes se vangloriavam
Do seu poder sobre aquele
Já que eles é que o transportavam
Com a necessária galhardia,
Jamais reclamando
Nem se enxofrando
Embora sentissem na pele
O esforço tão forte
Desse transporte,
Tantas vezes sem norte.
É claro que o estômago não se deixou vencer
E respondeu, a esclarecer:
“- Nada vos fico a dever
Porque não fora eu a dar-vos de comer
E aí ficaríeis parados no tempo,
Sem vos poderdes mexer.”

A moral da fábula aplica-a Esopo
Às tropas do seu tempo:
Havia nelas chefes a mandar.
Sem esses, lá se iam as vitórias ao ar
Pois, sem orientação,
Os múltiplos soldados dispersariam…
Mas também, é certo, não seriam
A carne para canhão
Que habitualmente são.

O que eu acho curioso
Sem que isso me dê gozo,
É a analogia dos tempos de outrora
Com os de agora
No que toca à questão dos chefes
Que Esopo, na sua alegoria,
Atribui ao estômago
E não à cabeça,
Que comandar deveria.
O estômago a mandar,
Eis uma observação
De grande universalidade,
Pois, vinda da ancestralidade,
Chega impune à actualidade.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Augúrios

Não sei por que razão
Se foi Esopo inspirar,
Como exemplificação
De uma figura detestada,
Embora só pela deusa
Da grega sabedoria,
Na gralha de bico aberto,
A coaxar.
Afinal, é esse o seu falar
Embora sem grande acerto,
E com pouca harmonia.
Mas gostos são relativos
Não podemos generalizar
Nos motivos,
Valha-me a Virgem Maria.
Tanto mais,
Que gralhas há muitas,
Tal como os chapéus,
Ó céus.
Leiamos então,
Com atenção
A fábula de Esopo
Na tradução:

«A gralha e o cão
Uma gralha que pretendia
A Atena, sacrificar,
Para esse banquete resolveu,
Com a necessária cortesia,
Um cão convidar
Um dia.
“- Para que te metes em tanta despesa
Com esses sacrifícios, tão inúteis
Como fúteis?”
- O cão lhe perguntou, com esperteza,
Se não até com tristeza.
E continuou:
“Com efeito, a deusa tem por ti
Um ódio tão feroz
Que, como um algoz,
Aos teus áugures exclui
O crédito desejado.
“- Ora essa!”
A gralha lhe respondeu
Com enfado:
“Por isso mesmo eu lhe sacrifico”,
Sei que ela me detesta
E espero apaziguá-la
Com a minha festa
A favor dela.”
De igual forma, muita gente
Pouco influente
Não hesita, por receios ancestrais,
Em cobrir de benefícios
Os seus inimigos figadais.»

Penso que a gralha pertencia
À lusofonia,
Mas não tenho a certeza.
Porque tal natureza
De cumular de benefícios
Os superiores,
Amigos ou inimigos,
Mesmo com sacrifícios,
Para obter deles favores,
É coisa antiga,
Própria da literatura
Que a imitou da Mãe Natura.
Não vou , pois, fazer fraca figura.
Não vou explorá-la.
Vou mesmo ignorá-la,
Essa coisa de servir
De sacrificar
De prendas trocar…
Não vá uma Atena segura
O crédito dos meus áugures banir.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Veritas, sine vino

A minha amiga detestou que eu lhe tivesse ontem deturpado o pensamento, quando pus na sua boca o “coitado, ninguém se lembra que está a concorrer”, como referente ao actual Presidente. Tratava-se, antes, do presidente da AMI, como ela bem frisara, disse, não se tratava do nosso presidente presente - (e futuro, já que todos lhe auguram a vitória, mesmo inglória). Foi por isso que eu atribuí a este a referência da minha amiga, do que peço desculpa e reponho a verdade, que a verdade é para se dizer, e o erro para se emendar, tanto mais que ela achou, com ironia, que uma tal interpretação não abonava os meus créditos intelectuais, o que me esmoreceu.
Quem não tem visibilidade é, pois, na opinião da minha amiga, Fernando Nobre, por muito bons sentimentos que aparente, e não Cavaco, que ela acha que tem – visibilidade – (a esposa também a revelando, na indiscrição dos seus jeitos mimosos de gentil familiaridade), apesar do termo Zezinho que lhe aplicou e que eu logo corroborei, porque sempre me apeteceu enterrar a cabeça na areia, quando, entrevistado, o nosso Cavaco se não descose com notícias, nem se compromete nunca, achando que não lhe compete adiantar-se em considerações ou informações, vê-se que tem um mundo de questões a que não acha conclusões, mas o papel dele não é o de contribuir para as nossas trepidações, preferindo seguir seguro o seu roteiro de ambições, nulo de complicações, referindo apenas as suas preocupações para ganhar as boas intenções das populações.
A minha mãe aproveitou, entretanto, o sol deste dia soalheiro, para cantarolar as velhas cantigas de tempos imemoriais, e, ao transcrevê-las, dedico-as à minha amiga como forma de ultrapassar o contencioso interpretativo:
Já lá vai o sol abaixo
Metido num pucarinho
Já lá vai o brilho todo
Das moças de Cambarinho.
- Mas também pode ser de Vilarinho - explicou a minha mãe, quer por uma questão de harmonia poética, quer por conhecimento das mazelas sociais daquelas terras da sua infância.
Já lá vai o sol abaixo
Metido numa panela
Já lá vai o brilho todo
Das moças de Lourizela.
- Mas também pode ser das de Paradela, insistiu, feliz.

Tout va bien qui finit bien”.

São agora 8H 30 nocturnas, Cavaco Silva lança a sua candidatura às Presidenciais. Ouvi há pouco a seguinte frase, bem inserida no seu discurso elaborado da maneira correcta e virtuosa de sempre: “Continuarei a falar a verdade aos Portugueses”.
Já lá vem o sol acima”… a dar-nos a visibilidade de sempre: dos melhores nas causas piores. Podemos descansar.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Tem que ser Zezinho?

- Não há um homem enérgico para Presidente. Tem que ser Zezinho? Mas coitado, ninguém se lembra de que ele está a concorrer…
- Ai, isso é que lembra! Lembrou-o o Marcelo, na sua cusquice de privilegiado ao acesso dos segredos presidenciais. Uma falta de gosto própria da infância dos seres. E dos povos como o nosso, que não sairemos nunca dela, com perdão da cacofonia.
A minha amiga não avançou nesse escândalo que já discutíramos antes, com a cara rubicunda de vergonha – embora, é certo, apenas metaforicamente, que o tempo do rubor já lá vai, não por sermos menos virtuosas, mas por defeito do sangue animal, que se adultera com a idade, sobretudo o humano. Desta vez ela estava mais inclinada para as próximas eleições, e não via com optimismo nenhuma das candidaturas presidenciais:
- Eles não querem outra coisa - acho que se referia ao actual presidente – vê-se que a mulher está mesmo contente. Muito carinhosa em público. O Alegre, acho que é um triste, os outros têm as suas falanges próprias, condenadas à derrota. Ao menos os brasileiros têm gente que fala, impõe-se.
- Podem falar, de acordo com a vastidão das suas áreas territoriais, económicas, populacionais, têm por onde escolher. Embora também se queixem de idênticas governações de escândalo, como aqui.

A propósito, citei um e-mail que recebi, sobre o que diferencia os países pobres dos países ricos: “não são as riquezas, os climas, os solos… São os princípios.” O nosso país não pode gerar bons presidentes, porque sendo um povo e um país com idênticas capacidades dos mais, não seguimos os princípios fundamentais que fazem as boas nações.
Transcrevo os princípios, com os meus agradecimentos ao Edu, que mos enviou:
“A diferença entre os países pobres e os ricos está na atitude das pessoas, moldada no decorrer dos anos, pela educação e cultura, atitude que assenta nos seguintes princípios básicos:
1º: A Ética.
2º - A Integridade.
3º - A Responsabilidade.
4º- O Respeito pelas Leis.
5º - O Respeito pelos Direitos dos demais Cidadãos.
6º - O Amor pelo Trabalho.
7º - O Esforço para Economizar e Investir.
8º - O Desejo de Superar.
9º - A Pontualidade
.
São nove, não dez, os mandamentos, e não poderão reduzir-se aos dois da lei divina, cada um ocupando o seu espaço próprio na formação educativa de cada ser humano.
Não somos povo que siga nenhum desses princípios, preferimos o deixa andar implícito nas mazelas do nosso fado, ou a esperteza saloia profusamente explícita nas mazelas da nossa imoralidade, fomos habituados a confundir servilismo, com respeito – da parte dos da gleba - respeito, com autoritarismo - da parte dos do mando. Daí que educação real nunca existiu, ao nível da massa populacional, com excepções honrosas, é claro, e não existirá nunca, por falta de lastro.
Por isso, os do mando têm que ser ou Zezinhos ou saloios espertalhões.
À nous, de les suivre
Mas poderemos, sempre, optar pelos preceitos.

sábado, 23 de outubro de 2010

Vida mundana

É Saint-Preux, o enamorado de Julie – la Nouvelle Héloise, do título do romance epistolar de Rousseau – que, ausente da amada por motivo da oposição do pai desta a tais amores, socialmente reprováveis dada a condição inferior daquele, entre as várias cartas que com ela troca, descreve, de Paris, a hipocrisia dos costumes mundanos, além dos truques de propaganda ideológica, a que Rousseau teria assistido, já nos alvores da Revolução Francesa.
Traduzo o excerto (carta XIV da II parte), por me parecer de uma actualidade sem falhas, exceptuados os adereços ou as vestimentas relativamente aos dos salões de agora:

“Mas no fundo, que pensas tu que se aprende com estas conversas tão encantadoras? a julgar saudavelmente as coisas do mundo? a bem usar da sociedade? a ao menos conhecer as pessoas com quem vivemos? Nada disso, minha Júlia. Aí se aprende a advogar com arte a causa da mentira, a abalar, à força da filosofia, todos os princípios da virtude, a colorir de sofismas subtis as paixões e os preconceitos, a dar ao erro um certo estilo em voga, segundo as máximas do dia. Não é necessário conhecer o carácter das pessoas, mas tão só os seus interesses, para adivinhar pouco mais ou menos o que elas dirão de cada assunto. Quando um homem fala, é por assim dizer o seu fato, e não ele, que tem um sentimento, que ele mudará sem preocupação, tantas vezes como de estado. Dê-se-lhe alternadamente uma longa peruca, um fato de ordenança e uma cruz peitoral, ouvi-lo-eis sucessivamente pregar com igual zelo as leis, o despotismo e a inquisição. Há uma razão comum para a toga, outra para a finança, outra para a espada. Cada uma delas prova muito bem que as outras são más, consequência fácil de tirar para as três. Assim, ninguém diz nunca o que pensa, mas o que lhe convém fazer pensar a outro alguém, e o zelo aparente da verdade não é nas gentes mais do que a máscara do interesse.
Julgareis que as pessoas isoladas, que vivem na independência têm, pelo menos, um espírito próprio; nada disso; são outras máquinas que não pensam, e que se faz pensar aos bochechos. Basta informarmo-nos das suas sociedades, das suas parcerias, dos seus amigos, das mulheres que eles vêem, dos autores que conhecem; daí se pode inferir antecipadamente o seu pensamento futuro sobre um livro prestes a aparecer e que eles não leram; sobre uma peça de teatro prestes a ser representada e que eles não viram; sobre um ou outro autor que não conhecem, sobre tal ou tal sistema de que não fazem a mais pequena ideia; e como o relógio de sala só tem corda para vinte e quatro horas, todas estas pessoas vão procurar nas suas sociedades o que pensarão no dia seguinte.
Há, pois, um pequeno número de homens e de mulheres que pensam por todos os outros, e para os quais todos os outros falam e agem, e como cada um pensa no seu interesse próprio, ninguém no bem comum, e os interesses particulares são sempre opostos entre si, há um choque perpétuo de brigas e de cabalas, um fluxo e um refluxo de preconceitos, de opiniões contrárias, onde os mais acalorados, animados pelos outros, quase nunca sabem do que se trata. Cada parceria tem as suas regras, os seus julgamentos, os seus princípios, que não são admitidos nas outras. O homem honrado duma casa é um patife na casa vizinha; o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude têm apenas uma existência local e circunscrita. Quem quer que goste de se mostrar e frequenta várias sociedades deve ser mais flexível do que Alcibíades, mudar de princípios como de sociedades, modificar a cada passo o seu espírito, e medir as suas máximas à toesa; é preciso que em cada visita se liberte, ao entrar, da sua alma, no caso de ter alguma; que obtenha outra com as cores da casa, como um lacaio toma uma libré; que a deponha ao sair, se quiser, até nova troca.”

Uma sátira de um espírito brilhante de séculos atrás, que vale a pena reler, embora a ninguém incomode nem ninguém nela se reconheça.
De resto, creio que dificilmente nos reconheceríamos, por não frequentarmos os mesmos círculos da sociedade francesa, mesmo da dos séculos recuados, os nossos círculos mais limitados às questões práticas das carteiras, das jóias, trajes ou das amigas, no caso das conversações femininas, dos futebóis, dinheiros ou o que venha por acréscimo, no caso das conversações masculinas, umas e outras pouco votadas a discussões mais intelectuais, embora de cinismos idênticos, que são pontos comuns aos “o tempora o mores” de todos os tempos.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

“Eles sabem o que fazem”

Foi a respeito das margarinas. Ouvi Passos Coelho falar em margarinas, julguei que se tratasse de Margaridas, como produto de rentabilidade mais propícia a regateio, mas o meu marido confirmou as margarinas e fiquei ciente do valor destas, visto que estavam a ser discutidas. Parece que Sócrates as queria encarecer, Passos Coelho achou que, como artefacto indispensável à população isso não seria justo, não sei se Passos Coelho as usa nos seus refogados e por isso se achou no dever de lhes reduzir o preço, como condição da sua aceitação do próximo Orçamento para a Nação, juntamente com outros produtos, que todos se me varreram da memória, actualmente em mau estado de conservação – a memória, não as margarinas - à excepção destas últimas, que lambareira como sou, uso às vezes nos bolos, e por isso se me fixou no espírito.
Mas eu de facto julgava que a sonoridade do silêncio de Passos Coelho em relação à sua adesão ao OE tinha a ver com uma caixa de surpresas com que iria maravilhar a população e multiplicar os seus votantes nas próximas eleições. Julguei que iria propor como condição sine qua non para tal adesão, que os que roubaram, ou não pagaram os impostos, fossem obrigados a pagá-los e a repor com juros o que roubaram. Os ordenados de afronta fossem obrigados a descer, os múltiplos vencimentos de alguns fossem reduzidos a um só – o maior deles - enfim, as trafulhices fossem desmascaradas e condenadas, a verdade das contas obrigada a ser esclarecida pelo governo, os campos e pescas fossem repostos num outrora mais obreiro, a Educação fosse tornada mais responsável, a Justiça mais justiceira, a seriedade fosse imposta onde ela faltasse.
Mas falou em margarinas, eu ainda pensei que fora troca com Margaridas, já expliquei porquê, e o meu marido considerou que os telhados de vidro são muitos, que eles sabem o que fazem, que ninguém se atreve a exigir tanto de um governo habituado a não saber fazer contas e a impor as contas erradas a um povo que também não estudou a tabuada.
Porque mesmo que esse que se vê que também quer o palanque não tenha ainda os tais telhados, o seu sonho é pertencer aos que os têm. Por isso se fica nas margarinas – peannuts para os mais poliglotas – e faz alarde com elas para justificar a adesão ao Orçamento para a Nação.
O povo tudo fará para continuar a amparar os tais telhados que, para todos os efeitos, reflectem bem o sol do nosso bonito clima soalheiro que nos abriga, sem nos obrigar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Em forma de parábola

Trata-se do texto “Fogo!” de Manuela Ferreira Leite, saído no caderno “ECONOMIA” do Expresso de 16 de Outubro.
“Naquele tempo existiam uns pirómanos que faziam arder tudo à sua volta em combustão lenta e assim a destruição progredia sem que a maioria das pessoas se apercebesse do que estava a acontecer. Mas chegou o dia em que um anticiclone, vindo de fora, com vento forte, ateou o fogo.
As labaredas, bem visíveis, alertaram as populações para o perigo eminente que as ameaçava e então gritaram por socorro.
Era aquele o momento propício para desmascarar os incendiários e livrarem-se finalmente deles?
Talvez, mas o drama é que o fogo não faz pausas e devoraria as vítimas muito antes do julgamento dos culpados.
A prioridade é, pois, apagar o fogo e salvar o que for possível.
Também esta operação implica prejuízos elevados para as populações, porque os meios de combate muitas vezes danificam os locais onde actuam, havendo a tendência para culpar os bombeiros pelos estragos sofridos.
Assim, o que é justo é que quem provocou o fogo, o apague, até porque qualquer bombeiro, seja qual for a corporação a que pertença, apagá-lo-á da mesma forma: ou com água, ou com neve carbónica ou com uma combinação das duas.
Vem isto a propósito do destino do próximo Orçamento.
Sinto que o PSD não deixará de colaborar na extinção do fogo, mas é nossa responsabilidade não deixar esquecer que este incêndio tem origem em fogo posto e que é, por este acto, que o Governo deverá ser julgado.”

Fez bem, Manuela Ferreira Leite em reconhecer, na sua parábola do fogo posto, quanto a responsabilidade dele não exclui ninguém dos sucessivos governos com que se atamancou a história do Portugal pós-abril. Mas o facto é que a si própria se incrimina, porque deles fez parte, e isso a mim me chocou, que sempre preservei a sua imagem por lhe reconhecer o mérito da honestidade e da lucidez.
Mas o seu texto é sobretudo expressivo da preocupação que a todos mina, pela fragilidade de um país que há muito arde, e que virou braseiro inextinguível, tentando com tal parábola servir de orientação a um Passos Coelho joguete dos malabarismos verbais e irónicos dos que dele dependem, mas mantendo caprichosamente o enigma sobre a posição que vai tomar na questão do Orçamento, em discursos sem conteúdo, e asnaticamente fundamentados, numa emoção pouco sadia, de um romanticismo exibicionista, a sugerir a teatralidade de Manuel de Sousa Coutinho incendiando o seu palácio de Almada, para nele não receber os inimigos da sua pátria, no drama de Garrett.
Não mudamos, sempre actores de gestos amplos e vozes sonoras, a racionalidade subvertida pela emotividade da indignação contra os outros, ou da valorização dos sentimentos próprios.
Manuela Ferreira Leite conclui o seu texto com a afirmação de que os responsáveis pelo fogo posto é que o devem apagar.
Se isso é verdade, não o é connosco, que os incendiários até nem são punidos pelo seu crime, numa campanha de silêncio em seu redor, que sempre nos perturbou a alma.
Mas também é verdade que ninguém acredita na alternativa de Passos Coelho como extintor.
É inteligente a parábola de Manuela Ferreira Leite.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Não mudam

Conheci a minha amiga cá, depois do 25 de Abril, mas ela conhecia o meu pseudónimo dos jornais de lá e congratulámo-nos com a descoberta. Tive que lhe oferecer os meus livros, que para isso servem, e num deles, em 79, porque perdera o primeiro, apus a seguinte dedicatória: “Um magnífico exemplo de virtudes… para o caixote”. Não gostou e um dia, anos depois, devolveu-me o livro para lhe alterar a dedicatória ou acrescentar outra. Docilmente, insisti:

“Se da dedicatória acima não gosta
Neste livro escrito há já tantos anos
Insisto, e não temo perder a aposta,
Que um caixote é pouco para os desenganos.

Catorze anos passaram, e nós aqui estamos,
Atentas ao leme dos nossos navios,
Olhando, aprendendo, colhendo, apontando,
Desmandos constantes, frequentes desvios.

E esses dizeres em pouco diferem
Daquelas virtudes que o livro contém,
Dizeres inúteis, inúteis virtudes
Que o mundo não ferem, nem mudam ninguém.”

Vem a referência a propósito de uma entrevista feita na Sic a Frei Fernando Ventura, que me chegou por e-mail, e que revi com o mesmo espanto com que a ela tinha assistido. Pelo desassombro crítico.
Algumas das ideias reconheci, que eu também já lembrara, tal como o fizeram outros cronistas que lera - o sebastianismo, o atraso social, aparentemente colmatado à pressa com as Novas Oportunidades que não passam de bluff, num país de fatalismo e de sebastianismo, por descrença do povo em si próprio, habituado à canga do servilismo e da servidão, um país de vaidades dos governantes e dos partidos, digladiando-se em jogos do poder, nunca em termos de honestidade governativa para “Bem da Nação”.
Uma voz severa e certeira, sob um sorriso aparentemente simpático, definindo-nos como eternos condenados a sermos os apanhadores do lixo dos outros povos.
Vale a pena ler ou ouvir a entrevista, mais uma voz severa entre tantas que dizem não haver já solução para nós, que chegamos aos cursos superiores com grande impreparação, e, porque foram desaparecidos os cursos técnicos, também sem preparação técnica, os ensinos profissionalizantes não passando igualmente de outro bluff.
Mas, tal como outras vozes severas ou irónicas que vão surgindo com maior ou menor frontalidade, pouco importa o que disse Frei Fernando Ventura, pouco importa o que se for dizendo.
Nação de preguiçosos mentais, povo sem memória e sem consciência de ter sido sempre pobremente educado – o seu atraso vai-se consumando na perenidade desses defeitos de que não toma consciência, cada vez mais arredado do sentido da seriedade, porque educado na facilidade – “facilitismo” – e na desordem da indisciplina, de uma afirmação insensata e perversa.
A tal dedicatória minha a um livro antigo, continua certa - “dizeres inúteis, inúteis virtudes, que os homens não ferem nem mudam ninguém.”